segunda-feira, 11 de março de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo XXI)



Começou então o tempo da grande espera. Os sinais com que até agora o Senhor se havia manifestado na pessoa de Jesus não passavam de meros prodígios caseiros, hábeis prestidigitações, passes do tipo mais-rápido-do-que-o-olhar, no fundo pouco diferentes dos truques que certos mágicos do oriente manipulavam com muito menos rústica arte, como seja atirar uma corda ao ar e subir por ela, sem que se percebesse se a ponta, em cima, estava atada a um sólido gancho ou se a invisível mão de um gênio auxiliar a segurava. Para obrar aquelas coisas, a Jesus bastava querê-lo, mas, se alguém lhe perguntasse para que as fizera, não saberia dar-lhe resposta, ou apenas que assim tinha sido preciso, uns pescadores sem peixe, uma tempestade sem recurso, uma boda sem vinho, verdadeiramente, ainda não chegara a hora de o Senhor começar a falar pela sua boca. O que se dizia pelos povoados deste lado da Galileia era que um homem de Nazaré andava por ali a usar de poderes que só de Deus lhe poderiam ter vindo, e não o negava, mas que, apresentando-se ele, em absoluto, omisso de causas, razões e contrapartidas, o que tinham que fazer era aproveitar a fartura e calar as perguntas. Claro que Simão e André não pensavam assim, nem os filhos de Zebedeu, mas esses eram seus amigos e temiam por ele. Todas as manhãs, quando acordava, Jesus perguntava-se em silêncio, Será hoje, em voz alta o fazia algumas vezes, para que Maria de Magdala ouvisse, e ela ficava calada, suspirando, depois rodeava-o com os braços, beijava-o na fronte e sobre os olhos, enquanto ele respirava o cheiro doce e morno que lhe subia dos seios, dias houve, destes, em que readormecia assim, outros em que esquecia a pergunta e a ansiedade e se refugiava no corpo de Maria de Magdala como se entrasse num casulo donde só poderia renascer transformado. Depois ia para o mar, para os pescadores que o esperavam, muitos dos quais nunca haveriam de compreender, e disseram-no, por que não comprava ele uma barca, à conta dos lucros futuros, e passava a trabalhar por conta própria. Em certas ocasiões, quando, no meio do mar, se prolongavam os intervalos entre as manobras da pesca, sempre necessárias mesmo tendo-se ela tornado fácil e relaxada como um bocejo, Jesus tinha um súbito pressentimento e o seu coração estremecia, porém os olhos não se viravam para o céu, onde é sabido que Deus habita, o que ele fixava, com obsessiva avidez, era a superfície calma do lago, as águas lisas que brilhavam como uma pele polida, o que ele esperava, com desejo e temor, parecia que das profundidades é que devia aparecer, o nosso peixe, diriam os pescadores, a voz que tarda, pensava talvez Jesus. A pesca chegava ao fim, a barca volvia carregada, e Jesus, cabisbaixo, seguia outra vez ao longo da margem, com Maria de Magdala atrás, à procura de quem precisasse dos seus serviços de olheiro grátis. Desta maneira passaram as semanas e os meses, passaram os anos também, mudanças que à vista se percebessem só as de Tiberíades, onde cresciam os edifícios e os triunfos, o mais eram as costumadas e consabidas repetições duma terra que nos invernos parece morrer-nos nos braços e nas primaveras ressuscitar, observação falsa, engano grosseiro dos sentidos, que a força da primavera seria nada se o inverno não tivesse dormido.
E eis que, enfim, ia Jesus nos seus vinte e cinco anos, pareceu que o universo todo começou de súbito a mover-se, novos sinais se sucederam, uns atrás dos outros, como se alguém, com repentina pressa, pretendesse reaver um tempo que houvesse malgastado. A bem dizer, o primeiro desses sinais não foi, propriamente falando, um milagre milagre, afinal não é nenhuma coisa do outro mundo estar a sogra de Simão achacada de uma indefinida febre e chegar-se Jesus à cabeceira da cama, pôr-lhe a mão na testa, qualquer de nós já fez este gesto, apenas por impulso de coração, sem esperança de ver curados por essa maneira rudimentar e seu tanto mágica os males do enfermo, mas o que nunca nos acontecera foi sentir a febre sumir-se debaixo dos dedos de Jesus como uma água maligna que a terra absorvesse e reduzisse, e acto contínuo levantar-se a mulher e dizer, é certo que fora de propósito, Quem é amigo do meu genro, é meu amigo, e foi-se às lides da casa como se nada. Este foi o primeiro sinal, doméstico, de interior, mas o segundo teve mais que se lhe diga porque representou um desafio frontal de Jesus à lei escrita e observada, acaso justificável, tendo em conta os comportamentos humanos normais, por viver Jesus com Maria de Magdala sem com ela estar casado, prostituta que havia sido, ainda por cima, por isso não se devia estranhar que estando uma mulher adúltera a ser apedrejada, conforme a lei de Moisés, e disso devendo morrer, aparecesse Jesus a interpor-se e a perguntar, Alto lá, quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lançar-lhe uma pedra, como se dissesse, Até eu, se não vivesse, como vivo, em concubinato, se estivesse limpo da lacra dos actos e pensamentos sujos, estaria convosco na execução dessa justiça. Arriscou muito o nosso Jesus porque podia ter acontecido que um ou mais dos apedrejadores, por serem de coração endurecido e estarem empedernidos nas práticas do pecado em geral, dessem ouvidos de mercador à admoestação e prosseguissem no apedrejamento, sem medo, eles próprios, à lei que estavam aplicando, por ser destinada às mulheres. O que Jesus não parece ter pensado, talvez por falta de experiência, é que se nós nos deixamos ficar à espera de que apareçam no mundo esses julgadores sem pecado, únicos, em sua opinião, que terão o direito moral de condenar e punir, muito me temo que medre desmesuradamente o crime nesse meio-tempo, e prospere o pecado, andando por aí as adúlteras à solta, ora com este, ora com aquele, e quem diz adúlteras, dirá o resto, incluindo os mil nefandos vícios que determinaram o Senhor a enviar uma chuva de fogo e enxofre sobre as cidades de Sodoma e Gomorra, deixando-as reduzidas a cinzas. Mas o mal, que nasceu com o mundo, e dele, quanto sabe, aprendeu, amados irmãos, o mal é como a famosa e nunca vista ave Fênix que, parecendo morrer na fogueira, de um ovo que as suas próprias cinzas criaram volta a renascer. O bem é frágil, delicado, basta que o mal lhe lance ao rosto o bafo quente de um simples pecado para que se lhe creste para sempre a pureza, para que se quebre o caule do lírio e murche a flor da laranjeira. Jesus disse à adúltera, Vai e doravante não tornes a pecar, mas no íntimo ia cheio de dúvidas.
Outro caso notável veio a ocorrer no lado de lá do mar, aonde Jesus achou por bem ir alguma vez, para que não se andasse a dizer que os seus carinhos e atenções iam todos para os da margem ocidental. Chamou, pois, Tiago e João, e disse-lhes, Vamos nós à Outra Banda, onde vivem os gadarenos, a ver se se nos apresenta alguma aventura, e à volta tratamos da pescaria, desta maneira nunca será uma viagem perdida. Convieram os filhos de Zebedeu na oportunidade da ideia e, apontado o rumo da barca, começaram a remar, esperando que lá mais à frente uma brisa os pudesse levar ao destino com menor esforço. Assim veio a acontecer, mas começaram por levar um susto porque de um momento para o outro pareceu que se lhes ia armar ali uma tempestade capaz de ombrear com aquela de há anos, porém Jesus disse às águas e aos ares, Então, então, como se falasse a uma criança traquina, e logo o mar se acalmou e o vento voltou a soprar na conta justa e na direcção certa. Desembarcaram os três, Jesus ia adiante, atrás Tiago e João, nunca tinham vindo antes a estas paragens e tudo lhes parecia surpresa e novidade, mas a maior delas, de abafar-se-nos o coração, foi que lhes saltou de repente um homem ao caminho, se o nome de homem podia ser dado a uma figura coberta de imundícies, de medonha barba e medonho cabelo, cheirando à putrefacção dos túmulos onde, como vieram a saber depois, tinha o costume de esconder-se sempre que conseguia partir os grilhões e correntes com que, por estar possesso, o queriam sujeitar no cárcere. Se ele fosse apenas um louco, ainda que saibamos que a estes se lhes duplicam as forças quando enfurecidos, bastaria, para mantê-lo, lançar-lhe em cima outro tanto de grilhões e correntes. Em vão o haviam feito uma vez, sem resultado o repetiram muitas, porque o espírito imundo que vivia dentro do homem e o governava ria-se de todas as prisões. Dia e noite, o endemoninhado andava aos saltos pelos montes, fugindo de si mesmo e da sua sombra, mas sempre voltava para esconder-se entre os túmulos e muitas vezes dentro deles, donde o tiravam à força, espavorindo de horror as gentes que o viam. Assim o encontrou Jesus, os guardas que atrás vinham para capturar o homem faziam grandes gestos com os braços a Jesus para que se pusesse a salvo do perigo, mas Jesus viera por uma aventura e não a iria perder por nada. Apesar do medo da avantesma, João e Tiago não abandonaram o seu amigo, e por isso foram eles as primeiras testemunhas de palavras que nunca alguém pensou poderem alguma vez ser ditas e ouvidas, porque iam contra o Senhor e as suas leis, como já a seguir se verá. Vinha a besta-fera estendendo as garras e arreganhando os colmilhos, donde pendiam restos de carnes putrefactas, e os cabelos de Jesus arrepiavam-se de terror, quando a dois passos se prostra no chão o endemoninhado e clama em voz alta, Que queres de mim, ó Jesus, filho do Deus Altíssimo, por Deus te peço que não me atormentes. Ora, esta foi a primeira vez que em público, não em sonhos privados, dos quais a prudência e o cepticismo sempre aconselharam a duvidar, uma voz se levantou, e voz diabólica ela era, para anunciar que este Jesus de Nazaré era filho de Deus, o que ele próprio até aí ignorava, pois durante a conversa que entretivera com Deus no deserto a questão da paternidade não fora abordada, Vou precisar de ti mais tarde, foi tudo quanto lhe disse o Senhor, e nem sequer era possível tirar pelas parecenças, tendo em conta que o pai se lhe mostrara em figura de nuvem e coluna de fumo. O possesso revolvia-se aos seus pés, a voz dentro dele pronunciara o até hoje impronunciado e calara-se, e nesse instante, Jesus, como quem acabasse de reconhecer-se noutro, sentiu-se, também ele, como que possesso, possesso de uns poderes que o levariam não sabia aonde ou a quê, mas sem dúvida, no fim de tudo, ao túmulo e aos túmulos. Perguntou ao espírito, Qual é o teu nome, e o espírito respondeu, Legião, porque somos muitos. Disse Jesus, imperiosamente, Sai desse homem, espírito imundo. Mal o dissera, ergueu-se o coro das vozes diabólicas, umas finas e agudas, outras grossas e roucas, umas suaves como de mulher, outras que pareciam serras a serrar pedra, umas em tom de sarcasmo provocante, outras com humildades falsas de mendigo, umas soberbas, outras de lamúria, umas como de criancinha que aprende a falar, outras que eram só grito de fantasma e gemido de dor, mas todas suplicavam a Jesus que os deixasse ficar ali, nestes sítios que já conheciam, que bastaria dar-lhes ele a ordem de expulsão e sairiam do corpo do homem, mas que, por favor, os não expulsasse da região. Perguntou Jesus, E para onde querem vocês ir. Ora, ali próximo do monte andava a pastar uma grande vara de porcos, e os espíritos impuros imploraram a Jesus, Manda-nos para os porcos e entraremos neles. Jesus pensou e pareceu-lhe que era uma boa solução, considerando que aqueles animais deviam ser pertença de gentios, uma vez que a carne do porco é impura para os judeus. A ideia de que, comendo os seus porcos, poderiam os gentios ingerir também os demônios que dentro deles estavam e ficar possessos, não ocorreu a Jesus, como também não lhe ocorreu o que depois desgraçadamente aconteceu, mas a verdade é que nem mesmo um filho de Deus, aliás ainda não habituado a tão alto parentesco, poderia prever, como no xadrez, todas as consequências dum simples lance, duma decisão simples. Os espíritos impuros, excitadíssimos, esperavam a resposta de Jesus, faziam apostas, e quando ela veio, Sim, podem passar para os porcos, deram em uníssono um grito descarado de alegria e, violentamente, entraram nos animais. Fosse pelo inesperado do choque, fosse por não estarem os porcos habituados a andar com demônios dentro, o resultado foi enlouquecerem todos num repente e lançarem-se do precipício abaixo, os dois mil que eram, indo cair ao mar, onde morreram afogados todos. Não se descreve a raiva dos donos dos inocentes animais que ainda um minuto antes andavam no seu sossego, fossando nas terras brandas, se as encontravam, à procura de raízes e vermes, rapando a erva escassa e dura das superfícies ressequidas, e agora, vistos cá de cima, os porquinhos faziam pena, uns já sem vida, boiando, outros, quase desfalecidos, faziam ainda um esforço titânico para manter as orelhas fora de água, pois é sabido que os porcos não podem fechar os condutos auditivos, entra-lhes por ali a água em caudal e, em menos que um ámen, ficam inundados por dentro. Os porqueiros, furiosos, atiravam de longe pedras a Jesus e a quem estava com ele, e já vinham a correr aí com o propósito, justíssimo, de exigir responsabilidades ao causador do prejuízo, um x por cabeça, a multiplicar por dois mil, as contas são fáceis de fazer. Mas não de pagar. Pescador é gente de pouco dinheiro, vive de espinhas, e Jesus nem pescador era. Ainda quis o nazareno esperar pelos reclamantes, explicar-lhes que o pior de tudo no mundo é o diabo, que ao lado dele dois mil porcos não tiram nem acrescentam, e que todos nós estamos condenados a sofrer perdas na vida, as materiais e as outras, Tenham paciência, irmãos, diria Jesus quando chegassem à fala. Mas Tiago e João não estiveram de acordo que se deixassem ficar à espera de um reencontro, que, pela amostra, não seria pacífico, de nada servindo a boa educação e as boníssimas intenções de um lado contra a brutalidade e a razão do outro lado. Jesus não queria, mas teve de render-se a argumentos que ganhavam mais poder persuasivo a cada pedra que caía perto. Desceram a correr a encosta para o mar, num salto estavam dentro da barca, e, à força de remos, em pouco tempo se acharam a salvo, os do outro lado não pareciam ser gente dada à vida da pesca, pois se barcos tinham não estavam à vista. Perderam-se uns porcos, salvou-se uma alma, o ganho é de Deus, disse Tiago. Jesus olhou-o como se pensasse noutra coisa, uma coisa que os dois irmãos, olhando-o a ele, queriam conhecer e de que estavam ansiosos por falar, a insólita revelação, feita pelos demônios, de que Jesus era filho de Deus, mas Jesus virara os olhos para a margem donde tinham fugido, via o mar, os porcos flutuando e baloiçando-se na ondulação, dois mil animais sem culpa, uma inquietação germinava dentro de si, buscava por onde romper, e de súbito, Os demônios, onde estão os demônios, gritou, e depois soltou uma gargalhada para o céu, Escuta-me, ó Senhor, ou tu escolheste mal o filho que disseram que eu sou e há-de cumprir os teus desígnios, ou entre os teus mil poderes falta o duma inteligência capaz de vencer a do diabo, Que queres dizer, perguntou João, aterrado pelo atrevimento da interpelação, Quero dizer que os demônios que moravam no possesso estão agora livres, porque os demônios já nós sabíamos que não morrem, meus amigos, nem sequer Deus os pode matar, o que eu ali fiz valeu tanto como cortar o mar com uma espada. Do outro lado descia para a margem muita gente, alguns atiravam-se à água para recuperar os porcos que boiavam mais perto, outros saltavam para os barcos e iam à caça.
Nessa noite, na casa de Simão e André, que era ao lado da sinagoga, reuniram-se os cinco amigos em segredo para debaterem a tremendíssima questão de ser Jesus, segundo a revelação dos demônios, filho de Deus. Depois do mais que estranho caso, tinham-se posto de acordo os da aventura em deixarem para a noite a inevitável conversa, mas agora era chegado o momento de pôr tudo em pratos limpos. Jesus começou por dizer, Não se pode ter confiança no que diz o pai da mentira, referia-se; claro está, ao Diabo. Disse André, A verdade e a mentira passam pela mesma boca e não deixam rasto, o Diabo não deixa de ser Diabo por alguma vez ter falado verdade. Disse Simão, Que tu não eras um homem como nós, sabíamo-lo já, veja-se o peixe que não pescaríamos sem ti, a tempestade que nos ia matando, a água que tornaste em vinho, a adúltera que salvaste da lapidação, agora os demônios expulsos dum possesso. Disse Jesus, Não fui o único a fazer sair demônios de pessoas, Tens razão, disse Tiago, mas foste o primeiro diante de quem eles se humilharam, chamando-te filho do Deus Altíssimo, Serviu-me de muito a humilhação, no fim o humilhado fui eu, O que conta não é isso, eu estava lá e ouvi, interveio João, por que não nos disseste que és filho de Deus, Não sei se sou filho de Deus, Como é possível que o saiba o Diabo e não o saibas tu, Boa pergunta é ela, mas a resposta só eles ta saberão dar, Eles, quem, Deus, de quem o Diabo diz que sou filho, o Diabo, que só de Deus o podia ter sabido. Houve um silêncio, como se todos que ali estavam quisessem dar tempo a que as personagens invocadas se pronunciassem, e, ao cabo, Simão lançou a questão decisiva, Que há entre ti e Deus. Jesus suspirou, Eis a pergunta que eu esperava que me fizésseis desde que aqui cheguei, Nunca imaginaríamos que um filho de Deus tivesse querido fazer-se pescador, Já vos disse que não sei se sou filho de Deus, Que és tu, afinal. Jesus cobriu a cara com as mãos, buscava nas lembranças do que tinha sido uma ponta por onde começar a confissão que lhe pediam, de súbito viu a sua vida como se ela pertencesse a outro, aí está, se os diabos falaram verdade, então tudo quanto antes lhe sucedeu tem de ter um sentido diferente do que parecia e alguns desses sucessos só à luz da revelação podem ser agora entendidos. Jesus afastou as mãos da cara, olhou os amigos um por um, com uma expressão de súplica, como se reconhecesse que a confiança que lhes pedia era superior à que um homem pode conceder a outro homem, e no fim de um longo silêncio disse, Eu vi Deus. Nenhum deles pronunciou palavra, apenas aguardaram. Ele prosseguiu, de olhos baixos, Encontrei-o no deserto e ele anunciou-me que quando a hora for chegada me dará glória e poder em troca da minha vida, mas não disse que eu fosse seu filho. Outro silêncio. E como se mostrou Deus aos teus olhos, perguntou Tiago, Como uma nuvem, uma coluna de fumo, Não de fogo, Não, não de fogo, de fumo, E não te disse mais nada, Que voltaria quando chegasse o momento, O momento de quê, Não sei, talvez de vir buscar a minha vida, E essa glória, e esse poder, quando tos dará, Não sei. Novo silêncio, na casa onde estavam abafava-se de calor, mas todos tremiam. Depois Simão perguntou pausadamente, Serás tu o Messias, a quem deveremos chamar filho de Deus porque virás para resgatar o povo de Deus da servidão em que se encontra, Eu, o Messias, Não seria maior motivo de assombro do que seres filho directo do Senhor, sorriu-se André nervosamente. Disse Tiago, Messias ou filho de Deus, o que eu não compreendo é como o soube o Diabo, se o Senhor nem a ti to declarou. Disse João, pensativo, Que coisas que nós não sabemos haverá entre o Diabo e Deus. Olharam-se receosos, porque tinham medo de sabê-lo, e Simão perguntou a Jesus, Que vais fazer; e Jesus respondeu, O que só posso, esperar a hora.
Já vinha muito perto, a hora, mas Jesus, antes de ela chegar, ainda teve ocasião, por duas vezes, de manifestar os seus poderes milagrosos, embora sobre a segunda fosse preferível deixar cair um véu de silêncio porque se tratou de um equívoco seu, de que veio a resultar morrer uma figueira que tão inocente estava de qualquer mal como os porcos que os demônios precipitaram no mar. Porém, o primeiro destes dois actos merecia bem ser levado ao conhecimento dos sacerdotes de Jerusalém para ficar depois gravado com letras de ouro no frontão do Templo, porque uma coisa assim nunca se tinha visto antes, nem tornou a ver-se mais, até aos dias de hoje. Discrepam os historiadores sobre os motivos que teriam levado tanta e tão diversa gente a reunir-se naquele lugar, sobre cuja localização, diga-se de passagem e a propósito, também abundam as dúvidas, havendo quem afirme, isto quanto aos motivos, que se tratava simplesmente de uma romaria tradicional cuja origem já se teria perdido na noite dos tempos, outros que não senhor, o que tinha era corrido a voz, que depois veio a averiguar-se infundada, de que chegara um plenipotenciário de Roma para anunciar uma descida dos impostos, e outros, ainda, não propondo qualquer hipótese ou solução para o problema, protestam que só ingênuos podem acreditar em diminuições de cargas fiscais e revisões da massa tributária favoráveis ao contribuinte e que, quanto à supostamente desconhecida origem da romaria, sempre algum indício de causa prima se poderia descobrir se os que gostam de encontrar tudo feito se dessem ao trabalho de investigar o imaginário colectivo. O certo e o sabido é que estavam ali entre quatro mil e cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças, e que toda esta gente, num determinado momento, se achou sem ter de que comer. Como é que um povo tão precavido, tão acostumado a viajar e a prevenir-se de farnel mesmo quando se tratava de ir daqui além, se encontrou de repente desmunido de uma côdea de pão e de uma febra de conduto, é o que ninguém hoje consegue nem tenta explicar. Mas os factos são os factos, e os factos dizem-nos que estavam ali entre doze e quinze mil pessoas, se desta vez não nos esquecermos das mulheres e das crianças, com o estômago vazio há não se sabe quantas horas, tendo, mais cedo ou mais tarde, de voltar para casa, com perigo de se ficarem pelo caminho a morrer de inanição ou entregues à caridade e fortuna de quem passasse. As crianças, que nestes casos são sempre as primeiras a dar o sinal, já reclamavam, impacientes, algumas choramingando, Ó mãe, tenho fome, e a situação ameaçava tornar-se, a cada momento, como então se dizia, incontrolável. Jesus estava no meio da multidão com Maria de Magdala, estavam também os seus amigos, Simão, André, Tiago e João, que, desde o episódio dos porcos e o que depois se soube, quase sempre andavam com ele, mas, ao contrário do resto da gente, tinham-se aviado com alguns peixes e alguns pães. Estavam, por assim dizer, servidos. Porem-se a comer, ali diante de toda aquela gente, além de ser prova de um feio egoísmo, não estava isento de alguns riscos, uma vez que da necessidade à lei apenas medeia um curtíssimo passo, e a mais expedita justiça, sabemo-lo desde Caim, é a que fazemos pelas nossas próprias mãos. Jesus nem por sombras imaginava que pudesse valer a tanta gente num tal aperto, mas Tiago e João, com a segurança que caracteriza as testemunhas presenciais, foram para ele e disseram-lhe, Se foste capaz de fazer sair do corpo dum homem os demônios que o matavam, também deves poder fazer entrar no corpo desta gente a comida de que precisam para viver, E como o farei, se aqui não temos mais alimento do que este pouco que trouxemos, És o filho de Deus, podes fazê-lo. Jesus olhou Maria de Magdala, que lhe disse, Já chegaste ao ponto donde não podes voltar para trás, e a expressão da sua cara era de pena, não percebeu Jesus se dele ou da esfomeada gente. Então, tomando os seis pães que tinham trazido, partiu cada um deles em duas metades e deu-os aos que o acompanhavam, fez o mesmo com os seis peixes, ficando, também ele, com um pão e um peixe. Depois disse, Vinde comigo e fazei o que eu fizer. Sabemos o que fez, mas nunca saberemos como pôde tê-lo feito. ia de pessoa em pessoa, partindo e dando o pão e o peixe, porém, cada uma recebia, em cada pedaço, um peixe e um pão inteiros. Do mesmo modo procediam Maria de Magdala e os quatro, e por onde eles passavam era como um benévolo vento que fosse soprando sobre a seara, levantando uma a uma as espigas descaídas, com um grande rumor de folhas que eram, aqui, as bocas mastigando e agradecendo, É o Messias, diziam alguns, É um mago, diziam outros, mas a nenhum dos que ali estavam passou pela cabeça perguntar, És o filho de Deus. E Jesus dizia a todos, Quem tiver ouvidos que ouça, se não dividirdes, não multiplicareis.
Que Jesus o tenha ensinado, bem está, que a oportunidade vinha a calhar. Mas o que não está bem é ter ele próprio tomado à letra a lição quando não devia, que esse foi o caso já falado da figueira. ia Jesus por um caminho no campo quando sentiu fome, e vendo ao longe uma figueira com folhas, foi ver se nela encontraria alguma coisa, mas, ao chegar ao pé dela, não encontrou senão folhas, pois não era tempo de figos. Disse então, Nunca mais nascerá fruto de ti, e naquele mesmo instante secou a figueira. Disse Maria de Magdala, que com ele estava, Darás a quem precisar, não pedirás a quem não tiver. Arrependido, Jesus ordenou à figueira que ressuscitasse, mas ela estava morta.


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