quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Todas as Mortes de Minha Vida



O primeiro contato que eu tive com o que chamam de morte, aconteceu quando eu tinha cerca de seis ou sete anos: eu me lembro de que era uma senhora tão velha quanto qualquer outra que eu conhecia até então. Ela estava com um vestido azul com pequeninas flores brancas, e eram margaridas; eu me lembro de que tudo tinha um cheiro horrível de cravos e de morte. E de que meu avô não entrara na sala de velório - ele não entendia a morte.
 
Meu avô era meu exemplo de força e rigidez, e me surpreendi ao vê-lo frágil diante de uma morte que não era a dele: eu me lembro de que haviam pequenos mosquitos rodeando tudo com seu mistério. E havia algo mais forte do que meu avô - constatei surpreso - e mais forte do que eu. E pela primeira vez eu senti o medo consciente do mundo: o mundo se contraia em dores, pois a vida pulsa em tudo e eu não entendia a morte.
 
Depois a mãe de um dos meus avôs morreu e - e a morte foi tão simples para ela, que só me lembro de que ela era magra e frágil, como a boneca de louça que havia sobre a velha estante - ambas claras, duras e empoeiradas, carregando sobre o flanco imóvel o peso de um corpo inútil.
 
Mais tarde, lembro-me de que uma amiga da família morrera e eu - tão simples quanto qualquer outra criança - e eu liguei para a casa dela alguns dias depois: mas foi a voz dela que atendera o telefone, me assustei e desliguei rápido; é que eu não queria ouvir a morte sussurando em meus ouvidos tão novos. Com essa morte eu senti o que se chama tristeza por alguém que se vai - pois ela fora uma grande amiga que me deixou uma herança que até hoje guardo comigo: uma coleção de pequeninos bonecos que é a maior riqueza que poderia ter - e me fez tão feliz a ponto de não chorar, mesmo na maior das tristezas que tive até então, eu estava feliz por tê-la comigo.
 
Mas houve um dia - ah, houve um dia - em que o sol estava forte e eu estava em férias escolares. Naquele dia eu estava na casa de minha mãe, e havia sobre a estante um retrato que mostrava ela ao lado do meu avô - e aquela fora a última foto que ele tirara: os olhos estavam rasos de lágrimas grossas e salgadas: mais uma vez ele estava frágil diante da nudez da vida: pois a morte é nua e fria. O telefone tocara e minha mãe saíra, eu fui até a padaria comprar coca-cola e vi que, bem distante, descendo a avenida, desciam minha mãe e uma tia.
 
Diante do caixão aberto, me lembrei de tudo o que passei em minha casa, e por mais que me esforçasse, as lágrimas não saíram - pois eu ainda não entendia a morte. Mas logo vieram as lágrimas e todo o resto. E havia o inútil consolo da fé: pois os mortos ainda restavam diante de nós. E quando eu me sinto irremediavelmente triste, eu me lembro de que fui criado por um homem forte e rígido, que nada temia: e me espanto com a força que consigo ao me lembrar disso - e os mortos, afinal, continuam todos vivos em mim: eu vivo os meus mortos todos os dias, e deixo-me viver por eles.
 
Mas ainda resta o mistério de o que é a morte; mas quem sabe a morte não deve ser entendida: ela deve ser sentida - pois sentir é uma forma de ser, e sendo eu permaneço vivo. Eu não entendia, e continuo não entendendo: mas eu ainda entenderei a morte, e viverei dela plenamente. E eu, se não me engano, vou morrer um dia: sim; é com um sim que tudo começa - e é com o mesmo sim, que tudo termina. E eu digo sim à vida, eu abro os braços e sorrio: sim.
 
 
 

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