sábado, 30 de março de 2013

Uma Distopia - Teocracia

Em um futuro não tão distante, os recém-nascidos saem da maternidade com uma certidão de nascimento e uma conta no Facebook, e Holywood já fez todas as adaptações possíveis de livros para o cinema, incluindo o Manual Básico da Informática (um sucesso de bilheteria). Mas, nesse futuro não tão distante, o Brasil é uma teocracia cristã.Até que não é nada mal viver nesse país. Se você é um cristão, claro. Afinal, você tem a certeza de que as pessoas no controle estão construindo um país santificado, e é sempre bom morar em um país que será poupado da ira devastadora de Deus no juízo final. Com a vantagem de ter belas praias.

A família é coisa sagrada nessa sociedade brasileira. Desde que seja formada por pai, mãe e filhos. Para impedir que outros arranjos familiares não-abençoados sejam feitos, algumas mudancinhas na Constituição impedem o casamento ou qualquer tipo de união entre pessoas do mesmo sexo. O divórcio também é proibido, pois o que Deus uniu ninguém separa. Nem as próprias pessoas envolvidas no relacionamento.

O Ministério da Família é instituído para cuidar dessas questões. Há campanhas e cartilhas ensinando como criar seus filhos e a família pode sofrer uma intervenção se eles começam a jogar RPG ou ouvir heavy metal que não seja gospel. Pastores atuam como psicólogos que dão suporte à família e resolvem querelas entre marido e mulher, pais e filhos, irmãos e irmãs. Mais ou menos como um programa Casos de Família, só que em um órgão público. E com leitura de trechos da Bíblia em vez de perguntas da plateia.

Não só há crucifixos nas repartições públicas, como há pias de água benta nas entradas, para que aqueles que passam nos prédios do governo possam se benzer e fazer o sinal da cruz. Antes de começar os trabalhos no Senado ou na Câmara, os parlamentares se unem em oração e são ungidos com óleo santo para que possam governar sob os desígnios divinos.

A Bíblia faz parte do material escolar oferecido pelo governo e nem é preciso dizer que nas aulas de ciências os alunos aprendem criacionismo. Teorias que colocam ideias perigosas na cabeça dos jovens são completamente abolidas. De forma que é melhor ser pego com revista de mulher pelada do que ser encontrado com um livro de Darwin ou até mesmo do Stephen Hawking. Suspensão na hora e mais dez Pais Nossos de penitência.

Marcar presença em missas ou cultos não é obrigatório, mas pagar o dízimo é. Além de todos os impostos para saúde, educação e segurança, o dízimo passa a ser um imposto recolhido de todos os brasileiros para as igrejas. O “Deus seja Louvado” impresso nas cédulas não nos deixa esquecer a quem pertence aquele dinheiro. Deixar de pagar o dízimo é crime tanto quanto sonegar o imposto de renda.

O atendimento na saúde melhorou. Como não há médicos para todos, pastores atendem pacientes que podem ser curados em uma sessão de descarrego. Eles ainda não dispensam o trabalho dos médicos; mas se um doente é curado, se alguém que foi baleado consegue sobreviver, se um câncer consegue ser retirado, atribuem a cura ao poder das orações feitas nas salas de cirurgia. Camisinhas e anti-concepcionais deixam de ser distribuídos pelo governo, para não incentivar a promiscuidade. Em compensação, o exorcismo passa a ser um serviço oferecido pelo sistema público de saúde.

As mulheres não têm que andar todas cobertas, como naqueles países bárbaros. Não, imagina. Aqui, elas só são proibidas de usar blusas muito decotadas, saias curtas ou calças justas. Também não podem cortar o cabelo, porque expor o pescoço e a nuca é coisa de mulher vulgar, e cabelo curto demais é coisa de mulher masculinizada — coisas nada boas aos olhos de Deus. Mas é altamente recomendado que estejam sempre lindas em Cristo, bem ao gosto de seus maridos.

A criminalização do aborto é tratada com mais rigor. Mulheres que tentam ou realizam um aborto, não importa o motivo, são presas e depois levadas para serem apedrejadas em praça pública. Às vezes acontece de morrerem nesse processo, mas a defesa da vida deve estar em primeiro lugar, certo? Esse também é o castigo para mulheres adúlteras. Ou que fazem sexo antes do casamento. A submissão da mulher presente na Bíblia passa a ser parte da Constituição e um dos valores mais caros à teocracia do Brasil.

O culto a outros deuses passa a ser ilegal. Terreiros de candomblé são destruídos ou lacrados pela polícia. Já os ateus são presos e afastados da sociedade, para o próprio bem dela. E ainda têm que aguentar a visita diária de um testemunha de Jeová na cadeia tentando lhes converter.

Em vez da Voz do Brasil, as emissoras de rádio passam a transmitir a Ave-Maria. O que é um problema: os evangélicos, apesar de terem sua parte do domínio da mídia, não gostam nada disso. As disputas de poder deixam de ser entre partidos e passam a ser entre as correntes cristãs. Conflitos civis entre evangélicos, católicos e outras denominações eclodem nas ruas. No governo, quem tem a maior bancada garante seus interesses. Sob a proteção de Deus, o Brasil funciona em plena democracia: o que significa que ganha o religioso que gritar mais alto.

Esse texto não passa de um delírio. Pura ficção. Afinal, uma teocracia à brasileira está bem longe de acontecer, né?

sexta-feira, 29 de março de 2013

Intolerância Religiosa

 
Por Dráuzio Varella


Sou ateu e mereço o mesmo respeito que tenho pelos religiosos.
A humanidade inteira segue uma religião ou crê em algum ser ou fenômeno transcendental que dê sentido à existência. Os que não sentem necessidade de teorias para explicar a que viemos e para onde iremos são tão poucos que parecem extraterrestres.
Dono de um cérebro com capacidade de processamento de dados incomparável na escala animal, ao que tudo indica só o homem faz conjecturas sobre o destino depois da morte. A possibilidade de que a última batida do coração decrete o fim do espetáculo é aterradora. Do medo e do inconformismo gerado por ela, nasce a tendência a acreditar que somos eternos, caso único entre os seres vivos.
Todos os povos que deixaram registros manifestaram a crença de que sobreviveriam à decomposição de seus corpos. Para atender esse desejo, o imaginário humano criou uma infinidade de deuses e paraísos celestiais. Jamais faltaram, entretanto, mulheres e homens avessos a interferências mágicas em assuntos terrenos. Perseguidos e assassinados no passado, para eles a vida eterna não faz sentido.
Não se trata de opção ideológica: o ateu não acredita simplesmente porque não consegue. O mesmo mecanismo intelectual que leva alguém a crer leva outro a desacreditar.
Os religiosos que têm dificuldade para entender como alguém pode discordar de sua cosmovisão devem pensar que eles também são ateus quando confrontados com crenças alheias.
Que sentido tem para um protestante a reverência que o hindu faz diante da estátua de uma vaca dourada? Ou a oração do muçulmano voltado para Meca? Ou o espírita que afirma ser a reencarnação de Alexandre, o Grande? Para hindus, muçulmanos e espíritas esse cristão não seria ateu?
Na realidade, a religião do próximo não passa de um amontoado de falsidades e superstições. Não é o que pensa o evangélico na encruzilhada quando vê as velas e o galo preto? Ou o judeu quando encontra um católico ajoelhado aos pés da virgem imaculada que teria dado à luz ao filho do Senhor? Ou o politeísta ao ouvir que não há milhares, mas um único Deus?
Quantas tragédias foram desencadeadas pela intolerância dos que não admitem princípios religiosos diferentes dos seus? Quantos acusados de hereges ou infiéis perderam a vida?
O ateu desperta a ira dos fanáticos, porque aceitá-lo como ser pensante obriga-os a questionar suas próprias convicções. Não é outra a razão que os fez apropriar-se indevidamente das melhores qualidades humanas e atribuir as demais às tentações do Diabo. Generosidade, solidariedade, compaixão e amor ao próximo constituem reserva de mercado dos tementes a Deus, embora em nome Dele sejam cometidas as piores atrocidades.
Os pastores milagreiros da TV que tomam dinheiro dos pobres são tolerados porque o fazem em nome de Cristo. O menino que explode com a bomba no supermercado desperta admiração entre seus pares porque obedeceria aos desígnios do Profeta. Fossem ateus, seriam considerados mensageiros de Satanás.
Ajudamos um estranho caído na rua, damos gorjetas em restaurantes aos quais nunca voltaremos e fazemos doações para crianças desconhecidas, não para agradar a Deus, mas porque cooperação mútua e altruísmo recíproco fazem parte do repertório comportamental não apenas do homem, mas de gorilas, hienas, leoas, formigas e muitos outros, como demonstraram os etologistas.
O fervor religioso é uma arma assustadora, sempre disposta a disparar contra os que pensam de modo diverso. Em vez de unir, ele divide a sociedade - quando não semeia o ódio que leva às perseguições e aos massacres.
Para o crente, os ateus são desprezíveis, desprovidos de princípios morais, materialistas, incapazes de um gesto de compaixão, preconceito que explica por que tantos fingem crer no que julgam absurdo.
Fui educado para respeitar as crenças de todos, por mais bizarras que a mim pareçam. Se a religião ajuda uma pessoa a enfrentar suas contradições existenciais, seja bem-vinda, desde que não a torne intolerante, autoritária ou violenta.
Quanto aos religiosos, leitor, não os considero iluminados nem crédulos, superiores ou inferiores, os anos me ensinaram a julgar os homens por suas ações, não pelas convicções que apregoam.

terça-feira, 26 de março de 2013

Especial 72 anos de Richard Dawkins

 
 
Hoje, 26 de março de 2013, o escritor, biólogo, evolucionista, zoólogo, etólogo e professor aposentado natural do Quênia, Clinton Richard Dawkins, completa 72 anos, e vou contar um pouco da minha relação com Sr. Dawkins em comemoração a esta data.
 
 
Conheci o trabalho de Richard Dawkins quando tinha meus 15 anos, eu era então um estudante do Ensino Médio, ávido pelo conhecimento em todas as áreas possíveis: História, Geografia, Matemática, Física, Literatura, Filosofia, Sociologia, entre tantas outras, incluindo a Biologia. E em Biologia havia algo que poderia preencher uma lacuna na minha mente, um vazio que eu sempre sentia quando um assunto específico vinha a tona: de onde viemos?, como surgimos?, quando surgimos? E para essas perguntas havia sempre o bom e velho senhor deus judaico-cristão para socorrer as pessoas com menos instrução – não estou falando que cristãos são mal instruídos, estou querendo dizer que quando as pessoas não sabiam me explicar estes assuntos, recorriam à religião. “Foi Deus quem nos fez”, era o que eu ouvia em casa e fora dela. Na época eu não tinha acesso à internet então não havia tanta facilidade quanto tenho hoje, passados quase quatro anos. Foi então que me lembrei daquela outra história, do “homem que veio do macaco”, e me interessei, porque valia mais a pena vir do macaco do que do barro (mas este é um assunto para outra hora). O fato é que eu nunca engoli a versão Criacionista da história, achava – e ainda acho – muito pouco provável que tudo o que vemos hoje tenha sido feito num espaço tão curto de tempo. Fui atrás da história do macaco, e comprei a minha edição de bolso d’A Origem das Espécies, de Sir Charles Darwin, e vi que não era nada de “vir do macaco”, e sim de ter um ancestral comum com os nossos primos primatas (^.^). O tempo passou e o interesse pelo Evolucionismo foi crescendo cada vez mais, procurava sobre o assunto nas mais diversas enciclopédias, lia e relia a Origem das Espécies buscando compreender melhor o texto, buscava reportagens sobre o tema, enfim, corri atrás do que me interessava. E neste correr atrás dei de cara com O Maior Espetáculo da Terra – As Evidências da Evolução, de Richard Dawkins, que tinha acabado de ser lançado no Brasil. Era um livro grande, um pouco pesado demais para ser carregado na bolsa, com algumas figuras aqui e ali, e caro. Mas comprei, juntei dinheiro, dei algumas aulas de Português e Matemática, traduzi algumas coisas aqui e ali por um preço camarada, e depois de muito esforço, comprei o livro que me apresentou às obras de Dawkins.

 
Finalmente eu tinha encontrado as respostas às minhas perguntas até então sem solução, quase blasfemas aos olhos de alguns. Este senhor Dawkins me fez enxergar o mundo com outros olhos, entendê-lo. Ler Dawkins é passar a viver no mundo e sentir-se parte da Evolução – não uma criação, uma evolução da qual fazemos parte, para nossa honra. É uma visão muito mais reconfortante do que a que tinha até então: um ser inatingível e inimaginável por mim, que havia criado o homem com o simples barro que tinha sob meus pés, fora substituído por um processo de sobrevivência, de adaptação, de evolução – que culminou em mim e em você. Era lindo, racional, evidenciado, perfeito.
Depois disso veio a minha fome por Dawkins foi crescendo cada vez mais: logo comprei O Gene Egoísta, li, reli, devorei o livro sem nenhuma vergonha; depois O Relojoeiro Cego, O Capelão do Diabo, Desvendando o Arco-Íris, e, por fim, o polêmico, o inigualável, a “Bíblia” do ateu: God Delusion – Deus, um Delírio. Que, por sinal, comecei a ler hoje, em comemoração ao aniversário de Dawkins.
 
 
Não, eu não gosto de Dawkins nesta onda do “neo-ateísmo”: gosto de Dawkins pelo mesmo motivo que gosto de Saramago, Dostoievski, Clarice, Woolf, e tantos outros – porque ao lê-los, eu me entendo melhor, eu entendo o mundo em que vivo, eu me enxergo no mundo.
“Richard Dawkins pertence a um seleto grupo de cientistas cuja honestidade intelectual está muito acima do nível sórdido em que são feitas concessões à opinião pública em troca de dinheiro e popularidade fácil”, li isso em algum lugar (não me lembro onde), e não há melhores palavras que o definam.

 
 
Vamos agora a alguns dados biográficos:
Clinton Richard Dawkins, um dos 03 intelectuais mais importantes da atualidade, nasceu em Nairóbi, capital do Quênia, em 26 de março de 1941. É um dos maiores (se não o maior) defensores da Teoria da Evolução proposta por Charles Darwin, tendo publicado um vasto material que aborda diferentes aspectos deste assunto, o ex-professor de Oxford trabalhou primeiramente no Instituto de Zoologia do Balliol College, em Oxford, graduando-se em 1962 e tendo como tutor de doutorado o biólogo Nikolaas Tinbergen (autor de The Study of Instinct – 1951). Antes de ser membro do New College em Oxford, lecionou como professor assistente de Zoologia na Universidade de Berkeley por dois anos.
Desde a publicação de seu aclamado “O Gene Egoísta” em 1976, Richard vem ganhando certa notoriedade no meio acadêmico e científico. Além disso, Dawkins participa ativamente da divulgação de material científico, além de contribuir com publicações para vários jornais britânicos. Seus textos costumam versar sobre assuntos polêmicos como, por exemplo, a Religião e seu papel na sociedade. Em 2001 foi eleito membro da Royal Society e em 2005 foi eleito como o maior intelectual britânico.
Ao lado de Christopher Hitchens, Daniel Dannet e Sam Harris, Richard Dawkins faz parte dos chamados, "Quatro Cavaleiros do Ateísmo"; devido à militancia ateísta que este grupo representa, a leitura de obras como Deus um Delírio, Deus não é Grande, Carta a uma Nação Cristã e Quebrando o Encanto, são praticamente indispensáveis para qualquer ateu, agnóstico ou afim.
 
PARABÉNS DAWKINS :D (minha singela homenagem a este grande homem).
 
OBRAS PUBLICADAS:
* O Gene Egoísta (1976);
*O Fenótipo Estendido (1982);
* O Relojoeiro Cego (1986);
* O Rio que Saia do Éden (1995);
* A Escalada do Monte Improvável (1997);
* Desvendando o Arco-Íris (1998);
* O Capelão do Diabo (2003);
* A Grande História da Evolução (2004);
* Deus, um Delírio (2006);
* O Maior Espetáculo da Terra - As Evidências da Evolução (2oo9);
* A Magia da Realidade: Como Sabemos o Que é Verdade (2011).
 
 
FONTE BIBLIOGRÁFICA:
* Dawkins, Richard. The God Delusion. [S.l.]: Transworld Publishers, 2006. p. 5. ISBN 0-5930-5548-9
* European Evolutionary Biologists Rally Behind Richard Dawkins' Extended Phenotype. Sciencedaily.com (20 January 2009). Página visitada em 2011-06-28.
 
* James van der Pool; BBC Horizon (16 de setembro de 2008). The presidents' guide to science (em Inglês). Página visitada em 19 de março de 2011. "In order not to believe in evolution you must either be ignorant, stupid or insane"
 
* Previous holders of The Simonyi Professorship. The University of Oxford. Página visitada em 2010-09-23.
 
* Texto Barbara Axt; Super Interessante (Agosto de 2007). O aitolá dos ateus. Página visitada em 19 de março de 2011. "“Meu grande sonho é a completa destruição de todas as religiões do mundo” [...] Dawkins é considerado um dos mais importantes intelectuais do mundo e um dos mais famosos divulgadores de assuntos científicos. [...] O Gene Egoísta, de 1976 ... revolucionou a área de biologia evolutiva"
 
 
 

sexta-feira, 22 de março de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (XXIV - Último Capítulo)

 
 
Como um sopro gelado, uma transida frialdade, a morte de Lázaro apagou de golpe o ardor combatente que João havia feito nascer no ânimo de Jesus e em que, durante uma arrastada semana de reflexão e alguns breves instantes de acção, se tinham confundido, num sentimento único, o serviço de Deus e o serviço do povo.  Passados os primeiros dias do luto, quando, aos poucos, as obrigações e os hábitos do quotidiano principiavam a retomar o espaço perdido, pagando-o com momentâneos adormecimentos duma dor que não cedia, foram Pedro e André falar a Jesus, perguntar-lhe que projectos tinha, se se iriam outra vez a pregar às cidades ou voltavam a Jerusalém para um novo assalto, pois já os discípulos se andavam queixando da prolongada inactividade, que assim não pode ser, não foi para isto que deixamos fazenda, trabalho e família. Jesus olhou-os como se os não distinguisse entre os seus próprios pensamentos, ouviu-os como se tivesse de identificar-lhes as vozes no meio de um coro de gritos desencontrados, e ao cabo de um longo silêncio disse-lhes que o esperassem um pouco mais, que tinha ainda de pensar, que sentia estar para acontecer algo que definitivamente decidiria das suas vidas e das suas mortes. Também disse que não tardaria a juntar-se a eles no acampamento, e isto não o puderam entender nem Pedro nem André, ficarem as irmãs sozinhas quando ainda estava por resolver o que fariam os homens, Não precisas voltar para nós, melhor é que te deixes estar, disse Pedro, que não podia saber que Jesus estava vivendo entre dois tormentos, o dos seus deveres para com homens e mulheres que tudo tinham largado e abandonado para o seguirem, e aqui, nesta casa, com estas duas irmãs, iguais e inimigas como o rosto e o espelho, uma contínua, minuciosa, arrepiante dilaceração moral. Lázaro estava presente e não se retirava. Estava presente nas duras palavras de Marta, que não perdoava a Maria ter ela impedido a ressurreição do próprio irmão, que não podia perdoar a Jesus a sua renúncia a usar de um poder que recebera de Deus. Estava presente nas lágrimas inconsoláveis de Maria que, por não sujeitar o irmão a uma segunda morte, ia ter de viver, para sempre, com o remorso de não o haver libertado desta. Estava presente, enfim, corpo imenso enchendo todos os espaços e recantos, na perturbada mente de Jesus, a quádrupla contradição em que se encontrava, concordar com o que Maria dissera e recriminá-la por tê-lo dito, compreender o pedido de Marta e censurá-la por lho ter feito. Jesus olhava a sua pobre alma e via-a como se quatro cavalos furiosos a estivessem puxando e repuxando em quatro direcções opostas, como se quatro cabos enrolados em cabrestantes lhe rompessem lentamente todas as fibras do espírito, como se as mãos de Deus e as mãos do Diabo, divina e diabolicamente, se entretivessem, jogando ao jogo dos quatro-cantinhos, com o que dele ainda restava. À porta da casa que fora de Lázaro vinham os míseros e os chagados a implorar a cura dos seus ofendidos corpos, às vezes Marta aparecia a expulsá-los, como se protestasse, Não houve salvação para o meu irmão, não haverá cura para vós, mas eles tornavam mais tarde, tornavam sempre, até que conseguiam chegar aonde estava Jesus, que os sarava e mandava embora, porém não lhes dizia, Arrependei-vos, ficar curado era como nascer de novo sem haver morrido, quem nasce não tem pecados seus, não tem que se arrepender do que não fez. Mas estas obras de regeneração física, se não fica mal dizê-lo, sendo embora de misericórdia máxima, deixavam no coração de Jesus um travo ácido, uma espécie de amargo ressaibo, porque, em verdade, não eram elas mais do que adiamentos das decadências inevitáveis, aquele que hoje se foi daqui sano e contente voltará amanhã chorando as novas dores que não terão remédio. Chegou a tristeza de Jesus a um ponto tal que um dia Marta lhe disse, Não me morras tu agora, que então iria saber que coisa era morrer-me Lázaro novamente, e Maria de Magdala, no segredo da escura noite, murmurando sob o lençol comum, queixa e gemido de animal que se escondeu para sofrer, Precisas hoje de mim como nunca precisaste antes, sou eu que não posso alcançar-te onde estás, porque te fechaste atrás duma porta que não é para forças humanas, e Jesus, que a Marta tinha respondido, Na minha morte estarão presentes todas as mortes de Lázaro, ele é o que sempre estará morrendo e não pode ser ressuscitado, pediu e rogou a Maria, Mesmo quando não possas entrar, não te afastes de mim, estende-me sempre a tua mão mesmo quando não puderes ver-me, se o não fizeres, esquecer-me-ei da vida, ou ela me esquecerá. Dias passados, Jesus foi juntar-se aos discípulos, e Maria de Magdala foi com ele, Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti, disse-lhe, e ele respondeu, Quero estar onde a minha sombra estiver, se lá é que estiverem os teus olhos. Amavam-se e diziam palavras como estas, não apenas por serem belas ou verdadeiras, se é possível ser-se o mesmo ao mesmo tempo, mas porque pressentiam que o tempo das sombras estava chegando na sua hora, e era preciso que começassem a acostumar-se, ainda juntos, à escuridão da ausência definitiva.
Então chegou ao acampamento a notícia da prisão de João o Baptista. Não se sabia mais do que isto, que havia sido preso, e também que o mandara encarcerar o próprio Herodes, motivo por que, não podendo imaginar-se ali outras razões, foram Jesus e a sua gente levados a pensar que a causa do sucedido só podiam ter sido os incessantes anúncios da chegada do Messias, que era a final substância do que João proclamava em todos os lugares, entre baptismo e baptismo, Outro virá que vos baptizará pelo fogo, entre imprecação e imprecação, Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera que está para vir. Disse então Jesus aos discípulos que deviam estar preparados para toda a espécie de vexames e perseguições, pois era de crer que, correndo já o país, e desde não pouco tempo, notícia do que eles próprios andavam a fazer e a dizer no mesmo sentido, concluísse Herodes que dois e dois são quatro e buscasse num filho de carpinteiro, que de ser filho de Deus se gabava, e nos seus seguidores, a segunda e mais poderosa cabeça do dragão que ameaçava deitá-lo abaixo do trono. Sem dúvida, não é melhor uma má notícia do que notícia nenhuma, mas justifica-se que a recebam com serenidade de alma aqueles que, havendo esperado e ansiado por um tudo, se tinham visto, nos últimos tempos, postos diante do nada. Perguntavam-se uns aos outros, e todos a Jesus, que era o que deveriam fazer, se manterem-se juntos, e juntos enfrentarem a maldade de Herodes, ou dispersarem-se pelas cidades, ou, ainda, recolherem-se ao deserto, mantendo-se de mel silvestre e gafanhotos, como fizera João antes de ter de lá saído, para maior glória de Jesus e, pelos vistos, sua própria desgraça. Mas, como não havia sinal de estarem vindo os soldados de Herodes para Betânia a matar estes outros inocentes, puderam demorar-se Jesus e os seus a ponderar as diferentes alternativas, e nisto estavam quando chegaram, num pé só, segunda e terceira notícias, que João havia sido degolado, e que o motivo do encarceramento e execução nada tinha que ver com anúncios de Messias ou reinos de Deus, mas ter ele andado a clamar e a vociferar contra o adultério que o mesmo Herodes cometia tendo casado com Herodíades, sua sobrinha e cunhada, em vida do marido dela. Que João estivesse morto, foi causa de numerosas lágrimas e lamentações em todo o acampamento, não se notando, entre homens e mulheres, diferença nas expressões da mágoa, mas que ele tivesse sido morto pelo motivo que se dizia, era algo que escapava à compreensão de quantos ali estavam, porque uma outra razão, essa, sim, suprema, deveria ter prevalecido na sentença de Herodes, e, afinal, era como se ela não tivesse existência hoje nem devesse ter qualquer importância amanhã, dizia-o em cólera Judas de Iscariote, a quem, como estaremos lembrados, tinha João baptizado, Que é isto, perguntava a toda a companhia reunida, mulheres incluídas, anuncia João que vem aí o Messias a redimir o povo e matam-no por denúncias de concubinato e adultério, de cama e casamento de tio e cunhada, como se nós não soubéssemos que esse foi sempre o viver corrente e comum da família, desde o primeiro Herodes aos dias que vivemos, Que é isto, repetia, se foi Deus quem mandou João a anunciar o Messias, e eu não duvido, pela simples razão de que nada pode acontecer sem que o tivesse querido Deus, se foi Deus, expliquem-me então os que dele conhecem mais do que eu por que quer ele que os seus próprios desígnios sejam assim rebaixados na terra, e, por favor, não argumenteis que Deus sabe e nós não podemos saber, porque eu vos responderia que o que quero saber é precisamente o que Deus sabe. Passou um frio de medo por toda a assembleia, como se a ira do Senhor viesse já a caminho para fulminar o ousado e todos os demais que, imediatamente, o não tinham feito pagar a blasfêmia. Ora, não estando ali Deus presente para dar satisfação a Judas de Iscariote, o desafio só podia ser levantado por Jesus, que era quem por mais perto andava do supremo interpelado. Fosse outra a religião e a situação outra, talvez que as coisas tivessem ficado por aqui, por este sorriso enigmático de Jesus, em que, apesar de tão leve e fugidio, fora possível reconhecer três partes, uma de surpresa, outra de benevolência, outra de curiosidade, o que, parecendo muito, nada era, por ser a surpresa instantânea, condescendente a benevolência, fatigada a curiosidade. Mas o sorriso, assim como veio, assim se foi, e o que no seu lugar ficou foi uma palidez mortal, um rosto subitamente cavado, de quem acabou de ver, em figura e em presença, o seu próprio destino. Numa voz lenta, em que quase não havia expressão, Jesus disse enfim, Retirem-se as mulheres, e Maria de Magdala foi a primeira a levantar-se. Depois, quando o silêncio, pouco a pouco, se converteu em muralha e tecto para fechá-los na mais funda caverna da terra, Jesus disse, Pergunte João a Deus por que fez morrer assim, por uma causa tão mesquinha, quem tão grandes coisas tinha vindo anunciar, disse e calou-se por um momento, e como Judas de Iscariote parecia querer falar, levantou a mão para que sobrestivesse e concluiu, O meu dever, acabei de compreender agora, é dizer-vos eu o que sei do que Deus sabe, se não mo vai impedir o mesmo Deus. Entre os discípulos cresceu um rumor de palavras trocadas em voz alterada, um desassossego, uma excitação inquieta, temiam saber o que por saber ansiavam, só Judas de Iscariote mantinha a expressão de desafio com que provocara o debate. Disse Jesus, Sei o meu destino e o vosso, sei o destino de muitos dos que hão-de nascer, conheço as razões de Deus e os seus desígnios, e de tudo isto devo falar-vos porque a todos toca e mais tocará ainda no futuro, Porquê, perguntou Pedro, por que temos nós de saber o que te foi transmitido por Deus, melhor seria que te calasses, Estaria no poder de Deus fazer-me calar agora mesmo, Então, calares ou não calares tem a mesma importância para Deus, significa o mesmo nada, e se Deus tem falado pela tua boca, pela tua boca irá continuar a falar, mesmo quando, como agora, julgues contrariar a sua vontade, Tu sabes, Pedro, que serei crucificado, Disseste-mo, Mas não te disse que tu próprio, e André, e Filipe, o sereis também, que Bartolomeu será esfolado, que a Mateus o matarão bárbaros, que a Tiago filho de Zebedeu o degolarão, que o segundo Tiago, filho de Alfeu, será lapidado, que Tomé será alanceado, que a Judas Tadeu lhe esmagarão a cabeça, que Simão será cortado por uma serra, isto não o sabias, mas sabê-lo agora, e sabem-no todos. A revelação foi recebida em silêncio, não havia mais motivo para ter medo de um futuro que se dera a conhecer, era como se, afinal, Jesus apenas lhes tivesse dito, Morrereis, e eles lhe respondessem em coro, Grande novidade, isso já nós sabíamos. Mas João e Judas de Iscariote não ouviram que deles se falasse, e por isso perguntaram, E eu, e Jesus disse, Tu, João, chegarás a velho e de velho morrerás, quanto a ti, Judas de Iscariote, evita as figueiras, não tarda que te vás a enforcar numa por tuas próprias mãos, Morreremos, então, por tua causa, disse uma voz, mas não se soube de quem havia sido, Por causa de Deus, não por minha causa, respondeu Jesus, Que quer Deus, afinal, perguntou João, Quer uma assembleia maior do que aquela que tem, quer o mundo todo para si, Mas se Deus é senhor do universo, como pode o mundo não ser seu, e não desde ontem ou amanhã, mas desde sempre, perguntou Tomé, Isso não sei, disse Jesus, Mas tu, que durante tanto tempo viveste com todas essas coisas no coração, por que no-las vens contar agora, Lázaro, que eu curei, morreu, João Baptista, que me anunciou, morreu, a morte já está entre nós, Todos os seres têm de morrer, disse Pedro, os homens como os outros, Morrerão muitos no futuro por vontade de Deus e causa sua, Se é vontade de Deus, é causa santa, Morrerão porque não nasceram antes nem depois, Serão recebidos na vida eterna, disse Mateus, Sim, mas não deveria ser tão dolorosa a condição para lá entrar, Se o filho de Deus disse o que disse, a si próprio se negou, protestou Pedro, Enganas-te, só ao filho de Deus é permitido falar assim, o que na tua boca seria blasfêmia, na minha é a outra palavra de Deus, respondeu Jesus, Falas como se tivéssemos de escolher entre ti e Deus, disse Pedro, Sempre a vossa escolha terá de ser entre Deus e Deus, eu estou como vós e os homens, no meio, Que mandas então que façamos, Que ajudeis a minha morte a poupar as vidas dos que hão-de vir, Não podes ir contra a vontade de Deus, Não, mas o meu dever é tentar, Tu estás salvo porque és filho de Deus, mas nós perderemos a nossa alma, Não, se decidirdes obedecer-me, é ainda a Deus que estareis obedecendo. No horizonte, lá no último fim do deserto, apareceu o bordo duma lua vermelha. Fala, disse André, mas Jesus esperou que a lua toda se levantasse da terra, enorme e sangrenta, a lua, e só depois disse, O filho de Deus deverá morrer na cruz para que assim se cumpra a vontade do Pai, mas, se no lugar dele puséssemos um simples homem, já não poderia Deus sacrificar o Filho, Queres pôr um homem no teu lugar, um de nós, perguntou Pedro, Não, eu é que irei ocupar o lugar do Filho, Em nome de Deus, explica-te, Um simples homem, sim, mas um homem que se tivesse proclamado a si mesmo rei dos Judeus, que andasse a levantar o povo para derrubar Herodes do trono e expulsar da terra os romanos, isto é o que vos peço, que corra um de vós ao Templo a dizer que eu sou esse homem, e talvez que, se a justiça for rápida, não tenha a de Deus tempo de emendar a dos homens, como não emendou a mão do carrasco que ia degolar João. O assombro tolheu a voz de todos, mas por pouco tempo, que logo de todas as bocas saltaram palavras de indignação, de protesto, de incredulidade, Se és o filho de Deus, como filho de Deus tens de morrer, clamava um, Comi do pão que repartiste, como poderia agora denunciar-te, gemia outro, Não queira ser rei dos Judeus aquele que vai ser rei do mundo, dizia este, Morra logo quem daqui se mover para acusar-te, ameaçava aquele. Foi então que se ouviu, clara, distinta, por cima do alvoroço, a voz de Judas de Iscariote, Eu vou, se assim o queres. Lançaram-lhe os outros as mãos, e já havia facas saindo das dobras das túnicas, quando Jesus ordenou, Larguem-no, que ninguém lhe faça mal. Depois levantou-se, abraçou-o e beijou-o nas duas faces, Vai, a minha hora é a tua hora. Sem uma palavra, Judas de Iscariote lançou a ponta do manto por cima do ombro e, como se a noite o tivesse engolido, desapareceu na escuridão.
Os guardas do Templo e os soldados de Herodes vieram prender Jesus na primeira luz da manhã. Depois de cercarem caladamente o acampamento, entraram de rompante uns tantos, armados de espada e lança, e o que neles mandava gritou, Onde está esse que diz ser rei dos Judeus, e outra vez, Que se apresente esse que diz ser o rei dos Judeus, então Jesus saiu da sua tenda, estava com ele Maria de Magdala que vinha chorando, e disse, Eu sou o rei dos Judeus. Então foi-se para ele um soldado que lhe atou as mãos, ao mesmo tempo que lhe dizia em voz baixa, Se, apesar de ires preso hoje, vieres um dia a ser meu rei, lembra-te de que foi por ordem doutro que te vim prender, dirás então que o prenda a ele, e eu obedecer-te-ei, como agora obedeci, e Jesus disse, Um rei não prende outro rei, um deus não mata outro deus, para que houvesse quem prendesse e matasse é que foram feitos os homens comuns. Lançaram também a Jesus uma corda aos pés para que não pudesse fugir, e Jesus disse consigo mesmo, porque assim o cria, Tarde chega, eu já fugi. Foi então que Maria de Magdala deu um grito como se se lhe estivesse rompendo a alma, e Jesus disse, Chorarás por mim, e vós, mulheres, todas haveis de chorar, se for chegada uma hora igual para estes que aqui estão e para vós próprias, mas sabei que, por cada lágrima vossa, se derramariam mil no tempo que há-de vir se eu não fosse acabar como é minha vontade. E, voltando-se para o que mandava, disse, Deixa ir estes homens que estavam comigo, eu é que sou o rei dos Judeus, não eles, e, sem mais, avançou para o meio dos soldados, que o rodearam. O sol tinha aparecido e subia no céu, por cima das casas de Betânia, quando a multidão de gente, com Jesus posto adiante, entre dois soldados que seguravam as pontas da corda que lhe atava as mãos, começou a subir a estrada para Jerusalém. Atrás iam os discípulos e as mulheres, eles irados, elas soluçando, mas tanto era o que valiam os soluços dumas como a ira doutros, Que devemos fazer, perguntavam-se à boca pequena, saltar sobre os soldados e tentar libertar Jesus, morrendo talvez na luta, ou dispersar-nos antes que venha também ordem de prisão para nós, e como não eram capazes de escolher entre isto e aquilo, nada fizeram, e foram seguindo, a distância, o destacamento da tropa. Em certa altura, viram que o grupo da frente tinha parado e não perceberam porquê, salvo se viera contra-ordem e agora estavam desatando os nós de Jesus, mas para pensar tal coisa era preciso ser muito louco da imaginação, e alguns havia, porém não tanto. Desatara-se um nó, de facto, mas o da vida de Judas de Iscariote, ali, numa figueira à beira do caminho por onde Jesus teria de passar, pendurado pelo pescoço, estava o discípulo que se apresentara voluntário para que pudesse ser cumprida a derradeira vontade do mestre. O que comandava a escolta fez sinal a dois soldados para que cortassem a corda e descessem o corpo, Ainda está quente, disse um deles, bem podia ser que Judas de Iscariote, sentado no ramo da figueira, já com o laço da corda passado ao pescoço, tivesse estado, pacientemente, à espera de ver aparecer Jesus, lá longe, na curva da estrada, para do ramo abaixo se lançar, em paz consigo mesmo por ter cumprido o seu dever. Jesus aproximou-se, não o impediram os soldados, e olhou demoradamente a cara de Judas, retorcida pela rápida agonia, Ainda está quente, tornara a dizer o soldado, então pensou Jesus que podia, se quisesse, fazer a este homem o que a Lázaro não fizera, ressuscitá-lo, para que viesse a ter, noutro dia, noutro lugar, a sua própria e irrenunciável morte, distante e obscura, e não a vida e a memória intermináveis duma traição. Mas é sabido que só o filho de Deus tem o poder de fazer ressuscitar, não o tem o rei dos Judeus que aqui vai, de espírito mudo e pés e mãos atados. O que mandava disse, Deixem-no aí para que o enterrem os de Betânia ou o comam os corvos, mas vejam primeiro se tem valores, e os soldados procuraram e não acharam, Nem uma moeda, disse um deles, não havia de que admirar-se, o dos fundos da comunidade era Mateus, que sabia do ofício, tendo sido publicano no tempo em que se chamava Levi. Não lhe pagaram a denúncia, murmurou Jesus, e o outro, que o ouvira, respondeu, Quiseram-no, mas ele disse que tinha por costume pagar as suas contas, e aí está, já não as paga mais. Seguiu adiante a marcha, alguns discípulos ficaram a olhar piedosamente o cadáver, mas João disse, Deixemo-lo, esse não era dos nossos, e o outro Judas, o que também é Tadeu, acudiu a emendar, Queiramo-lo, ou não, há-de ser sempre dos nossos, não saberemos o que fazer com ele, e no entanto continuará a ser dos nossos. Prossigamos, disse Pedro, o nosso lugar não é ao pé de Judas de Iscariote, Tens razão, disse Tomé, o nosso lugar deveria ser ao lado de Jesus, mas vai vazio.
Entraram enfim em Jerusalém e Jesus foi levado ao conselho dos anciãos, príncipes dos sacerdotes e escribas. Estava lá o sumo sacerdote, que se alegrou ao vê-lo e lhe disse, Eu avisei-te, mas tu não quiseste ouvir-me, agora o teu orgulho não poderá defender-te e as tuas mentiras irão condenar-te, Que mentiras, perguntou Jesus, Uma, a de seres o rei dos Judeus, Eu sou o rei dos Judeus, A outra, a de seres o filho de Deus, Quem te disse que eu digo que sou o filho de Deus, Todos por aí, Não lhes dês ouvidos, eu sou o rei dos Judeus, Então, confessas que não és o filho de Deus, Repito que sou o rei dos Judeus, Tem cuidado, olha que só essa mentira basta para que sejas condenado, O que disse, disse, Muito bem, vou-te mandar ao procurador dos romanos, que está ansioso por conhecer o homem que quer expulsá-lo a ele e tirar estes domínios ao poder de César. Levaram Jesus dali os soldados ao palácio de Pilatos e como já tinha corrido a notícia de que aquele que dizia ser rei dos Judeus, o que espancara os cambistas e deitara fogo às tendas, havia sido preso, acorriam as pessoas a ver que cara fazia um rei quando o levavam pelas ruas à vista de toda a gente, de mãos atadas como um criminoso comum, sendo indiferente, para o caso, se era rei dos autênticos ou dos que presumiam de o ser. E, como sempre acontece, porque o mundo não é todo igual, havia gente que tinha pena, outra que não tinha, uns que diziam, Deixem-no ir, que é doido, outros, pelo contrário, achavam que punir um crime é dar um exemplo e que, se aqueles são muitos, estes não devem ser menos. Pelo meio da multidão, com ela confundidos, andavam meio perdidos os discípulos, e também as mulheres que com eles tinham vindo, estas conheciam-se logo pelas lágrimas, só uma delas é que não chorava, era Maria de Magdala, porque o choro se lhe estava queimando dentro.
Não era grande a distância entre a casa do sumo sacerdote e o palácio do procurador, mas a Jesus parecia que não acabava de chegar lá nunca, e não por serem insuportáveis a esse ponto as vaias e os apupos da multidão, finalmente decepcionada pela triste figura que ia fazendo aquele rei, mas porque lhe tardava comparecer ao encontro que por sua vontade aprazara com a morte, não fosse Deus olhar ainda para este lado, e dizer, Que é lá isto, não estás a cumprir o combinado. À porta do palácio havia soldados de Roma a quem os de Herodes e os guardas do Templo entregaram o preso, ficando estes de fora, à espera do resultado, e entrando com ele apenas uns quantos sacerdotes que tinham autorização. Sentado na sua cadeira de procurador, Pilatos, que este era o nome, viu entrar uma espécie de maltrapilho, barbudo e descalço, de túnica manchada de nódoas antigas e recentes, estas de frutos maduros que os deuses haviam criado para outro fim, não para serem desabafo de rancores e sinal de ignomínia. De pé, diante dele, o prisioneiro aguardava, a cabeça tinha-a direita, mas o olhar perdia-se no espaço, num ponto próximo, porém indefinível, entre os olhos de um e os olhos do outro. Pilatos só conhecia duas espécies de acusados, os que baixavam os olhos e os que deles se serviam como carta de desafio, aos primeiros desprezava-os, aos segundos temia-os sempre um pouco e por isso condenava-os mais depressa. Mas este estava ali e era como se não estivesse, tão seguro de si como se fosse, de facto e de direito, uma real pessoa, a quem, por ser tudo isto um deplorável mal-entendido, não tarda que venham restituir a coroa, o ceptro e o manto. Pilatos acabou por concluir que o mais apropriado ainda seria incluir este preso na segunda espécie deles e julgá-lo em conformidade, posto o que, passou ao interrogatório, Como te chamas, homem, Jesus, filho de José, nasci em Belém de Judeia, mas conhecem-me como Jesus de Nazaré porque em Nazaré de Galileia vivi, Teu pai, quem era, Já to disse, o seu nome era José, Que ofício tinha, Carpinteiro, Explica-me então como saiu de um José carpinteiro um Jesus rei, Se um rei pode fazer filhos carpinteiros, um carpinteiro deve poder fazer filhos reis. Nesta altura, interveio um sacerdote dos principais, dizendo, Lembro-te, ó Pilatos, que este homem também tem afirmado que é filho de Deus, Não é verdade, apenas digo que sou o filho do Homem, respondeu Jesus, e o sacerdote, Pilatos, não te deixes enganar, na nossa religião tanto faz dizer filho do Homem como filho de Deus. Pilatos fez um gesto indiferente com a mão, Se ele andasse por aí a apregoar que era filho de Júpiter, o caso, tendo em conta que outros houve antes, interessar-me-ia, mas que ele seja, ou não seja, filho do vosso deus, é questão sem importância, Julga-o então por se dizer rei dos Judeus, que isso é o bastante para nós, Falta saber se o será também para mim, respondeu Pilatos, de mau modo. Jesus esperava tranquilamente o fim do diálogo e o recomeço do interrogatório. Que dizes tu que és, perguntou o procurador, Digo o que sou, o rei dos Judeus, E que é que pretende o rei dos Judeus que tu dizes ser, Tudo o que é próprio de um rei, Por exemplo, Governar o seu povo e protegê-lo, Protegê-lo de quê, De tudo quanto esteja contra ele, Protegê-lo de quem, De todos quantos contra ele estejam, Se bem compreendo, protegê-lo-ias de Roma, Compreendeste bem, E para o protegeres atacarias os romanos, Não há outra maneira, E expulsar-nos-ias destas terras, Uma coisa leva à outra, evidentemente, Portanto, és inimigo de César, Sou o rei dos Judeus, Confessa que és inimigo de César, Sou o rei dos Judeus, e a minha boca não se abrirá para dizer outra palavra. Exultante, o sacerdote levantou as mãos ao céu, Vês tu, ó Pilatos, ele confessa, e tu não podes deixar ir-se com a vida salva quem, diante de testemunhas, se declarou contra ti e contra César. Pilatos suspirou, disse para o sacerdote, Cala-te, e, tornando a Jesus, perguntou, Que mais tens para dizer, Nada, respondeu Jesus, Obrigas-me a condenar-te, Faz o teu dever, Queres escolher a tua morte, Já escolhi, Qual, A cruz, Morrerás na cruz. Os olhos de Jesus, enfim, procuraram e fixaram os olhos de Pilatos, Posso pedir-te um favor, perguntou, Se não for contra a sentença que ouviste, Peço-te que mandes pôr por cima da minha cabeça um letreiro em que fique dito, para que me conheçam, quem sou e o que sou, Nada mais, Nada mais. Pilatos fez sinal a um secretário, que lhe trouxe o material de escrita, e, por sua própria mão, escreveu Jesus de Nazaré Rei dos Judeus. O sacerdote, que estivera entregue ao seu contentamento, deu-se conta do que sucedia e protestou, Não podes escrever Rei dos Judeus, mas sim Que Se Dizia Rei dos Judeus, ora Pilatos estava enfadado consigo mesmo, parecia-lhe que deveria ter mandado o homem à sua vida, pois até o mais desconfiado dos juízes seria capaz de ver que nenhum mal podia advir a César de um inimigo como este, e foi por tudo isto que respondeu secamente, Não me maces, o que escrevi, escrevi. Fez sinal aos soldados para tirarem dali o condenado, e mandou vir água para lavar as mãos, como era seu costume depois dos julgamentos.
Levaram dali Jesus para uma altura a que chamavam Gólgota, e, como já lhe iam fraquejando as pernas sob o peso do patíbulo, apesar da sua robusta compleição, mandou o centurião comandante que um homem que ia de passagem e parara um momento para olhar o desfile tomasse conta da carga. De apupos e vaias já se deu antes notícia, como da multidão que os lançava. Também da rara piedade. Quanto aos discípulos, esses andam por aí, agora mesmo uma mulher acabou de interpelar Pedro, Tu não eras dos que estavam com ele, e Pedro respondeu, Eu, não, e tendo dito escondeu-se atrás de todos, mas ali tornou a encontrar a mesma mulher e outra vez lhe disse, Eu, não, e porque não há duas sem três, sendo a de três a conta que Deus fez, ainda Pedro foi terceira vez perguntado e terceira vez respondeu, Eu, não. As mulheres sobem ao lado de Jesus, umas tantas aqui, umas tantas ali, e Maria de Magdala é a que mais perto vai, mas não pode aproximar-se porque não a deixam os soldados, como a todos e todas não deixarão passar nas proximidades do local onde estão levantadas três cruzes, duas ocupadas já por dois homens que berram e gritam e choram, e a terceira, ao meio, esperando o seu homem, direita e vertical como uma coluna sustentando o céu. Disseram os soldados a Jesus que se deitasse, e ele deitou-se, puseram-lhe os braços abertos sobre o patíbulo, e quando o primeiro cravo, sob a bruta pancada do martelo, lhe perfurou o pulso pelo intervalo entre os dois ossos, o tempo fugiu para trás numa vertigem instantânea, e Jesus sentiu a dor como seu pai a sentiu, viu-se a si mesmo como o tinha visto a ele, crucificado em Séforis, depois o outro pulso, e logo a primeira dilaceração das carnes repuxadas quando o patíbulo começou a ser içado aos sacões para o alto da cruz, todo o seu peso suspenso dos frágeis ossos, e foi como um alívio quando lhe empurraram as pernas para cima e um terceiro cravo lhe atravessou os calcanhares, agora não há mais nada a fazer, é só esperar a morte.
Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez. Depois, foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas. Ainda havia nele um resto de vida quando sentiu que uma esponja embebida em água e vinagre lhe roçava os lábios, e então, olhando para baixo, deu por um homem que se afastava com um balde e uma cana ao ombro. Já não chegou a ver, posta no chão, a tigela negra para onde o seu sangue gotejava.
 
FIM
José Saramago.

quarta-feira, 20 de março de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo XXIII)

 
 
 
Jesus e os seus iam pelos caminhos e povoados, e Deus falava pela boca de Jesus, e eis o que dizia, Completou-se o tempo e o reino de Deus está perto, arrependei-vos e acreditai na boa nova. Ouvindo isto, pensava o vulgo das aldeias que entre completar-se o tempo e acabar-se o tempo não podia haver diferença, e que, portanto vinha aí próximo o fim do mundo, que é onde o tempo se mede e gasta. Todos davam muitas graças a Deus pela misericórdia de ter mandado adiante, a dar formal aviso da iminência do sucesso, um que se dizia seu Filho, o que bem podia ser verdade, porquanto sem mais nem quê obrava milagres por onde quer que passava, a única condição, se assim se lhe deve chamar, mas essa imprescindível, era a convicta fé de quem lhos rogasse, como foi o caso daquele leproso que lhe suplicou, Se quiseres, podes limpar-me, e Jesus, com muito dó do mísero chagado, tocou-o e mandou, Quero, fica limpo, palavras não tinham sido ditas; naquele mesmo instante a carne podre tornou-se sã, o que nela já faltava achou-se reconstituído, e onde antes estivera um gafoso horrendo e sujo, de quem todo o mundo fugia, via-se agora um homem lavado e perfeito, muito capaz para tudo. Um outro caso, igualmente digno de nota, foi o daquele paralítico a quem, por ser multidão a gente à entrada da porta, tiveram de fazer subir e depois descer, no seu catre, por um buraco do telhado da casa onde Jesus estava, que seria a de Simão, chamado Pedro, e porque tão grande fé era merecedora de prêmio, disse Jesus, Meu filho, os teus pecados te são perdoados, ora aconteceu que tinham ido ali uns escribas desconfiados, desses que em tudo veem um motivo de recriminação e trazem a lei na ponta da língua, e que, ouvindo o que Jesus disse, não tiveram mão que não protestassem, Por que falas assim, estás a blasfemar, pecados só Deus os pode perdoar, e Jesus respondeu com uma pergunta, Qual é mais fácil, dizer ao paralítico Os teus pecados te são perdoados, ou dizer-lhe Levanta-te, toma o teu catre e anda, e, sem esperar que algum dos outros lhe respondesse, concluiu, Pois bem, para que saibais que tenho na terra o poder de perdoar os pecados, ordeno-te, isto era dito para o paralítico, que te levantes, tomes o teu catre e vás para tua casa, palavras foram elas tais que ali se assistiu logo a levantar-se de pé o miraculado, ainda por cima recuperado das forças, apesar da inacção causada pela paralisia, pois tomou o catre e pô-lo às costas, e foi-se à sua vida, dando mil graças a Deus.
Está visto que as pessoas não andam todas por aí a pedir milagres, cada um de nós, com o tempo, habitua-se às suas pequenas ou medianas mazelas e com elas vai vivendo sem que alguma vez lhe passe pela cabeça importunar os altos poderes, mas os pecados são outra coisa, os pecados atormentam por baixo do que se vê, não são perna coxa nem braço tolhido, não são lepra de fora, mas são lepra de dentro. Por isso tinha tido Deus muita razão quando a Jesus disse que todo o homem tem pelo menos um pecado de que se arrepender, e o mais corrente e normal é que tenha muitíssimos. Ora, estando este mundo para acabar e vindo aí o reino de Deus, mais do que querermos entrar nele com um corpo refeito à custa de milagres, o que importa é que a ele sejamos encaminhados por uma alma, a nossa, purificada pelo arrependimento e curada pelo perdão. Aliás, se o paralítico de Cafarnaúm tinha passado uma parte da sua vida num grabato era porque pecara, pois é sabido que toda a doença é consequência de pecado, por isso, conclusão sobre todas lógica, a vera condição duma boa saúde, além de o ser da imortalidade do espírito, e não sabemos mesmo se da do corpo, só poderá ser uma integralíssima pureza, uma ausência absoluta do pecado, por passiva e eficaz ignorância ou por activo repúdio, tanto nas obras como nos pensamentos. Porém, não se julgue que o nosso Jesus andasse por aquelas terras do Senhor a desbaratar o poder de curar e a autoridade de perdoar que pelo mesmo Senhor lhe fora outorgado. Não que ele o não tivesse desejado, claro está, pois mais o seu bom coração o inclinaria a tornar-se em universal panaceia do que, como por mando de Deus estava obrigado, ter de anunciar a todos o fim dos tempos e reclamar de cada um arrependimento, e para que não perdessem os pecadores demasiado tempo, em cogitações que mais não visavam que adiar a difícil decisão de dizer, Eu pequei, o Senhor punha na boca de Jesus certas prometedoras e terríveis palavras, como estas eram, Em verdade vos digo que alguns dos que estão aqui presentes não experimentarão a morte sem ter visto chegar o reino de Deus com todo o seu poder, imaginem-se agora os efeitos arrasadores que um tal anúncio produziria nas consciências dos povos, de toda a parte as multidões acorriam, ansiosas, e punham-se a seguir Jesus como se ele, directamente, as devesse conduzir ao paraíso novo que o Senhor instauraria na terra e que se distinguiria do primeiro por serem agora muitos os que dele gozariam, havendo resgatado, por oração, penitência e arrependimento, o pecado de Adão, também chamado original. E como, em sua maior parte, esta confiante gente provinha de baixos estratos sociais, artesãos e cavadores de enxada, pescadores e mulherzinhas, atreveu-se Jesus, num dia em que Deus o deixara mais à solta, a improvisar um discurso que arrebatou todos os ouvintes, ali se tendo derramado lágrimas de alegria como só se conceberiam à vista duma já não esperada salvação, Bem-aventurados, disse Jesus, bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus, bem-aventurados vós, os que agora tendes fome, porque sereis saciados, bem-aventurados vós, os que agora chorais, porque haveis de rir, mas nesta altura deu-se Deus conta do que ali se estava a passar, e, não podendo suprimir o que por Jesus tinha sido dito, forçou a língua dele a pronunciar umas outras palavras, com o que as lágrimas de felicidade se tornaram em negras lástimas por um futuro negro, Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, quando vos expulsarem, vos insultarem e rejeitarem o vosso nome infame, por causa do Filho do Homem. Quando Jesus isto acabou de dizer, foi como se a alma lhe tivesse caído aos pés, pois no mesmo instante se lhe representou no espírito a trágica visão dos tormentos e das mortes que Deus lhe havia anunciado no mar. Por isso, diante da multidão que o olhava transida de pavor, Jesus caiu de joelhos e, prostrado, orou em silêncio, nenhum de quantos ali se encontravam podia imaginar que ele estivesse pedindo, a todos, perdão, ele que se gloriava, como Filho de Deus que era, de poder perdoar aos demais. Nessa noite, na intimidade da tenda em que dormia com Maria de Magdala, Jesus disse, Eu sou o pastor que, com o mesmo cajado, leva ao sacrifício os inocentes e os culpados, os salvos e os perdidos, os nascidos e os por nascer, quem me libertará deste remorso, a mim que me vejo, hoje, como meu pai naquele tempo, mas ele é por vinte vidas que responde, e eu por vinte milhões. Maria de Magdala chorou com Jesus e disse-lhe, Tu não o quiseste, Pior é isso, respondeu ele, e ela, como se desde o princípio conhecesse, por inteiro, o que, aos poucos, temos vindo nós a ver e a ouvir, Deus é quem traça os caminhos e manda os que por eles hão-de seguir, a ti escolheu-te para que abrisses, em seu serviço, uma estrada entre as estradas, mas tu por ela não andarás, e não construirás um templo, outros o construirão sobre o teu sangue e as tuas entranhas, portanto melhor seria que aceitasses com resignação o destino que Deus já ordenou e escreveu para ti, pois todos os teus gestos estão previstos, as palavras que hás-de dizer esperam-te nos sítios aonde terás de ir, aí estarão os coxos a quem darás pernas, os cegos a quem darás vista, os surdos a quem darás ouvidos, os mudos a quem darás voz, os mortos a quem poderias dar vida, Não tenho poder contra a morte, Nunca o experimentaste, Já, sim, mas a figueira não ressuscitou, O tempo, agora, é outro, tu estás obrigado a querer o que Deus quer, mas Deus não pode negar-te o que tu queiras, Que me liberte desta carga, não quero mais, Queres o impossível, meu Jesus, a única coisa que Deus verdadeiramente não pode, é não querer-se a si mesmo, Como o sabes tu, As mulheres têm uns outros modos de pensar, talvez seja por o nosso corpo ser diferente, deve ser isso, sim, deve ser isso.
Um dia, porque a terra sempre é grande de mais para o esforço de um homem, mesmo quando se trate apenas duma sua pequeníssima parcela, como é, neste caso, a Palestina, decidiu Jesus mandar os seus amigos, aos pares, a anunciar pelas cidades, vilas e aldeias a próxima chegada do reino de Deus, ensinando e pregando por toda a parte, como ele o fazia. E como assim se achou sozinho com Maria de Magdala, pois as outras mulheres tinham acompanhado os homens, conforme os gostos e as preferências deles e delas, lembrou-se de irem de jornada até Betânia, que está perto de Jerusalém, e assim, se ao dito não falta respeito, matavam dois coelhos duma cajadada, visitando eles a família de Maria, que já era tempo de que se reconciliassem os irmãos e conhecessem os cunhados, e indo depois o grupo, outra vez reunido, a Jerusalém, pois Jesus marcara encontro a todos os seus amigos para daí a três meses, em Betânia. Do que fizeram os doze nas terras de Israel não há muito para dizer, em primeiro lugar, porque, tirante alguns pormenores da vida e circunstâncias da morte, não foi a história deles que fomos chamados a contar, e, em segundo lugar, porque não lhes havia sido concedido mais do que o poder de repetir, porém segundo o jeito de cada um, as lições e as obras do mestre, o que quer dizer que ensinaram como ele, mas curaram conforme souberam. Pena foi que Jesus lhes tivesse taxativamente ordenado que não seguissem pelo caminho dos gentios nem entrassem em cidade de samaritanos, porque com essa manifestação de surpreendente intolerância, que não devia poder esperar-se duma pessoa tão bem formada, perdeu-se a oportunidade de abreviar futuros trabalhos, pois tendo Deus o propósito, assaz claramente expresso, de ampliar os seus territórios e influência, mais tarde ou mais cedo terá a vez de chegar, não só aos samaritanos, mas sobretudo aos gentios, quer os daqui, quer os das outras partes. Dissera-lhes Jesus que curassem os enfermos, ressuscitassem os mortos, limpassem os leprosos, expulsassem os demônios, mas, em verdade, além de umas alusões vagas e muito gerais, não se observa que tenha ficado registro nem memória de tais acções, se é que as cometeram de facto, o que finalmente serve para mostrar que Deus não se vai fiar de qualquer um, por muito boas que sejam as recomendações. Quando voltarem a estar com Jesus, algo, sem dúvida, terão os doze para contar-lhe acerca dos resultados da pregação de arrependimento que andaram espalhando, mas muito pouco poderão referir no capítulo das curas, salvo a expulsão de uns tantos demônios subalternos, desses que não precisam de exorcismos particularmente imperiosos para saltarem de uma pessoa para outra. O que, sim, dirão, é que algumas vezes foram eles expulsos ou mal recebidos em caminhos que não eram de gentios e cidades que não eram de samaritanos, sem terem outra consolação que sacudirem à saída o pó dos pés, como se a culpa fosse duma pobre poeira que todos pisam e que de nenhum se queixa. Mas Jesus tinha-lhes dito que era o que deviam fazer em tais casos, como testemunho contra quem os não quisesse ouvir, deplorável, resignada resposta, em verdade, pois do que tratava era da própria palavra de Deus deste modo rejeitada, posto que o mesmo Jesus fora muito explícito, Não vos preocupeis com o que haveis de falar, nessa altura ser-vos-á inspirado o que tiverdes de dizer. Ora talvez que, afinal, as coisas não possam ser bem assim, talvez que, neste como em outros casos, a solidez da doutrina, que está em cima, dependa do factor pessoal, que está em baixo, a lição, se não é temerário adiantá-lo, parece boa, aproveitemo-la.
Calhou estar o tempo como de rosas acabadas de colher, fresco e perfumado como elas, e as estradas limpas e amenas como se adiante andassem anjos salpicando de orvalho o caminho, para depois o varrerem com vassouras de loureiro e murta. Jesus e Maria de Magdala viajaram incógnitos, não pernoitando nunca nos caravançarais, evitando juntar-se às caravanas, onde era maior o risco de encontrar ele quem o reconhecesse. Não era que Jesus estivesse a descurar as suas obrigações, que não lho consentiria a minuciosa vigilância de Deus, mas parecia que o mesmo Deus decidira conceder-lhe uns dias feriados, pois à estrada não desciam leprosos a implorar curas nem possessos a rejeitá-las, e as aldeias por onde passavam compraziam-se bucolicamente na paz do Senhor, como se, por uma virtude sua própria, se tivessem adiantado na via dos arrependimentos. Dormiam onde calhava, sem mais preocupações de conforto que o regaço do outro, alguma vez tendo por único tecto o firmamento, o imenso olho negro de Deus crivado daquelas luzes que são o reflexo deixado pelos olhares dos homens que contemplaram o céu, geração após geração, interrogando o silêncio e escutando a única resposta que o silêncio dá. Mais tarde, quando estiver sozinha no mundo, Maria de Magdala quererá recordar estes dias e estas noites, e de cada vez será obrigada a lutar muito para defender a memória dos assaltos da dor e da amargura, como se estivesse a proteger uma ilha de amores das investidas de um mar tormentoso e dos seus monstros. Já esse tempo não está longe, mas, olhando a terra e o céu, não se distinguem os sinais da aproximação, assim no espaço livre uma ave voa, e não se apercebe do rápido falcão que, com as garras lançadas adiante, desce como uma pedra. Jesus e Maria de Magdala cantam no caminho, os outros viajantes, que os não conhecem, dizem, Gente feliz, e por enquanto não há outra verdade mais verdadeira. Assim chegaram a Jericó e dali, com vagar, levando dois largos dias na jornada, porque o calor era muito e as sombras nenhumas, subiram para Betânia. Depois dos anos passados, não sabia Maria de Magdala como iriam recebê-la os seus irmãos, de mais tendo ela saído de casa para viver uma má vida, Talvez até pensem que morri, dizia, talvez mesmo desejem que eu tenha morrido, e Jesus tentava afastar-lhe da cabeça as negras ideias, O tempo cura tudo, sentenciava, e não se lembrava de que a ferida que, para ele, era a sua própria família, continuava viva e aberta e todo o tempo sangrava. Entraram em Betânia, Maria cobrindo meio rosto, por vergonha de que a reconhecessem os vizinhos, e Jesus, suavemente, repreendia-a, De quem te escondes, não és mais a mulher que viveu a outra vida, essa já não existe, Não sou quem fui, é verdade, mas sou quem era, e aquela que sou e aquela que era ainda estão atadas uma à outra pela vergonha daquela que fui, Agora és quem és, e estás comigo, Bendito seja Deus por isso, ele que de mim te levará um dia, e Maria deixou cair o manto, mostrando o rosto, porém ninguém disse, Ali vai a irmã de Lázaro, aquela que foi viver de prostituta.
Esta é a casa, disse Maria de Magdala, mas não teve ânimo para bater nem voz para anunciar-se. Jesus empurrou um pouco a cancela, que era apenas encostada, e perguntou, Está alguém, lá de dentro uma mulher disse, Quem chama, a sua própria resposta pareceu tê-la trazido até à porta, e aí estava, Marta, a irmã de Maria, gêmeas, porém não iguais, porque sobre esta fizera maior estrago a idade, ou o trabalho, ou o feitio e modo de ser. Deu primeiro com os olhos em Jesus, e o seu rosto, com se dele se tivesse levantado uma nuvem que o obscurecesse, tornou-se de súbito luminoso e claro, mas, logo depois, vendo a irmã, duvidou, desenhou-se-lhe nas feições uma expressão de descontentamento, Ele quem é, para estar com ela, podia ter assim pensado, ou talvez, Como pode estar com ela, se é o que parece, mas Marta não saberia dizer, se lho ordenassem, que era o que lhe parecia Jesus. E foi certamente por isso que em vez de perguntar à irmã, Como estás, ou, Que vens cá fazer, as palavras que disse foram, Quem é este homem que te acompanha. Jesus sorriu-se, e o seu sorriso foi direito ao coração de Marta com a rapidez e o choque de um disparo de flecha, e ali ficou a doer, a doer, como um estranho e desconhecido gozo, Chamo-me Jesus de Nazaré, disse, e estou com tua irmã, palavras estas que eram, mutatis mutandis, tal como saberiam dizer os romanos no seu latim, equivalentes às que tinha gritado a seu irmão Tiago quando dele se separou na borda do mar, Chama-se Maria de Magdala e está comigo. Marta abriu a porta toda e disse, Entrem, estás na tua casa, mas não se soube em qual dos dois estava pensando. Já no pátio, Maria de Magdala travou do braço da irmã, e disse-lhe, Pertenço a esta casa como tu pertences, pertenço a este homem que não te pertence a ti, estou em regra contigo e com ele, portanto não faças da tua virtude pregão nem da minha imperfeição sentença, foi em paz que vim e em paz quero ficar. Marta disse, Recebo-te como minha irmã pelo sangue, e espero que possa chegar o dia em que te receba pelo amor, mas hoje não, ia prosseguir, porém um pensamento deteve-a, é que não sabia se o homem que ali estava com a irmã era conhecedor, ou não, da vida que ela levara, se não a levava ainda, e então, neste ponto do raciocínio o rosto cobriu-se-lhe de rubor e confusão, por um momento odiou-os aos dois e a si própria, enfim falou Jesus, para que Marta ouvisse o que era mister, não é tão difícil assim adivinhar o que vai no pensamento das pessoas, Deus julga-nos a todos e em cada dia nos julgará diferentemente, segundo o que somos em cada dia, ora, se a ti, Marta, tivesse Deus de julgar-te hoje, não creias que serias, aos seus olhos, diferente de Maria, Explica-te melhor, não te entendo, E eu não te direi mais, guarda as minhas palavras no teu coração e repete-as contigo mesma quando olhares a tua irmã, Maria já não, Queres saber se já não sou puta, perguntou brutalmente Maria de Magdala, cortando a reticência da irmã. Marta recuou, acenou com as mãos diante do rosto, Não, não, não quero que mo digas, bastam-me as palavras de Jesus, e, sem poder conter-se, começou a chorar. Maria foi-se para ela, abraçou-a como se a embalasse, Marta dizia entre soluços, Que vida, que vida, mas não se sabia se era da irmã que falava ou de si própria. Lázaro, onde está, perguntou Maria, Na sinagoga, E de saúde, como tem passado, Continua a sofrer daquelas suas antigas sufocações, fora isso, não passa mal. Deu-lhe vontade de acrescentar, noutro sobressalto de amargura, que a preocupação se tinha atrasado pelo caminho, pois, em todos estes anos de culpada ausência, a irmã pródiga, pródiga de tempo e de corpo, pensou Marta com ironia despeitada, nunca tivera a lembrança de mandar saber notícias da família, em particular de um irmão cuja saúde débil a cada instante parecia ir romper-se de vez. Voltando-se para Jesus, que afastado dois passos observava com atenção o mal disfarçado conflito, Marta disse, O nosso irmão copia livros na sinagoga, não tem saúde para mais, e o tom, embora a intenção não fosse certamente essa, era o de alguém que nunca poderá compreender como é possível viver-se sem esta força diligente, sem este contínuo trabalho, que em todo o santo dia não tenho um momento de descanso. De que sofre Lázaro, perguntou Jesus, Dumas sufocações, como se o coração se lhe fosse parar, depois torna-se pálido, pálido, parece que vai ficar-se. Marta fez uma pausa e acrescentou, é mais novo do que nós, disse-o sem pensar, talvez porque subitamente dera pela própria juventude de Jesus, outra vez a confusão lhe entrou no espírito, um sentimento de ciúme tocou-lhe o coração, e o resultado de tudo isto foram umas palavras que soaram de modo estranho estando ali presente Maria de Magdala, que ela, sim, tinha o dever e o direito de as pronunciar, Vens cansado, senta-te, e deixa-me que te lave os pés. Um pouco mais tarde, Maria, achando-se sozinha com Jesus, disse-lhe, meio a sério, meio a sorrir, Pelos vistos e ouvidos, estas irmãs nasceram para enamorar-se de ti, e Jesus respondeu, O coração de Marta está cheio da tristeza de não ter vivido, A tristeza dela não é essa, está triste porque pensa que não há mais justiça no céu se a impura é a que recebe o prêmio, e a virtuosa tem o corpo vazio, Deus terá para ela outras compensações, Pode ser, mas Deus, que fez o mundo, não deveria privar de nenhum dos frutos da sua obra as mulheres de que também foi autor, Conhecer homem, por exemplo, Sim, como tu vieste a conhecer mulher, e mais não devias precisar, sendo, como és, o filho de Deus, Quem contigo se deita não é o filho de Deus, mas o filho de José, Na verdade, nunca, desde que vieste, senti que estivesse deitada com o filho de um deus, De Deus, queres tu dizer, Quem me dera que o não fosses.
Por um rapazito, filho de vizinhos, Marta mandou avisar o irmão de que tinha tornado Maria, mas não o fez sem ter hesitado muito, pois assim ia abreviar a inevitável e saborosa notícia de que a prostituta irmã de Lázaro regressara a casa, com o que a família voltava a cair nas bocas do mundo depois de o tempo, mais ou menos, as ter feito calar. A si mesma perguntava com que cara iria sair no dia seguinte à rua, e, pior ainda, se teria coragem para levar consigo a irmã, estando obrigada a falar a vizinhas e amigas, dizer, é um exemplo, Lembras-te da minha irmã Maria, pois aqui está ela, tornou a casa, e a outra, com ar entendido, Lembro-me, lembro-me, quem é que não se lembra, que estas minúcias prosaicas não escandalizem quem com elas tenha de perder o seu tempo, a história de Deus não é toda divina. Censurou-se Marta dos seus mesquinhos pensamentos quando Lázaro, chegando, se abraçou a Maria e lhe disse com simplicidade, Bem-vinda sejas, minha irmã, como se não lhe estivessem doendo tantos anos de ausência e de calado desgosto, e porque algum sinal de alegre disposição agora lhe competia dar, apontou Marta a Jesus e disse para o irmão, Este é Jesus, nosso cunhado. Os dois homens olharam-se com simpatia, e logo se sentaram a conversar, enquanto as mulheres, repetindo gestos e movimentos que haviam sido comuns noutro tempo, começaram a preparar a refeição. Ora, depois de terem ceado, Lázaro e Jesus saíram ao pátio para tomarem o fresco da noite, dentro de casa ficaram as irmãs a resolver a importante questão de como deveriam ser instaladas as esteiras, tendo em conta a alteração ocorrida na composição da família, e, ao cabo de um silêncio, Jesus, olhando as primeiras estrelas que surgiam no céu ainda claro, perguntou, Sofres, Lázaro, e Lázaro respondeu, numa voz estranhamente tranquila, Sim, sofro, Deixarás de sofrer, disse Jesus, Decerto, quando estiver morto, Deixarás de sofrer agora, Não me tinhas dito que és médico, Irmão, se eu fosse médico não saberia como curar-te, Nem podes curar-me, mesmo não o sendo, Estás curado, murmurou Jesus docemente, tomando-lhe a mão. No mesmo instante Lázaro sentiu que o mal lhe fugia do corpo como uma água escura devorada pelo sol, que se lhe alargava o fôlego e rejuvenescia o coração, e, porque não podia compreender o que se passava, teve medo na sua alma, Que é isto, perguntou, e a voz enrouquecia-lhe de angústia, Quem és tu, Médico, não sou, sorriu Jesus, Em nome de Deus, diz-me quem és, Não invocas o nome de Deus em vão, Que devo entender, Chama Maria, ela to dirá. Não foi preciso, atraídas pelo repentino altear das vozes, Marta e Maria apareceram à porta, andariam os dois homens altercando, mas logo viram que não, o pátio estava todo ele azul, o ar, queremos dizer, e Lázaro, trémulo, apontava para Jesus, Quem é este, perguntava, que com ter-me tocado a sua mão e dizer-me Estás curado me curou. Marta veio para o irmão com o propósito de sossegá-lo, como era possível estar ele curado se daquela maneira tremia, mas Lázaro afastou-a, disse, Fala tu, Maria, que o trouxeste, quem é ele. Sem se mover do limiar da porta onde se deixara ficar, Maria de Magdala disse simplesmente, É Jesus de Nazaré, filho de Deus. Ora, mesmo sendo estes lugares, e, neles, o tempo desde o princípio do mundo, tão regularmente favorecidos de revelações proféticas e anúncios apocalípticos, o mais natural da vida seria terem manifestado Lázaro e Marta uma peremptória incredulidade, porque uma coisa é reconhecer-se alguém de súbito curado por óbvio efeito de milagre, e outra é virem-te dizer que o homem que te tocou na mão e te libertou do mal é o próprio filho de Deus. Porém, a fé e o amor podem muito, há até quem afirme que não precisam andar juntos para poderem tudo, e o caso foi que Marta se lançou, a chorar, nos braços de Jesus, depois, assustada pela ousadia, escorregou para o chão, onde ficou, e só sabia murmurar, com o rosto transfigurado, Lavei-te os pés, lavei-te os pés. Lázaro não se tinha mexido, o assombro paralisara-o, podemos mesmo supor que se a subitânea revelação o não fulminou foi porque um acto oportuno de amor, no minuto antes, lhe pusera um coração novo no lugar do coração velho. Sorrindo, Jesus foi abraçá-lo e dizer-lhe, Que não te surpreenda ver que o filho de Deus é um filho de homem, em verdade, Deus não tinha mais por onde escolher, como os homens que escolhem as suas mulheres e as mulheres que escolhem os seus homens. As últimas palavras eram destinadas a Maria de Magdala, que as tomaria pelo bom lado, mas não se lembrou Jesus de que elas só iriam servir para aumentar o sofrimento de Marta e o desespero da sua solidão, é a diferença que há entre Deus e um filho seu, Deus fá-lo-ia de propósito, fê-lo o filho apenas por humaníssima inabilidade. Enfim, a alegria, hoje, é grande nesta casa, amanhã tornará Marta a sofrer e a suspirar, mas um alívio pode ela já ter por certo, é que ninguém terá o atrevimento de arrastar pelas ruas, praças e mercados de Betânia a vida dissoluta da irmã quando se vier a saber, e a própria Marta disso se ocupará, que o homem que com ela veio curou Lázaro do seu mal sem poção nem tisana. Estavam em casa, recolhidos e desfrutando a hora, e Lázaro disse, De longe em longe, têm chegado notícias de que um homem de Galileia andava a fazer milagres, mas não que fosse filho de Deus, Umas notícias andam mais depressa do que outras, disse Jesus, És tu esse homem, Tu o disseste. Então Jesus contou a sua vida desde o princípio, mas não toda ela, de Pastor nada, de Deus disse somente que lhe aparecera para dizer-lhe, És meu filho. Se não fosse aquela primeira notícia de uns longínquos milagres, tornados verdades puras pela palpável evidência deste, se não fosse o poder da fé, se não fosse o amor e os seus poderes, decerto haveria de ser muito difícil a Jesus, apenas com uma frase lacônica, se bem que posta na boca do próprio Deus, convencer Lázaro e Marta de que o homem que daí a pouco se iria deitar com a irmã deles era feito de espírito divino, se com a sua humana carne se aproximara dela, que a tantos homens conhecera sem temer a Deus. Perdoemos a Marta o orgulho que a levou a dizer, baixinho, com a cabeça tapada pelo lençol para não ver nem ouvir, Eu seria mais digna.
Na manhã seguinte, a notícia correu velocíssima, tudo em Betânia foi um louvar e dar graças ao Senhor, e mesmo os que, modestos, começaram por duvidar do caso, considerando ser a terra demasiado pequena para nela poderem acontecer grandes coisas, esses não tiveram mais remédio que render-se, à vista do miraculado Lázaro, de quem nunca deverá dizer-se que passara a vender saúde, porque era de tão amorável coração que toda a daria, se pudesse. Já à porta da casa se juntavam curiosos que queriam ver, com os seus próprios, e portanto não mentirosos olhos, o autor do feito celebrado, e, podendo ser, para final e definitiva certeza, pôr-lhe a mão em cima. Também, uns por seu pé, outros trazidos de charola, ou às costas de parentes, vieram os doentinhos à cura, em ponto de não se poder romper na estreita rua onde moravam Lázaro e suas irmãs. Sabedor que foi do adjunto, mandou Jesus avisar que falaria a todos na praça maior da aldeia, e que fossem andando para lá, que já se lhes juntaria. Ora, quem tem um pássaro na mão, não será tão tolo que o vá deitar a voar, antes lhe faz com os dedos mais segura gaiola. Por causa desta prudência ou desconfiança, ninguém dali arredou, e Jesus teve de mostrar-se e sair como qualquer um, igualzinho a nós aparecendo no vão duma porta, sem música nem resplendor, sem que a terra tremesse ou os céus se movessem de um lado a outro, Aqui estou, disse, fazendo por falar em tom natural, mas, supondo que o conseguiu, eram daquelas palavras, por si sós, vindas de quem vinham, capazes de fazer pôr os joelhos no chão a uma aldeia inteira, clamando piedade, Salva-nos, gritavam estes, Cura-me, imploravam aqueles. Jesus curou a um que, por ser mudo, nada podia pedir, e aos outros mandou-os para as suas casas porque não tinham fé bastante, e que voltassem noutro dia, mas que, primeiro que tudo, era preciso que se arrependessem dos pecados, pois o reino de Deus estava perto e o tempo a ponto de completar-se, doutrina já conhecida. És tu o filho de Deus, perguntaram-lhe, e Jesus respondeu do modo enigmático a que acostumara quem o ouvia, Se eu não o fosse, mais depressa te faria Deus mudo, que consentir que mo perguntasses.
Com estes assinalados actos principiou a estação de Jesus em Betânia, enquanto não chegava o dia do encontro combinado com os discípulos que por distantes paragens andavam. Claro que não tardou que começasse a vir gente das cidades e aldeias em redor, conhecida que foi lá a notícia de que o homem que fazia milagres no norte estava agora em Betânia. Não precisaria Jesus de sair da casa de Lázaro porque todos acorriam a ela como a um lugar de peregrinação, porém Jesus não os recebia, mandava-os que se reunissem num certo monte fora da aldeia e ali lhes ia pregar o arrependimento e fazer algumas curas. Tanto se falou e disse, que as vozes chegaram a Jerusalém, fazendo com que se engrossassem as multidões e Jesus se interrogasse sobre se deveria ali continuar, com risco dos motins que sempre se geram nos ajuntamentos excessivos. De Jerusalém viera, primeiramente, ao rumor duma esperança de salvação e cura, o miúdo povo, mas não demorou que começasse a aparecer também gente das classes que por cima estão, e mesmo uns quantos fariseus e escribas que se tinham recusado a acreditar que alguém, em seu juízo, tivesse o atrevimento, por assim dizer suicida, de chamar-se, com todas as letras, Filho de Deus. Regressavam a Jerusalém irritados e perplexos porque Jesus nunca respondia afirmativamente quando lho perguntavam, e todo o seu falar, no que toca a filiações, era denominar-se a si mesmo Filho do Homem, e se, falando de Deus, lhe acontecia dizer Pai, entendia-se que o era de todos, e não apenas seu. Restava então, como questão dificilmente polêmica, o poder curativo de que dava sucessivas provas, exercido sem artificiosos passes de mágica, do modo mais simples, uma ou duas palavras, Caminha, Levanta-te, Diz, Vê, Sê limpo, um subtil toque da mão, nada mais que o roce suave da ponta dos dedos, acto contínuo a pele dos leprosos brilhava como o orvalho ao dar-lhe a primeira luz do sol, os mudos e os gagos embriagavam-se no fluxo torrencial da palavra libertada, os paralíticos saltavam do catre e dançavam até se lhes esgotarem as forças, os cegos não acreditavam no que os seus olhos podiam ver, os coxos corriam e corriam, e depois, de pura alegria, fingiam-se de coxos para tornarem a correr outra vez, Arrependei-vos, dizia-lhes Jesus, arrependei-vos, e não lhes pedia mais nada. Mas os sacerdotes superiores do Templo, sabedores, mais do que ninguém, das confusões e outras perturbações históricas a que tinham dado azo, no seu tempo, profetas e anunciadores de vária índole, decidiram, depois de pesadas e medidas todas as palavras ouvidas a Jesus, que neste tempo não se veriam convulsões religiosas, sociais e políticas como as do passado, e que de hoje em diante estariam com atenção a tudo o que o galileu fosse fazendo e dizendo, para que, em caso de necessidade, e tudo indica que lá havemos de chegar, seja cortado e arrancado pela raiz o mal que já se anuncia, porque, dizia o sumo sacerdote, A mim não me engana ele, o filho do Homem é o filho de Deus. Jesus não fora semear grãos a Jerusalém, mas em Betânia talhava, forjava e dava fio à foice com que lá o haverão de ceifar.
Nesta festa estávamos quando, dois agora, dois amanhã, aos pares de cada vez, ou quatro que se tinham encontrado no caminho, começaram a chegar a Betânia os discípulos. Diferindo apenas, uns e outros, em pormenores e circunstâncias de somenos, traziam todos a mesma notícia, e era que do deserto havia saído um homem que profetizava ao jeito antigo, como se rolasse pedras com a voz e movesse montanhas com os braços, anunciando castigos ao povo e a vinda iminente do Messias. Não o tinham chegado a ver porque ele ia constantemente de um lado para outro, pelo que as informações que traziam, embora no geral coincidentes, eram todas de segunda mão, e, diziam, se não o foram procurar foi só porque se estava cumprindo o prazo combinado de três meses e não queriam faltar ao encontro. Perguntou então Jesus se sabiam como se chamava o profeta e eles responderam que João, ora este era o nome do homem que devia vir para o ajudar, consoante Deus lhe anunciara à despedida. Já chegou, disse Jesus, e os amigos não compreenderam o que ele pretendia significar com tais palavras, só Maria de Magdala, mas essa sabia tudo. Jesus queria ir já à procura de João, que decerto o estaria buscando a ele, mas dos doze faltavam ainda Tomé e Judas de Iscariote, e como podia suceder que eles trouxessem notícias mais directas e completas, enfadava-o a tardança. Valeu a pena, porém, a espera, os retardatários tinham visto João e falado com ele. Vieram os outros das tendas onde estanciavam, fora de Betânia, para ouvirem o relato de Tomé e Judas de Iscariote, sentados todos em círculo no pátio da casa de Lázaro, e Marta e Maria, e as outras mulheres, por ali, servindo-os. Então falaram alternadamente Judas de Iscariote e Tomé, e disseram isto, que João estava no deserto quando a palavra de Deus lhe foi dirigida, posto o que se foi dali para as margens do Jordão a pregar um baptismo de penitência para remissão dos pecados, mas indo as multidões a ele para se fazerem baptizar, recebeu-as com estes brados, que os ouvimos nós e deles nos assombramos, Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera que está para chegar, deveis é produzir frutos de arrependimento sincero e não vos iludirdes a vós mesmos dizendo que tendes por pai a Abraão, pois eu vos digo que Deus pode, destas brutas pedras, suscitar novas vergônteas a Abraão, deixando-vos a vós desprezados, vede que já o machado se encontra à raiz das árvores, e por isso toda aquela que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo, ora as multidões, cheias de temor, perguntaram-lhe, Que devemos fazer, e João respondeu-lhes, Quem tem duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma, e quem mantimentos tiver faça o mesmo, e aos publicanos que cobram os impostos disse-lhes, Não exijais nada que não estiver estabelecido na lei, mas não creiais que a lei é justa só porque lhe chamais lei, e aos soldados que lhe perguntaram, E nós, que devemos fazer, respondeu-lhes, Não exerçais violência sobre ninguém, não denuncieis injustamente e contentai-vos com o vosso soldo.Calou-se neste ponto Tomé, que era o que tinha começado, e Judas de Iscariote, pegando-lhe na palavra, prosseguiu, Perguntaram-lhe então se ele era o Messias, e ele respondeu, Eu baptizo-vos em água para vos mover ao arrependimento, mas vai chegar quem é mais poderoso do que eu, alguém cujas correias das sandálias não sou digno de desatar, que vos baptizará no Espírito Santo e no fogo, que tem na sua mão a pá de joeirar para limpar a sua eira e recolher o trigo no seu celeiro, mas queimará a palha num fogo inextinguível. Não disse mais Judas de Iscariote e todos esperaram que Jesus falasse, mas Jesus, com um dedo, fazia riscos enigmáticos no chão e parecia esperar que algum dos outros falasse. Então disse Pedro, És tu o Messias que João veio anunciar, e Jesus, sem deixar de riscar a poeira, Tu é que o dizes, não eu, que a mim Deus disse-me apenas que era seu filho, fez uma pausa, e concluiu, Vou procurar João, Vamos contigo, disse o que também se chamava João, filho de Zebedeu, mas Jesus abanou lentamente a cabeça, Irei só, só com Tomé e Judas de Iscariote, porque o conhecem, e para Judas, Como é ele, Mais alto do que tu e muito mais forte, usa uma grande barba que parece feita de espinhos, anda entrajado com umas toscas peles de camelo que aperta com uma tira de couro à volta da cintura e lá no deserto dizem alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre, Parece bem mais o Messias do que eu, disse Jesus, e levantou-se da roda.
Partiram logo na manhã seguinte os três, e, sabido que João nunca se demorava muitos dias num mesmo lugar, mas que o mais provável, em todos os casos, seria encontrá-lo baptizando nas margens do Jordão, desceram dos altos de Betânia para o sítio de Betabara, que está à beira do Mar Morto, com a ideia de irem depois subindo o rio, sempre, até ao Mar da Galileia, e mais para o setentrião ainda, até à nascente, se preciso fosse. Mas, quando de Betânia saíram nunca poderiam ter imaginado que a jornada seria tão breve, pois foi ali mesmo, em Betabara, que, sozinho, como se estivesse à espera, encontraram João. Viram-no de longe, minúscula figura de um homem sentado à beira do rio, cercado por montes lívidos que eram como caveiras e vales que pareciam cicatrizes ainda doridas, e, estendendo-se para a direita, a brilhar sinistramente debaixo do sol e do céu branco, a superfície terrível do Mar Morto, como de estanho fundido. Quando se aproximaram à distância de um tiro de funda, Jesus perguntou aos companheiros, É ele, os dois olharam com atenção, protegendo a vista com a mão em pala sobre as sobrancelhas, e responderam, Seria o seu gêmeo, se não fosse, Esperai aqui até que eu volte, disse Jesus, não vos acerqueis, aconteça o que acontecer, e, sem mais palavra, começou a descer para o rio. Tomé e Judas de Iscariote sentaram-se no chão requeimado, viram Jesus afastar-se, aparecendo e desaparecendo consoante os acidentes do terreno, e depois, já no rebaixo da margem, caminhar para onde estava João, que em todo este tempo não se movera. Prouvera que não nos tenhamos enganado, disse Tomé, Devíamos ter ido mais perto, disse Judas de Iscariote, mas Jesus teve logo a certeza quando o viu, perguntou por perguntar. Lá em baixo, João erguera-se e olhava para Jesus, que se aproximava. Que irão dizer um ao outro, perguntou Judas de Iscariote, Talvez Jesus no-lo diga, talvez se cale, disse Tomé. Agora os dois homens, tão longe, estavam frente a frente e falavam com animação, podia se  perceber pelos gestos, pelos movimentos que faziam com os cajados, passado tempo desceram para a água, daqui não é possível vê-los porque o relevo da margem os tem escondido, porém Judas e Tomé sabiam o que estava a passar-se além porque também eles se tinham feito baptizar por João, os dois entrando na corrente até ao meio do corpo e João colhendo a água com as duas mãos em concha, levantando-a depois ao céu e deixando-a escorrer sobre a cabeça de Jesus, enquanto dizia, Baptizado estás com água, seja ela a alimentar o teu fogo. Já o fez, já o disse, já sobem do rio João e Jesus, tomaram do chão os cajados, sem dúvida estão dizendo um ao outro uma palavra de despedida, disseram-na e abraçaram-se, depois João começa a caminhar ao longo da margem, para o norte, e Jesus está vindo para o nosso lado. Tomé e Judas de Iscariote esperaram-no de pé, ele chega, e, outra vez sem dizer-lhes uma palavra, passa e segue adiante, a caminho de Betânia. Vão atrás dele, com não pequeno despeito, os discípulos, roídos de curiosidade insatisfeita, e, num dado momento, Tomé não pôde conter-se mais e, descuidando do gesto que Judas ainda fez para retê-lo, perguntou, Não queres falar-nos do que te disse João, Ainda não é a hora, respondeu Jesus, Disse-te ao menos que és o Messias, Ainda não é a hora, repetiu Jesus, e os discípulos ficaram sem perceber se ele apenas repetia o que antes tinha dito, ou os estava informando de que a hora de vir o Messias ainda não chegara. Para esta hipótese se inclinou Judas de Iscariote quando, desanimados, se deixaram ficar para trás, enquanto Tomé, céptico por decidida e renitente inclinação do espírito, opinava que se tratara de uma mera repetição, ainda por cima impaciente, acrescentou.
Do que foi só Maria de Magdala teve conhecimento nessa noite, e ninguém mais, Não se falou muito, disse Jesus, mal tínhamos acabado de saudar-nos, ele quis saber se eu era aquele que há-de vir, ou se devíamos esperar outro, E tu, que lhe respondeste, Disse-lhe que os cegos veem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, e a boa nova é anunciada aos pobres, E ele, Não é preciso que o Messias faça tanto, desde que faça o que deve, Foi o que ele disse, Sim, foram as suas palavras exactas, E que deve fazer o Messias, Isso lhe perguntei, E ele, Respondeu-me que eu teria de o descobrir por mim, E depois, Mais nada, levou-me para o rio, baptizou-me e foi-se embora, Que palavras foram as que te disse para baptizar-te, Baptizado estás com água, seja ela a alimentar o teu fogo. Depois desta conversação com Maria de Magdala, Jesus não falou mais por espaço de uma semana. Saiu da casa de Lázaro e foi viver para fora de Betânia, onde os discípulos estavam, mas recolheu-se em uma tenda apartada das outras, ficava dentro dela todo o dia, sozinho, pois nem mesmo Maria de Magdala podia lá entrar, e saía à noite para ir para os montes desertos. Seguiram-no algumas vezes os discípulos escondidamente, dando a si mesmos a desculpa de quererem protegê-lo de um ataque das bestas selvagens, de que em verdade não havia por ali notícia, e o que viram foi que ele procurava uma clareira desafogada e ali se sentava, olhando, não o céu, mas na sua frente, como se, da sombra inquietante dos vales ou assomando na aresta duma colina, esperasse ver surgir alguém. Era tempo de lua, quem viesse poderia ser visto de longe, mas nunca apareceu ninguém. Quando a madrugada pisava o primeiro limiar da luz, Jesus retirava-se e regressava ao acampamento. Comia só uma pequena parte do alimento que João e Judas de Iscariote, ora um, ora outro, lhe levavam, mas não respondia às saudações deles, e uma vez aconteceu mesmo ter despedido rudemente Pedro, que apenas queria saber como ele estava e receber ordens. Não errara de todo Pedro no passo que dera, deu-o cedo de mais, foi o que foi, porque ao  cabo dos oito dias saiu Jesus da tenda em pleno dia, foi juntar-se aos discípulos e comeu com eles, e, tendo terminado, disse, Amanhã subiremos a Jerusalém, ao Templo, lá fareis o que eu fizer, que é tempo de saber o Filho de Deus para que está a servir a casa do seu Pai e de começar o Messias a fazer o que deve. Perguntaram-lhe os discípulos que coisas eram essas de que falava, mas Jesus não lhes disse mais do que, Não precisareis de viver muito para o saberdes. Ora, os discípulos não estavam acostumados a que ele lhes falasse neste tom nem a vê-lo com aquela expressão de dureza na cara, que nem parecia o mesmo Jesus que conheciam, doce e sossegado, a quem Deus levava por onde queria e mal sabia queixar-se. Não podia haver dúvidas de que a mudança tinha a sua causa nas razões, por ora desconhecidas, que o haviam levado a separar-se da comunidade dos amigos e a andar, como se estivesse possesso dos demônios da noite, por esses cabeços e ravinas à procura duma palavra, que sempre é o que se busca. Considerou, porém, Pedro, como mais velho de quantos ali estavam, que não era justo que, sem mais explicações, tivesse Jesus ordenado, Vamos subir a Jerusalém, como se eles não fossem mais do que uns paus mandados, bons para levar e trazer, mas não para conhecer os motivos de ter ido e ter voltado. E então disse, Sempre reconhecemos o teu poder e a tua autoridade e com eles nos conformamos, tanto pelo que dizes como pelo que tens feito, tanto por seres filho de Deus como pelo homem que também és, mas não está certo que lides connosco como se fôssemos meninos sem tino ou velhos caducos, não nos comunicando o teu pensamento, apenas que deveremos fazer o que tu fizeres, sem que o juízo que temos seja chamado a julgar o que pretendes de nós, Perdoai-me todos, disse Jesus, mas nem eu próprio sei o que me leva a Jerusalém, só me foi dito que devo ir, nada mais, mas vós não estais obrigados a acompanhar-me, Quem foi que te disse que deves ir a Jerusalém, Alguém que entrou na minha cabeça para decidir do que terei de fazer e não fazer, Mudaste muito desde que te encontraste com João, Compreendi que não basta trazer a paz, mas que é preciso trazer também a espada, Se o reino de Deus está perto, a que vem a espada, perguntou André, Deus não me disse por que caminho chegará a vós o seu reino, temos provado a paz, provemos agora a espada, e Deus fará a sua escolha, mas, torno a dizer, não estais obrigados a acompanhar-me, Bem sabes que iremos contigo para onde quer que fores, disse João, e Jesus respondeu, Não jureis, sabê-lo-eis os que lá tiverdes chegado.
Na manhã seguinte, tendo Jesus ido a casa de Lázaro, não tanto para despedir-se, mas para dar sinal benévolo de que regressara à convivência de todos, foi-lhe dito por Marta que o irmão já tinha saído para a sinagoga. Então Jesus e os seus tomaram a estrada de Jerusalém, e Maria de Magdala e as outras mulheres foram com eles até às últimas casas de Betânia, onde ficaram acenando adeuses, a elas bastava-lhes fazerem-no, que os homens nem uma só vez se voltaram para trás. O céu está nublado, ameaçando chuva, talvez seja por isso que há pouca gente no caminho, os que não têm motivos de força maior para irem a Jerusalém deixaram-se ficar por casa, à espera do que os astros decidam. Avançam, pois, os treze por uma estrada muitas vezes deserta, enquanto as nuvens grossas e cinzentas rolam sobre as alturas dos montes como se, enfim, e para sempre, fossem ajustar-se o céu e a terra, o molde e o moldado, o macho e a fêmea, o côncavo e o convexo. Porém, chegados às portas da cidade, logo se viu que maiores diferenças de variedade e número na multidão não as havia, e que, como de costume, iam ser precisos muito tempo e muita paciência para abrir caminho e chegar ao Templo. Não foi assim, contudo. O aspecto dos treze homens, quase todos descalços, com os seus grandes cajados, as barbas soltas, os pesados e escuros mantos sobre túnicas que parecia terem visto o princípio do mundo, fazia afastar a gente amedrontada, perguntando uns aos outros, Quem são estes, quem é o que vai à frente, e não sabiam responder, até que um que tinha descido da Galileia disse, É Jesus de Nazaré, o que diz ser filho de Deus e faz milagres, E aonde vão, perguntava-se, e como a única maneira de o saberem era seguirem-nos, foram muitos atrás deles, de modo que ao chegarem à entrada do Templo, da parte de fora, não eram treze, mas mil, mas estes ficaram-se por ali, à espera de que os outros lhes satisfizessem a curiosidade. Foi Jesus para o lado onde estavam os cambistas e disse aos discípulos, Eis o que viemos fazer, acto contínuo começou a derrubar as mesas, empurrando e batendo a eito nos que compravam e vendiam, com o que se levantou ali um tumulto tal que não teria deixado ouvir as palavras que proferia se não se desse o estranho caso de soar a sua voz natural como um estentor de bronze, assim, Desta casa que deveria ser de oração para todos os povos, fizestes vós um covil de ladrões, e continuava a deitar as mesas abaixo, fazendo espalhar e saltar as moedas, com enorme gáudio de uns quantos dos mil que correram a colher aquele maná. Andavam os discípulos no mesmo trabalho, e por fim já os bancos dos vendedores de pombas eram também atirados ao chão, e as pombas livres, voavam por sobre o Templo, rodopiando doidas, além, em redor do fumo do altar, onde não iriam ser queimadas porque havia chegado o seu salvador. Vieram os guardas do Templo, armados de bastões, para castigar e prender ou lançar fora os desordeiros, mas, para seu mal, encontraram-se com treze rudes galileus que, de cajado nas mãos, varriam quem ousava fazer-lhes frente e gritavam, Venham mais, venham todos, que Deus para todos chegará, e carregavam sobre os guardas, e destroçavam as bancas, de súbito apareceu um archote aceso, em pouco tempo tinham pegado fogo os toldos, uma outra coluna de fumo se erguia no ar, alguém gritou, Chamem os soldados romanos, mas ninguém fez caso, acontecesse o que tivesse de acontecer, os romanos, era da lei, não entrariam no Templo. Acudiram mais guardas, estes de espada e lança, aos quais foram juntar-se um que outro cambista e vendedor de pombas, resolvidos a não deixarem só em mãos alheias a defesa dos seus interesses, e a sorte das armas, aos poucos, começou a virar, que se esta luta, como nas cruzadas, a queria Deus, não parecia que pusesse nela o mesmo Deus empenho bastante para que a vencessem os seus. Nisto estávamos, quando no alto da escadaria apareceu o sumo sacerdote, acompanhado dos seus pares e dos anciãos e escribas que fora possível chamar à pressa, e deu uma voz que em nada ficou a dever àquela de Jesus, disse ele, Deixai-o ir desta vez, que, se voltar cá, então o cortaremos e lançaremos fora, como ao joio quando está em excesso na seara e ameaça afogar o trigo. Disse André para Jesus, que a seu lado brigava, Bem é que digas que vieste trazer a espada e não a paz, agora já sabemos que cajados não são espadas, e Jesus disse, No braço que brande o cajado e maneja a espada é que se vê a diferença, Que fazemos então, perguntou André, Tornemos a Betânia, respondeu Jesus, não é a espada que ainda nos falta, mas o braço. Recuaram em boa ordem, com os cajados apontados aos apupos e escárnios da multidão, que a mais bravos cometimentos não se atrevia, e em pouco tempo puderam sair de Jerusalém, posto o que, cansados todos, maltratados alguns, tomaram o caminho de regresso.
Quando entraram em Betânia, notaram que os vizinhos que apareciam às portas os olhavam com expressões de piedade e desgosto, mas aceitaram-nas como coisa natural, visto o lastimoso estado em que voltavam da peleja. Pronto, porém, se desenganaram dos motivos, foi entrar na rua onde Lázaro morava e logo perceberam que sucedera uma desgraça. Jesus correu à frente de todos, entrou no pátio, pessoas de ar compungido abriram-lhe caminho para que ele passasse, ouviam-se dentro os choros e as lamentações, Ai, meu querido irmão, esta era a voz de Marta, Ai, meu querido irmão, esta a de Maria. Deitado no chão, sobre uma esteira, viu Lázaro, tranquilo como se dormisse, o corpo e as mãos compostas, mas não dormia, não, estava morto, durante quase toda a sua vida o seu coração ameaçara deixá-lo, depois curara-se, que assim o podia testemunhar Betânia inteira, e agora estava morto, por enquanto sereno como se fosse de mármore, intacto como se tivesse entrado na eternidade, mas não tardará que do interior da sua morte suba à superfície o primeiro sinal de podridão para tornar mais insuportável a angústia e o pavor destes vivos. Jesus, como se lhe tivessem cortado de um traço os tendões dos jarretes, caiu de joelhos, e gemeu, chorando, Como foi que aconteceu, como foi que aconteceu, é uma ideia que sempre nos acode diante do que já não tem remédio, perguntar aos outros como foi, desesperada e inútil maneira de distrair o momento em que iremos ter de aceitar a verdade, é isso, queremos saber como foi, e é como se pudéssemos ainda pôr no lugar da morte, a vida, no lugar do que foi, o que poderia ter sido. Do fundo do seu desfeito e amargo choro, Marta disse a Jesus, Se tu estivesses aqui, meu irmão não teria morrido, mas eu sei que tudo quanto pedires a Deus, ele to concederá, como te tem concedido a vista dos cegos, a limpeza dos leprosos, a voz dos mudos, e todos os mais prodígios que moram na tua vontade e esperam a tua palavra. Jesus disse-lhe, Teu irmão há-de ressuscitar, e Marta respondeu, Eu sei que há-de ressuscitar na ressurreição do último dia. Jesus levantou-se, sentiu que uma força infinita arrebatava o seu espírito, podia, nesta suprema hora, obrar tudo, cometer tudo, expulsar a morte deste corpo, fazer regressar a ele a existência plena e o ente pleno, a palavra, o gesto, o riso, a lágrima também, mas não de dor, podia dizer, Eu sou a ressurreição e a vida, quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá, e perguntaria a Marta, Crês tu nisto, e ela responderia, Sim, creio que és o filho de Deus que havia de vir ao mundo, ora, assim sendo, estando dispostas e ordenadas todas as coisas necessárias, a força e o poder, e a vontade de os usar, só falta que Jesus, olhando o corpo abandonado pela alma, estenda para ele os braços como o caminho por onde ela há de regressar, e diga, Lázaro, levanta-te, e Lázaro levantar-se-á porque Deus o quis, mas é neste instante, em verdade último e derradeiro, que Maria de Magdala põe uma mão no ombro de Jesus e diz, Ninguém na vida teve tantos pecados que mereça morrer duas vezes, então Jesus deixou cair os braços e saiu para chorar.