quarta-feira, 6 de março de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo XX)



Quando Jesus vai ao mar com os pescadores, Maria de Magdala fica à espera dele, em geral sentada numa pedra à borda da água, ou num cômoro elevado, se os há, donde melhor possa acompanhar a rota e seguir a navegação. As pescas, agora, não são demoradas, nunca houve neste mar tal cópia de peixe, diriam os desprevenidos, é como pescar à mão num balde cheio, mas logo observam que as facilidades não são iguais para todos, o balde está como sempre, pouco menos que vazio, se Jesus anda por outras paragens e as mãos e os braços cansam-se a lançar a atarrafa e desanimam vendo-a voltar apenas com um peixe aqui outro além presos nas malhas. Por isso é que todo o mundo pescador da margem ocidental do mar da Galileia anda a pedir Jesus, a reclamar Jesus, a exigir Jesus, e já em alguns lugares tem acontecido receberem-no com festas, palmas e flores como se em domingo de Ramos estivéssemos. Mas, sendo o pão dos homens aquilo que é, uma mistura de inveja e de malícia, alguma caridade às vezes, onde fermenta um fermento de medo que faz crescer o que é mau e atabafar-se o que é bom, também sucedeu brigarem companhas e companhas, aldeias e aldeias, porque todos queriam ter Jesus só para eles, os outros que se governassem conforme pudessem. Quando tal acontecia, Jesus retirava-se para o deserto e só de lá voltava quando os desordeiros arrependidos iam rogar-lhe que lhes perdoasse os excessos, que tudo era uma consequência do muito que lhe queriam. O que para todo o sempre vai ficar por explicar é por que razão os pescadores da margem oriental nunca despacharam delegados ao lado de cá com vista à discussão e estabelecimento de um pacto justo que a todos beneficiasse por igual, excepto os gentios de vária tinta e crença que por aqui não faltam. Também poderiam os da outra banda, em flotilha de batalha naval, armados de redes e piques, e a coberto de uma noite sem lua, ter vindo roubar Jesus ao ocidente, deixando o ocidente outra vez condenado a um passadio de necessidades, ele que se habituou a uma pitança farta.
Este é ainda o dia em que Tiago e José vieram pedir a Jesus que tornasse à casa que era a sua, virando costas à vida de vagabundagem, por muito que dela se estivesse aproveitando a indústria das pescas e derivados. A estas horas, os dois irmãos, cada qual com seu sentimento, um Tiago furioso, um choroso José, vão em passo acelerado por esses montes e vales, caminho de Nazaré, onde a mãe se pergunta pela centésima vez se, tendo visto sair dali dois filhos, irá ver entrar três, porém, duvida. A estrada de regresso que os irmãos tiveram de tomar, por ser a que mais próxima estava do ponto da costa onde haviam encontrado Jesus, fê-los passar por Magdala, cidade de que Tiago conhecia pouco e José nada, mas que, a julgar pelas aparências, não merecia nem detença nem desfrute. Refrescaram-se pois à passagem os dois irmãos e seguiram adiante. Saindo do povoado, palavra que usamos aqui apenas porque exprime uma oposição lógica e clara ao deserto que tudo rodeia, viram adiante, à mão esquerda, uma casa com sinais de incêndio, mostrando apenas as quatro paredes no ar. A porta do pátio, sem dúvida meio destroçada por um arrombamento, não ardera, o fogo, que tudo arrasara, fora todo dentro. Em casos como este, o passante, quem quer que ele seja, sempre pensa que debaixo dos escombros poderá ter ficado algum tesouro, e, se crê que não há perigo de cair-lhe uma trave em cima, entra para tentar a sua sorte, avança cautelosamente, remexe com a ponta do pé umas cinzas, umas pontas de tições, uns carvões mal ardidos, na ideia de ver surgir de repente, a luzir, a moeda de ouro, o incorruptível diamante, o diadema de esmeraldas. A Tiago e José só a curiosidade os fez entrar, não são ingênuos a ponto de imaginarem que os vizinhos cobiçosos não vieram aqui à procura do que os habitantes da casa não tivessem podido salvar, o provável, porém, sendo a casa tão pequena, é que os bens mais preciosos tenham sido levados, ficando apenas as paredes, que em qualquer lugar se podem levantar outras novas. A abóbada do forno, dentro do que fora a casa, desabou, os ladrilhos do chão, estalados, soltaram-se do cimento e estalam debaixo dos pés, Não há nada, vamo-nos embora, disse Tiago, mas José perguntou, E aquilo ali, que é. Aquilo era uma espécie de estrado de madeira de que tinham ardido as pernas, meio carbonizado todo ele, lembrando um trono largo e comprido, ainda com uns restos pendentes de trapos queimados, É uma cama, disse Tiago, há quem durma em cima dessas coisas, os ricos, os senhores, A nossa mãe também dorme numa, Pois dorme, mas não tem comparação com o que esta deve ter sido, Não parece de ricos uma casa assim, As aparências enganam muito, disse Tiago, argutamente. Ao saírem, José viu que na porta do pátio estava dependurada, para o lado de fora, uma roca de cana, dessas que se usam para colher os figos das figueiras, decerto teria sido mais comprida no tempo da sua utilidade, mas deviam tê-la cortado. Que faz isto aqui, perguntou, e sem esperar resposta, própria sua ou do irmão, despendurou a agora inútil cana e levou-a consigo, recordação de um incêndio, de uma casa queimada, de gente desconhecida. Ninguém os vira entrar, ninguém os viu sair, são só dois irmãos que vão para casa levando as túnicas enfarruscadas e uma negra notícia. A um deles, para se distrair, propôs-lhe o pensamento, e ele aceitou-a, a lembrança de Maria de Magdala, o pensamento do outro é mais activo e menos frustrante, espera encontrar uma maneira de meter a amputada roca nas suas brincadeiras.
Sentada na pedra, à espera de que Jesus volte da pesca, Maria de Magdala pensa em Maria de Nazaré. Até este dia em que estamos, a mãe de Jesus, para ela, fora só isso, mãe de Jesus, agora sabe, porque depois o perguntou, que o seu nome também é Maria, coincidência, em si mesma, de mínima importância, uma vez que são muitas as Marias na terra, e mais hão-de vir a ser se a moda pega, mas nós aventurar-nos-íamos a supor que exista um sentimento de mais próxima fraternidade entre os que levam nomes iguais, é como imaginamos que se sentirá José quando se lembra do outro José que foi seu pai, não filho, mas irmão, o problema de Deus é esse, ninguém tem o nome que ele tem. Levadas a semelhante extremo, não parecem ser tais reflexões produto de um discernimento como o de Maria de Magdala, ainda que não nos falte informação de que o tem muito capaz doutras de não menor alcance, o que elas vão é em direcções diferentes, por exemplo, no caso de agora, uma mulher ama um homem e pensa na mãe desse homem. Maria de Magdala não conhece, de experiência sua, o amor da mãe pelo seu filho, conheceu, enfim, o amor da mulher pelo seu homem, depois de tudo, antes, haver aprendido e praticado do amor falso, dos mil modos de não amor. Quer a Jesus como mulher, mas desejaria querê-lo também como mãe, talvez porque a sua idade não esteja tão longe assim da idade da mãe verdadeira, a que mandou recado para que o filho voltasse, e o filho não voltou, uma pergunta faz Maria de Magdala, que dor irá sentir Maria de Nazaré quando lho disserem, porém não é a mesma coisa que imaginar o que ela própria sofreria se Jesus lhe faltasse, faltar-lhe-ia o homem, não o filho, Senhor, dá-me, juntas, as duas dores, se tiver de ser, murmurou Maria de Magdala esperando Jesus. E quando o barco se aproximou e foi puxado para terra, quando os cestos carregados de peixe escorrendo começaram a ser transportados, quando Jesus, com os pés na água, ajudava ao trabalho e ria como uma criança, Maria de Magdala viu-se a si mesma como se fosse Maria de Nazaré e, levantando se donde estava, desceu até à borda do mar, entrou na água para estar com ele e disse, depois de beijá-lo no ombro, Meu filho. Ninguém ouviu que Jesus tivesse dito, Minha mãe, pois já se sabe que as palavras proferidas pelo coração não têm língua que as articule, retém-nas um nó na garganta e só nos olhos é que se podem ler. Das mãos do arrais do barco receberam Maria e Jesus o cesto de peixe com que lhes era pago o serviço, e, como sempre faziam, recolheram-se os dois à casa onde pernoitariam, porque a sua vida era isto, não ter casa própria, ir de barco em barco e de esteira em esteira, algumas vezes, ao princípio, Jesus disse a Maria, Esta vida não te convém, busquemos uma casa que seja nossa e eu irei estar contigo sempre que seja possível, ao que Maria respondeu, Não quero esperar-te, quero estar onde estiveres. Um dia, Jesus perguntou-lhe se não tinha parentes que pudessem recebê-la, e ela disse que tinha um irmão e uma irmã vivendo na aldeia de Betânia de Judeia, ela Marta, ele Lázaro, mas que os deixara quando se prostituíra e, para que não se envergonhassem dela, fora para longe, de terra em terra, até chegar a Magdala. Então o teu nome deveria ser Maria de Betânia, se lá nasceste, disse Jesus, Sim, foi em Betânia que nasci, mas em Magdala é que me encontraste, por isso de Magdala quero continuar a ser, A mim não me chamam Jesus de Belém, apesar de em Belém ter nascido, de Nazaré não sou porque nem me querem eles nem os quero eu, talvez devesse chamar-me Jesus de Magdala, como tu, pela mesma razão, Lembra-te de que queimamos a casa, Mas não a memória, disse Jesus. De voltar Maria a Betânia não se falou mais, esta borda do mar é para eles o mundo inteiro, onde quer que o homem esteja, estará com ele a obrigação.
Diz o povo, dizemo-lo nós, provavelmente dizem-no os povos todos, sendo como é a experiência dos males tão geral e universal, que debaixo dos pés se levantam os trabalhos. Um tal dito, se não nos enganamos, só podia tê-lo inventado um povo da terra, à custa de tropeções e de topadas, de percalços, esperas e puas assassinas. Depois, em virtude da generalidade e da universalidade já assinaladas, ter-se-á espalhado por todo o orbe, fazendo lei, mas, ainda assim, supomos que com alguma relutância por parte da gente marítima e piscatória que sabe existirem fundíssimas funduras entre os seus pés e o chão, e não poucas vezes abissais abismos. Para o povo do mar os trabalhos não se levantam do chão, para o povo do mar os trabalhos caem do céu, chamam-se vento e ventania, e é por causa deles que se erguem as ondas e as vagas, se geram as tempestades, se rompe a vela, se quebra o mastro, se afunda o frágil lenho, e estes homens da pesca e da navegação onde morrem, verdadeiramente, é entre o céu e a terra, o céu que as mãos não alcançam, o chão a que os pés não chegam. O mar da Galileia é quase sempre um tranquilo, manso e comedido lago, mas lá vem o dia em que as fúrias oceânicas se desmandam para estes lados e é um salve-se quem puder, às vezes, desgraçadamente, nem todos podem. De um caso destes haveremos nós de falar, mas antes é preciso que regressemos a Jesus de Nazaré e a algumas recentes preocupações suas que mostram quanto o coração do homem é um eterno insatisfeito e o simples dever cumprido, afinal, não dá tanta satisfação como nos vêm dizendo os que com pouco se contentam. Sem dúvida, pode-se dizer que graças ao contínuo sobe e desce de Jesus, entre o rio Jordão de cima e o rio Jordão de baixo, não há penúria, nem sequer ocasionais faltas, em toda a margem ocidental, tendo-se até chegado ao ponto de beneficiarem da abundância os próprios que não eram pescadores, pois a fartura do peixe fez baixar os preços, o que, evidentemente, veio a resultar em mais gente a comer mais e mais barato. É verdade que houve uma ou outra tentativa de manter os preços altos pelo conhecido método corporativo de lançar ao mar uma parte do produto da pesca, mas Jesus, de quem em última instância dependia a maior ou menor sorte dos lanços, ameaçou ir-se dali a outra parte, e os prevaricadores da lei nova vieram pedir-lhe desculpa, até ver. Toda a gente, portanto, parece ter razões para sentir-se feliz, mas Jesus não. Pensa ele que não é vida andar constantemente acima e abaixo, a embarcar e a desembarcar, sempre os mesmos gestos, sempre as mesmas palavras, e que, sendo certo que o poder de fazer aparecer o peixe é do Senhor que lhe vem, não se vê razão para que o mesmo Senhor queira que a sua vida se consuma nesta monotonia até que chegue o dia em que for servido chamá-lo, como prometeu. Que o Senhor esteja consigo, não o duvida Jesus, pois o peixe nunca deixa de vir quando o chama, e esta circunstância, por um processo dedutivo inevitável de que aqui não julgamos necessário fazer a demonstração e apresentar a sequência, acabou por levá-lo, com o tempo, a perguntar-se se não haveria acaso outros poderes que o Senhor estivesse disposto a ceder-lhe, não por delegação ou outorga, claro está, apenas emprestados, e com a condição de fazer deles bom uso, o que, como temos visto, Jesus estava em condições de garantir, haja vista o trabalho a que meteu ombros, sem mais que a intuição a ajudá-lo. A maneira de saber era fácil, tão fácil como dizer ai, bastava fazer a experiência, se ela resultasse, era porque Deus estava a favor, se não resultasse, Deus manifestava que estava contra. Simplesmente, havia uma questão prévia a resolver, e essa questão era a da escolha. Não sendo possível consultar directamente o Senhor, Jesus teria de arriscar, seleccionar entre os poderes possíveis o que parecesse oferecer menos resistência e que não desse demasiado nas vistas, porém não tão discreto que passasse despercebido a quem dele viesse a beneficiar e ao mundo, com o que padeceria a glória do Senhor, que em tudo deve prevalecer. Mas Jesus não se decidia, tinha medo de que Deus escarnecesse dele, o humilhasse, como no deserto fizera e podia ter feito depois, ainda hoje se sentia estremecer à lembrança da vergonha que teria sido, quando pela primeira vez disse Lançai a rede deste lado, vê-la subir vazia. Tanto o ocupavam estes pensamentos que uma noite sonhou que alguém lhe dizia ao ouvido, Não temas, lembra-te de que Deus precisa de ti, mas quando acordou teve dúvidas sobre a identidade do conselheiro, podia ser um anjo, dos muitos que andam a fazer os recados do Senhor, podia ser um demônio, dos outros tantos que a Satã servem para tudo, ao seu lado Maria de Magdala parecia dormir profundamente, por isso não podia ter sido ela, nem Jesus pensou que o fosse. Estava-se nisto, e, um dia, que pelos indícios em nada mostrava ir ser diferente dos outros, Jesus foi ao mar para o milagre do costume. O tempo estava carregado, de nuvens baixas, a ameaçar chuva, mas por esse pouco não vai ficar um pescador em casa, bem estaríamos nós se tudo na vida fosse regalos e bem-estar. Calhou a barca ser a de Simão e André, aqueles dois irmãos pescadores que testemunharam o primeiro prodígio, e com ela, de conserva, vai também a dos filhos de Zebedeu, o Tiago e o João, pois que, não sendo o efeito miraculoso igual, sempre o barco que está perto aproveita alguma parte do peixe que vier. O vento forte leva-os rapidamente para o meio do mar e aí, descidas as velas, começam os pescadores, num barco e noutro, a desdobrar as redes, à espera de que Jesus diga para que lado as devem lançar. Estão nisto, quando de repente se levantam os trabalhos na forma de uma tempestade que caiu do céu sem prevenir, porque como prevenção não se podia ter entendido um simples céu coberto, e foi de maneira tal que as vagas eram como as do mar verdadeiro, da altura de casas, empurradas por um vento doido, ora cá, ora lá, e no meio aquelas casquinhas de noz baloiçando sem governo, que a manobra nada podia contra a fúria dos elementos à solta. A gente que estava na margem, vendo o perigo em que se achavam as pobres criaturas já sem defesa, começou em desabalados gritos, havia ali esposas e mães, e irmãs, e filhos pequeninos, alguma sogra de bom feitio, e era um clamor que não se sabe como não chegou ao céu, Ai, o meu querido marido, Ai, o meu querido filho, Ai, o meu querido irmão, Ai, o meu genro, Maldito sejas tu, ó mar, Senhora dos Aflitos, valei-nos, Senhora da Boa Viagem, acudi-lhes, os meninos só sabiam chorar, mas nem assim. Maria de Magdala estava também ali e murmurava, Jesus, Jesus, porém não era por ele que o dizia, pois sabia que o Senhor o tinha guardado para outra altura, não para uma vulgar tormenta no mar, sem mais consequências que morrerem uns tantos afogados, dizia Jesus, Jesus, como se dizê-lo pudesse valer de alguma coisa aos pescadores, que esses, sim, parecia que se lhes ia cumprir ali a sorte. Ora, Jesus, lá na barca, vendo o desânimo e o desbarato que ia nas tripulações em redor, e que as ondas saltavam por cima da borda e alagavam tudo dentro, e que os mastros se partiam levando-os pelos ares as velas soltas, e que a chuva caía em torrentes que só elas chegariam para afundar uma nave do imperador, Jesus, vendo tudo isto, disse consigo mesmo, Não é justo que morram estes homens, ficando eu com vida, sem contar que o Senhor me ralharia de certeza Podias ter salvo os que estavam contigo e não os salvaste, já não te bastou teu pai, a dor desta lembrança fez saltar Jesus, e então, de pé, firme e seguro como se debaixo de si o suportasse um sólido chão, gritou, Cala-te, e isto era para o vento, Aquieta-te, e isto era para o mar, palavras não eram ditas acalmaram se o mar e o vento, as nuvens no céu apartaram-se e o sol apareceu como uma glória, que o é e sempre há-de ser, ao menos para quem vive menos do que ele. Não se imagina o que foi a alegria naqueles barcos, os beijos, os abraços, os choros de alegria em terra, os daqui não sabiam por que tinha acabado assim tão súbito a tempestade, os de além, como ressuscitados, não pensavam senão na vida salva, e se alguns exclamaram, Milagre, milagre, naqueles instantes primeiros não se deram conta de que alguém tinha de ter sido o autor dele. Mas de repente fez-se o silêncio no mar, os outros barcos rodeavam o de Simão e André, e os pescadores todos olhavam Jesus, calados de assombro, apesar do estrondo da tempestade tinham ouvido os gritos, Cala-te, Aquieta-te, e ali estava ele, Jesus, o homem que gritara, o que ordenava aos peixes que saíssem das águas para os homens, o que ordenava às águas que não levassem os homens para os peixes. Jesus tinha-se sentado no banco dos remadores, de cabeça baixa, com uma difusa e contraditória impressão de triunfo e de desastre, como se, tendo subido ao ponto mais alto duma montanha, no mesmo instante começasse a melancólica e inevitável descida. Mas agora, ali postos em círculo, os homens esperavam uma palavra sua, não era bastante ter dominado o vento e amansado as águas, tinha de explicar-lhes como o pudera fazer um simples galileu filho de carpinteiro, quando o próprio Deus parecia tê-los abandonado ao frio abraço da morte. Levantou-se Jesus então e disse, Isto que acabais de ver não o cometi eu, as vozes que afastaram a tempestade não foram dadas por mim, foi o Senhor que falou pela minha boca, eu apenas sou a língua de que Deus se serviu para falar, lembrai-vos dos profetas. Disse Simão, que na mesma barca estava, Assim como fez vir a tempestade, o Senhor podia tê-la mandado embora, e nós apenas diríamos O Senhor a trouxe, o Senhor a levou, mas foram a tua vontade e a tua palavra que nos restituíram a vida salva quando, diante dos olhos de Deus, a críamos perdida, Deus o fez, torno a dizer, não eu. Disse então João, o filho menor de Zebedeu, provando desta maneira que não era tão simples de espírito, Sem dúvida o fez Deus, pois nele moram toda a força e todo o poder, mas fê-lo por intermédio de ti, donde tiro eu a conclusão de que Deus quer que te conheçamos, Já me conhecíeis, De apareceres aqui vindo não sabemos donde, de nos encheres as nossas barcas de peixe não sabemos como, Sou Jesus de Nazaré, filho de um carpinteiro que morreu crucificado pelos romanos, durante um tempo pastor do maior rebanho de ovelhas e cabras que já se viu, agora, convosco, e porventura até à hora da minha morte, pescador. Disse André, o irmão de Simão, Nós outros, sim, é que devemos estar contigo, porque se a um homem comum, como tu dizes ser, foram dados tais poderes e o poder de os usar, pobre de ti, que a solidão te será mais pesada do que uma pedra ao pescoço. Disse Jesus, Ficai comigo, se o coração vo-lo pedir, mas não digais a ninguém nada do que aqui se passou, porque o tempo ainda não é chegado de confirmar o Senhor a vontade que quer executar em mim, se, como diz João, quer Deus que me conheçais. Disse então Tiago, o filho maior de Zebedeu, tão pouco simples, afinal, como seu irmão, Não penses que o povo se vai calar, olha-os além na margem, vê como te esperam para aclamar-te, e alguns, de impaciência, já empurram barcos para a água para virem juntar-se a nós, mas ainda que conseguíssemos moderar-lhes o entusiasmo, ainda que os convencêssemos a guardar, quanto possam, o segredo, terás tu a certeza de que, em qualquer momento, mesmo não o desejando tu, não se manifestará Deus, mais do que na tua presença, por teu intermédio. Jesus deixou pender a cabeça, era uma representação viva da tristeza e do abandono, e disse, Estamos todos nas mãos do Senhor, Tu mais do que nós, disse Simão, porque ele te preferiu, porém nós estaremos contigo, Até ao fim, disse João, Até quando não nos queiras, disse André, Até onde pudermos, disse Tiago. Aproximavam-se os barcos que tinham vindo da margem, acenavam com os braços os que vinham dentro, multiplicavam-se as bênçãos e os louvores, e Jesus, resignado, disse, Vamos, o vinho está no vaso, é preciso bebê-lo. Não procurou Maria de Magdala, sabia que ela o esperava em terra, como sempre, que nenhum milagre alteraria a constância dessa espera, e um contentamento grato e humilde pacificou-lhe o coração. Quando desembarcou, mais do que abraçá-la, abraçou-se nela, escutou, sem surpresa, o que Maria de Magdala lhe disse num murmúrio, rente à orelha, o rosto contra a barba molhada, Perderás a guerra, não tens outro remédio, mas ganharás todas as batalhas, e depois, juntos, saudando ele a um lado e a outro os circunstantes que o festejavam, como um general que regressasse vencedor do seu primeiro combate, subiram, acompanhados dos amigos, o íngreme caminho que levava a Cafarnaúm, a aldeia sobranceira ao mar onde viviam Simão e André, em casa de quem, por esta ocasião, moravam.
Tivera razão Tiago quando augurou mal da esperança de Jesus de que o conhecimento público do milagre da tempestade acalmada pudesse ficar circunscrito aos que o testemunharam. Em poucos dias, não se falava doutra coisa por aqueles arredores, embora, caso estranho, não sendo este mar, como tem sido dito, uma imensidão, podendo, de um ponto alto e com limpeza dos ares, ser visto, por inteiro, de margem a margem e de extremo a extremo, aconteceu que em Tiberíades, por exemplo, ninguém dera pelo temporal, e quando alguém ali chegou com a nova de que um que estava com os pescadores de Cafarnaúm fizera cessar, à sua voz, uma tempestade, a resposta que recebeu foi, Qual tempestade, o que deixou sem fala o informador. Que, porém, houvera tempestade, não se pode duvidar, aí estava para afirmá-lo e jurar o susto que tinham apanhado os protagonistas do episódio, directos e indirectos, nestes se incluindo uns almocreves de Safed e Caná que lá se encontravam por motivo do seu negócio. Foram eles que levaram a notícia para o interior, matizada segundo os arrebatos de imaginação de cada um, mas, enfim, não puderam alcançar a toda a parte, e isto de notícias, sabemos como é, vão perdendo a convicção com o tempo e a distância, e quando a nova, que já tão pouco o era, chegou a Nazaré, não se sabia se o milagre o havia sido realmente, ou apenas uma feliz coincidência entre uma palavra que fora lançada ao vento e um vento que se cansara de soprar. Coração de mãe, porém, não se engana, e a Maria bastaram os quase extintos ecos de um prodígio de que já se começava a duvidar, para, em seu coração, ter a certeza de que o obrara o filho ausente. Chorou pelos cantos o orgulho da sua ínfima autoridade materna, que a fizera ocultar de Jesus o aparecimento do anjo e as revelações de que fora portador, fiando-se de que um simples recado de meia dúzia de palavras reticentes faria regressar a casa quem dela saíra com o seu próprio coração sangrando. Não tinha Maria ao pé de si, para desafogar-se de tristezas tão amargas e dolorosas, a sua filha Lísia, que neste meio201 tempo se casara e fora viver para a aldeia de Caná. A Tiago não ousaria falar, esse viera espumando fúrias do encontro com o irmão, não se calando com a mulher que com ele estava, Podia ser mãe dele, minha mãe, e o ar que ela tinha, de muita experiência da vida e outras coisas que não menciono, ainda que, manda a verdade dizer-se, seja a própria experiência de Tiago escassíssima em termos de comparação, neste buraco do mundo que é a sua aldeia. Desabafou pois Maria com José, esse filho que, pelo nome e parecenças, mais lhe recordava o marido, mas ele não a pôde consolar, Minha mãe, estamos pagando o que fizemos, e o meu temor, eu que vi a Jesus e o ouvi, é que seja para sempre, que de lá onde está não volte nunca, Sabes o que dele se diz, que falou com uma tempestade e ela se acalmou, ouvindo-o, Também sabíamos que com o seu poder enchia de peixe as barcas dos pescadores, a nós o disseram os próprios, Tinha razão o anjo, Que anjo, perguntou José, e Maria contou-lhe tudo quanto com eles havia acontecido, desde o aparecimento do mendigo que lançara na tigela a terra luminosa até ao anjo do seu sonho. Esta conversa não tiveram-na em casa, que aí não era possível, sendo a família ainda tão numerosa, esta gente, sempre que quer falar de assuntos sigilosos, vai para o deserto, onde, calhando, até pode encontrar Deus. Estavam assim conversando quando, em certa altura, viu José passar ao longe, nas colinas a que a mãe virava as costas, um rebanho de ovelhas e cabras com o seu pastor. Pareceu-lhe que o rebanho não era grande, nem alto o pastor, por isso viu e calou. E quando a mãe disse, Nunca mais vejo Jesus, respondeu, pensativo, Quem sabe.
Tinha razão José. Passados uns tempos, coisa de um ano, veio um recado de Lísia para a mãe, convidando-a, em nome dos sogros, a ir a Caná, ao casamento duma sua cunhada, irmã do marido, e que levasse consigo quem entendesse, que todos seriam bem-vindos. Sendo ela a convidada, tinha o direito de escolher quem a deveria acompanhar, mas como, por respeito, não queria tornar-se pesada, posto que poucas coisas serão tão deprimentes como uma viúva com muitos filhos, resolveu levar apenas dois, o agora seu preferido José, e Lídia, a quem, sendo rapariga, nunca festas e distracções sobrariam. Caná não está longe de Nazaré, pouco mais de uma hora de caminho das nossas, e, por este tempo de suave outono, sempre teria sido um passeio dos mais aprazíveis, mesmo que o objectivo final da viagem não fosse um casamento. Saíram de casa mal o sol acabara de nascer para poderem chegar a Caná ainda a tempo de ajudar Maria às últimas tarefas de um acto cerimonial e festivo em que o trabalho está na directa proporção do quanto a gente se alegra e diverte. Veio Lísia ao encontro da mãe e dos irmãos com afectuosas mostras, de um lado se tomaram informações sobre o bem-estar e a saúde, do outro sobre a saúde e a felicidade, e, porque o trabalho urgia, foram logo dali, ela e Maria, para a casa do noivo, onde, segundo o costume, se celebraria a festa, iam a cuidar dos caldeiros com as demais mulheres da família. José e Lídia ficaram no pátio, de brincadeira com os da sua idade, os meninos jogando com os meninos, as meninas dançando com as meninas, até ao momento em que deram fé de que a cerimônia começava. Correram todos, agora sem maior discriminação dos sexos, atrás dos homens que acompanhavam o noivo, os amigos dele, que levavam os archotes da tradição, e isto numa manhã como esta, de tão resplandecente luz, o que, pelo menos, poderá servir para demonstrar que uma luzinha mais, mesmo de archote, nunca é de desprezar, por muito que brilhe o sol. Os vizinhos, com alegre semblante, apareciam a saudar às portas, guardando as bênçãos para daqui a pouco, quando o cortejo regressar trazendo já a noiva. Não chegaram José e Lídia, porém, a ver o resto, de todo o modo nunca seria novidade completa para eles, porquanto haviam tido em seu tempo um casamento na família, o noivo a bater à porta e a pedir para ver a noiva, ela a aparecer rodeada das suas amigas, também estas com luzes, ainda que modestas, simples lamparinas como a mulheres convém, que um archote é coisa de homem pelo fogo e pela dimensão, e depois o noivo a levantar o véu da noiva e a dar um grito de júbilo perante o tesouro que tinha encontrado, como se nestes últimos doze meses, que tantos eram os que o noivado durava, não a tivesse visto mil vezes e com ela ido para a cama quantas lhe apeteceu. Não viram José e Lídia estes números porque, num súbito instante, olhando ele, casualmente, pelo enfiamento duma rua, viu aparecerem lá ao fundo dois homens e uma mulher, e, com a sensação de estar a viver por segunda vez, reconheceu seu irmão Jesus e a mulher que com ele andava. Gritou para a irmã, Olha, é Jesus, ambos correram naquela direcção, mas de repente José parou, lembrara-se da mãe, lembrou-se também da dureza com que o irmão o recebera lá no mar, não a ele, é certo, ao recado que com Tiago fora mandado levar, e, pensando que depois teria de explicar a Jesus por que estava assim procedendo, voltou para trás. Ao virar a esquina da rua, olhou ainda, e, mordido de ciúme, viu o irmão levantar Lídia nos braços como uma pena voando e ela cobrir-lhe a cara de beijos, enquanto a mulher e o outro homem sorriam. Com os olhos nublados de lágrimas de frustração, José correu, correu, entrou na casa, atravessou o pátio aos saltos para evitar pisar as toalhas e as vitualhas dispostas no chão e nas mesas baixinhas, chamou, Mãe, mãe, o que nos salva é termos cada um a nossa voz, não faltariam mães a olharem para um filho que não era o seu, olhou apenas Maria, olhou e compreendeu, quando José lhe disse, Vem aí Jesus, ela já o sabia. Empalideceu, corou, sorriu, ficou séria e pálida outra vez, e o resultado de todas estas alterações foi levar uma mão ao peito como se o coração lhe faltasse e recuar dois passos como se tivesse batido contra um muro. Quem vem com ele, perguntou, porque tinha a certeza de que alguém o acompanhava, Um homem e uma mulher, e a Lídia, que lá ficou, A mulher é a que tu viste, Sim, mãe, mas ao homem não o conheço. Aproximou-se Lísia, apenas curiosa, mal adivinhando, Que é, minha mãe, Teu irmão está aqui e vem ao casamento, Jesus está em Caná, Viu--o José. Não foram tão manifestos os alvoroços de Lísia, mas abriu-se-lhe no rosto um sorriso que parecia não ter de acabar e murmurou, O meu irmão, note-se, para quem o não souber, que é isto o comprazimento, um sorriso como o de Lísia e um murmúrio que vale outro tanto, Vamos ao encontro dele, disse, Vai tu, eu fico aqui, defendeu-se a mãe, e para José, Vai com a tua irmã. Mas José não quis ser segundo nos abraços em que Lídia fora primeira e, porque Lísia sozinha não se atrevia, ali ficaram os três, como culpados à espera duma sentença, incertos sobre a misericórdia do juiz, se as palavras juiz e misericórdia podem ter cabimento neste caso.
Assomou Jesus à porta, trazia Lídia ao colo, e vinha Maria de Magdala atrás, mas antes entrara André, que era ele o outro homem da companhia, parente do noivo como logo se percebeu, dizia para os que acudiram, risonhos, a recebê-lo, Pois não, Simão não pôde vir, e enquanto este encontro de família a uns estava tão felizmente ocupando, outros, ali, olhavam-se por cima de um abismo, perguntando-se qual deles seria o primeiro a pôr um pé na delgada e frágil ponte que, apesar de tudo, ainda unia um lado ao outro lado. Não diremos, como um poeta disse, que o melhor do mundo são as crianças, mas é graças a elas que às vezes os adultos conseguem dar, sem desdouro de orgulho, certos difíceis passos, ainda que depois se venha a ver que o caminho não passou daí. Lídia escorregou dos braços de Jesus e correu para a mãe, e foi como no teatro de fantoches, um movimento obrigou a outro, os dois a um terceiro, Jesus avançou para a mãe e saudou-a, conjuntamente aos irmãos, com as palavras de quem todos os dias se encontra, sóbrias e sem emoção. Feito isso seguiu adiante, deixando Maria como uma transida estátua de sal, e, perdidos, os irmãos. Maria de Magdala foi atrás dele, passou ao lado de Maria de Nazaré, e as duas mulheres, a honesta e a impura, num relance, olharam-se sem hostilidade nem desprezo, antes com uma expressão de mútuo e cúmplice reconhecimento que só aos entendidos nos labirínticos meandros do coração feminino é dado compreender. Já vinha perto o cortejo, ouviam-se os gritos e as palmas, o ruído trêmulo e vibrante das pandeiretas, os sons esparsos e finos das harpas, o ritmar das danças, um vozear de gente falando ao mesmo tempo, no instante após o pátio ficou cheio, os noivos entraram como de empurrão entre vivas e aplausos e foram adiante a receber as bênçãos dos pais e dos sogros, que os esperavam. Maria, que ali ficara, também os abençoou, como abençoara tempos atrás a sua filha Lísia, agora, como então, sem ter a seu lado nem marido nem primogénito que lhe ocupasse, em poder e autoridade, o lugar. Sentaram-se todos, a Jesus foi logo oferecido um lugar de importância porque André, à boca pequena, informara os parentes de que aquele é que era o homem que atraía os peixes às redes e domava as tempestades, mas Jesus recusou a honra e foi sentar-se com os outros, ficando no extremo duma das filas de convidados. A Jesus servia-o Maria de Magdala, que ninguém ali perguntou quem fosse, alguma vez se acercou Lísia, e ele, nos modos, não fez diferenças entre uma e outra. Maria atendia noutro lado, com frequência, nas idas e vindas, cruzava-se com Maria de Magdala, trocavam o mesmo olhar, porém não falavam, até que a mãe de Jesus fez à outra sinal para chegar-se a um recanto do pátio, e disse-lhe, sem preâmbulo, Cuida do meu filho, que um anjo me disse que o esperam grandes trabalhos, e eu não posso nada por ele, Cuidarei, defendê-lo-ia com a minha vida se ela merecesse tanto, Como te chamas, Sou Maria de Magdala e fui prostituta até conhecer o teu filho. Maria ficou calada, na sua mente ordenavam-se, um a um, certos factos do passado, o dinheiro e o que acerca dele haveriam querido insinuar as meias palavras de Jesus, o relato irritado do filho Tiago e as suas opiniões sobre a mulher que acompanhava o irmão, e, agora tudo sabendo, disse, Eu te abençoo, Maria de Magdala, pelo bem que a meu filho Jesus fizeste, hoje e para sempre te abençoo. Maria de Magdala aproximou-se para beijar-lhe o ombro em sinal de respeito, mas a outra Maria lançou-lhe os braços, apertou-a contra si e as duas ficaram abraçadas, em silêncio, até que se separaram e voltaram ao trabalho, que não podia esperar.
A festa continuava, das cozinhas, em correnteza contínua, vinha a comida, das ânforas corna o vinho, a alegria soltava-se em cantos e danças, quando, de repente, um alarme correu secretamente do mordomo até aos pais dos noivos, Que se nos acaba o vinho, avisava. O pesar e a confusão caíram sobre eles como se o tecto lhes tivesse desabado em cima, E agora, que vamos fazer, como diremos aos nossos convidados que se acabou o vinho, amanhã não se falará doutra coisa em Caná, A minha filha, lamentava-se a mãe da noiva, a troça que não vão fazer dela daqui em diante, que no seu casamento até o vinho faltou, não merecíamos esta vergonha, que mau começo de vida. Nas mesas escorripichavam-se os últimos fundos dos copos, alguns convidados já olhavam em redor à procura de quem devia estar a servi-los, e eis que Maria, agora que já transmitira a outra mulher os encargos, deveres e obrigações que o filho recusava receber das suas mãos, quis, num relâmpago de inteligência, ter a sua prova própria dos anunciados poderes de Jesus, posto o que poderia depois recolher-se a casa e ao silêncio, como quem já terminou a sua missão no mundo e só espera que dele o venham retirar. Procurou com os olhos Maria de Magdala, viu-a cerrar lentamente as pálpebras e fazer um gesto de assentimento, e, sem mais demora, chegou-se ao filho e disse-lhe, no tom de quem está certo de não ter de dizer tudo para ser entendido, Não têm vinho. Jesus voltou lentamente a cara para a mãe, olhou a como se ela lhe tivesse falado de muito longe, e perguntou, Mulher, que há entre ti e mim, palavras estas, tremendas, que as ouviu quem ali estava, mas o assombro, a estranheza, a incredulidade, Um filho não trata desta maneira a mãe que lhe deu o ser, farão que o tempo, as distâncias e as vontades busquem para elas traduções, interpretações, versões, matizes que mitiguem a brutalidade e, se tal é possível, deem o dito por não dito ou o ponham a dizer o seu contrário, assim se escreverá no futuro que Jesus disse, Por que vens incomodar-me com isso, ou, Que tenho eu que ver contigo, ou, Quem te mandou meter-te nisto, mulher, ou, Que temos nós com isso, mulher, ou, Deixa-me proceder, não é preciso que mo peças, ou, Por que não mo pedes abertamente, continuo a ser o filho dócil de sempre, ou, Farei como queres, entre nós não há desacordo. Maria recebeu o choque em pleno rosto, suportou o olhar que a repelia, e, desta maneira colocando o filho entre a espada e a parede, rematou o desafio dizendo aos servidores, Fazei o que ele vos disser. Jesus viu a mãe afastar-se, não disse uma palavra, não fez um gesto para a reter, compreendera que o Senhor se havia servido dela como antes se serviu da tempestade ou da necessidade dos pescadores. Levantou o seu copo, onde ainda algum vinho ficara, e disse para os servidores, Enchei de água aquelas talhas, eram seis talhas de pedra que serviam para a purificação, e eles encheram-nas até cima, que cada uma delas levava duas ou três medidas, Chegai-mas cá, disse, e eles assim fizeram. Então Jesus verteu em cada talha uma parte do vinho que tinha no copo, e disse, Levai-as ao mordomo. Ora o mordomo, que não sabia donde lhe vinham as talhas, depois de provar a água que a pequena quantidade de vinho nem chegara a tingir, chamou o noivo e disse-lhe, Toda a gente serve primeiro o vinho bom, e, quando os convidados já beberam bem, serve então o pior, tu, porém, guardaste o vinho bom até agora. O noivo, que nunca em sua vida vira aquelas talhas servirem a vinho e, aliás, de mais sabia ele que o vinho se acabara, provou também e fez cara de quem, com mal fingida modéstia, se limita a confirmar o que tinha por certo, a excelente qualidade do néctar, por assim dizer um vintage. Se não fosse a voz do povo, representada, no caso, por uns servidores que no dia seguinte deram com a língua nos dentes, teria sido um milagre frustrado, pois o mordomo, se desconhecedor estava da transmutação, desconhecedor continuaria, ao noivo convinha, evidentemente, abotoar-se com o feito alheio, Jesus não era pessoa para andar dizendo por aí, Eu fiz os milagres tais e tais, Maria de Magdala, que desde o princípio participara do enredo, não iria pôr-se a fazer publicidades, Ele fez um milagre, ele fez um milagre, e Maria, a mãe, ainda menos, porque a questão fundamental era entre ela e o filho, o mais que aconteceu foi por acréscimo, em todos os sentidos da palavra, digam os convidados se não é assim, eles que voltaram a ter os copos cheios.
Maria de Nazaré e o filho não se falaram mais. Pelo meio da tarde, sem se despedir da família, Jesus foi-se embora com Maria de Magdala pelo caminho de Tiberíades. Escondidos da vista dele, José e Lídia seguiram-no até à saída da aldeia e ali ficaram a olhá-lo até que desapareceu numa curva da estrada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário