sexta-feira, 1 de março de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo XVIII)




Acabara de pôr-se o sol quando Jesus tornou a pisar o chão de Nazaré, quatro longos anos contados, mais semana menos semana, sobre aquele dia em que daqui fugiu, criança ainda, afligido por um mortal desespero, para ir pelo mundo à procura de alguém que o ajudasse a entender a primeira verdade insuportável da sua vida. Quatro anos, mesmo arrastados, podem não ser o bastante para sarar uma dor, mas, no geral, adormecem-na. Perguntara no Templo, refizera os caminhos da montanha com o rebanho do Diabo, encontrara Deus, dormira com Maria de Magdala, este homem que para cá vem não parece já sofrer, tirando aquela umidade dos olhos de que temos falado, mas que, se bem ponderarmos as causas possíveis, também poderia ser um efeito tardio do fumo dos sacrifícios, ou um arrebato da alma produzido pelos horizontes das altas pastagens, ou o medo de quem sozinho no deserto ouviu dizer Eu sou o Senhor, ou, enfim, quiçá o mais provável por mais próximo estar, a ânsia e a lembrança de um corpo ainda há poucas horas deixado, Confortai-me com uvas passas, fortalecei-me com maçãs, porque desfaleço de amor, esta doce verdade poderia vir dizê-la Jesus a sua mãe e seus irmãos, mas o passo suspendeu-se-lhe no limiar da porta, Quem são minha mãe e meus irmãos, pergunta, não é que ele o não saiba, a questão é se sabem eles quem ele é, aquele que perguntou no Templo, aquele que contemplou os horizontes, aquele que encontrou Deus, aquele que conheceu o amor da carne e nele se reconheceu homem. Neste mesmo sítio, em frente da porta, esteve em tempos um mendigo que disse ser um anjo e que, podendo, se anjo era, irromper pela casa dentro, levando consigo o tufão das suas revoltas asas, preferiu bater, e com palavras de mendigo pedir esmola. A porta está fechada apenas com a tranqueta. Jesus não vai precisar chamar como teve de fazer lá em baixo em Magdala, entrará tranquilamente nesta casa que é sua, veja-se como vem curado da chaga do pé, é certo que são as mais fáceis de curar, as de sangue e de pus. Não precisava bater, mas bateu. Ouvira vozes por trás do muro, reconheceu, mais distante, a da mãe, mas não teve ânimo de empurrar simplesmente a porta e anunciar, Aqui estou, como alguém que, sabendo-se desejado, quer fazer a surpresa que a todos irá tornar felizes. Quem veio abrir foi uma menina pequena, de uns oito ou nove anos, que não reconheceu o visitante, a voz do sangue não lhe acudiu a dizer, Este homem é teu irmão, não te lembras, o Jesus, o primogénito, foi ele quem disse, apesar dos quatro anos acrescentados à idade de um e do outro e do lusco-fusco da hora, Chamas-te Lídia, e ela respondeu, Sim, pronta a maravilhar-se por um desconhecido saber o seu nome, mas ele quebrou os encantamentos todos, dizendo, Sou o teu irmão Jesus, deixa-me passar. No pátio, junto à casa e debaixo do alpendre, viu vultos que eram como sombras, seriam os seus irmãos, e agora olhavam na direcção da porta, dois deles, os mais velhos dos rapazes, Tiago e José, aproximavam-se, não tinham ouvido o que Jesus dissera, mas não merecia a pena virem identificar o visitante, Lídia já gritava, entusiasmada, É Jesus, é o nosso irmão, então todas as sombras se moveram e à porta da casa apareceu Maria, estava Lísia com ela, a outra filha, quase tão alta como a mãe, e ambas exclamaram, que parece que o disseram com a mesma voz, Ai o meu filho, Ai o meu irmão, no instante seguinte estavam todos abraçados ali no meio do pátio, era, verdadeiramente, a alegria das famílias reencontradas, acontecimento em geral notável, sobretudo, como é o caso, quando foi o próprio primogénito quem regressou aos nossos carinhos e cuidados. Jesus saudou a mãe, saudou cada um dos irmãos, por todos eles foi saudado com calorosas expressões de boas-vindas, Mano Jesus, que bom ver-te, Mano Jesus, julgávamos que te tinhas esquecido de nós, um pensamento não se ouviu, Mano Jesus, não parece que venhas rico. Entraram em casa e sentaram-se a cear, que para isso se estava preparando a família quando ele bateu à porta, aqui se diria, vindo Jesus donde vem, de excessos de carne pecadora e má frequentação moral, aqui se diria, com a rude franqueza da gente simples que viu reduzir-se-lhe de repente a ração, À hora de comer, sempre o diabo traz mais um. Não o disseram estes, e mal pareceria se o dissessem, que ao coro das mastigações só uma boca viera acrescentar-se, nem se nota a diferença, onde comeriam nove, comem dez, e este tem mais direito. Enquanto ceavam quiseram os irmãos mais novos saber de aventuras, que os três mais velhos e a mãe logo perceberam que não houvera mudança de profissão desde o encontro de Jerusalém, tanto mais que do peixe havia-se perdido antes o cheiro, e dos aromas pecaminosos de Maria de Magdala deram conta o vento, as horas de caminhada e o pó, salvo se chegássemos bem o nariz à túnica de Jesus, mas, se a tanto nem a família se atreveria, que faríamos nós. Jesus contou que andara de pastor no maior de todos os rebanhos alguma vez visto, que nos últimos tempos estivera no mar pescando e ajudara a fazer sair dele grandes e maravilhosas pescarias, e também que lhe sucedera a mais extraordinária aventura que podia caber na imaginação e na esperança dos homens, mas que dela só poderia falar noutra ocasião, e não a todos. Estava-se nisto, os mais pequenos insistindo, Conta, conta, quando o do meio, Judas chamado, perguntou, mas não o fez por mal, De tanto tempo, que dinheiro trazes, e Jesus respondeu, Nem três moedas, nem duas, nem uma, nada, e, para prová-lo, porque a todos devia estar parecendo impossível uma tal penúria depois de quatro anos de contínuo trabalho, ali mesmo esvaziou o alforje, na verdade nunca se viu maior pobreza de bens e petrechos, uma faca de lâmina gasta e torcida, uma ponta de baraço, um troço de pão duríssimo, dois pares de sandálias feitas em pedaços, o que restara dos rasgões duma túnica velha, É a do teu pai, disse Maria, tocando-lhe, e, tocando as sandálias maiores, Eram do vosso pai. Baixaram-se as cabeças dos irmãos, uma saudade recordou o triste passamento do progenitor, depois Jesus fez voltar ao alforje o mísero conteúdo, quando de súbito deu por que uma ponta da túnica fazia um nó volumoso e percebeu que o nó era pesado e, sendo-o, ao pensá-lo subiu-lhe o sangue à cara, só podia conter dinheiro, esse mesmo que negara possuir, e que o dinheiro fora ali posto por Maria de Magdala, ganho portanto, não com o suor do rosto, como manda a dignidade, mas com gemidos falsos e suores suspeitos. A mãe e os irmãos olharam a denunciadora ponta da túnica, depois, como se tivessem combinado o movimento, olharam-no a ele, e Jesus, entre disfarçar e ocultar a prova da sua mentira e exibi-la sem poder dar uma explicação que a moralidade da família condescendesse em aceitar, tomou o partido mais difícil, desatou o nó e fez sair o tesouro, vinte moedas como nunca as tinham visto nesta casa, e disse, Não sabia que tinha este dinheiro. A reprovação silenciosa da família passou no ar como um sopro escaldante do deserto, que vergonha, um primogénito mentiroso. Jesus reflectia em seu coração e não encontrava nele qualquer irritação contra Maria de Magdala, só uma infinita gratidão pela sua generosidade, por essa delicadeza de querer dar-lhe um dinheiro que sabia que ele teria pejo em aceitar da mão dela directamente, pois uma coisa é ter dito, A tua mão esquerda está debaixo da minha cabeça, e a tua direita abraça-me, e outra coisa seria não pensar que outras mãos esquerdas e outras mãos direitas te abraçaram, sem quererem saber se alguma vez a tua cabeça desejou um simples amparo. Agora é Jesus quem olha a família, desafiando-a a aceitar a sua palavra, Não sabia que tinha este dinheiro, verdade, sem dúvida, mas que é, ao mesmo tempo, inteira e incompleta, desafiando-a também, em silêncio, a fazer-lhe a pergunta irreplicável, Se não sabias que o tinhas, como explicas que o tenhas, a isto não pode ele responder, Pô-lo aqui uma prostituta com quem dormi nestes últimos oito dias e que o ganhou dos homens com quem dormiu antes. Sobre a túnica suja e esgarçada do homem que morreu crucificado há quatro anos e cujos ossos conheceram a ignomínia duma vala comum, brilham as vinte moedas, como a terra luminosa que uma noite assombrou esta mesma casa, mas aqui não virão hoje os anciãos da sinagoga dizer, Enterrem-nas, como também ninguém aqui perguntará, Donde vieram, para que a resposta não nos obrigue a rejeitá-las, contra vontade e necessidade. Jesus recolhe as moedas na concha das duas mãos, torna a dizer, Não sabia que tinha este dinheiro, como quem oferece ainda uma última oportunidade, e depois, olhando a mãe, Não é dinheiro do Diabo. Estremeceram de horror os irmãos, mas Maria respondeu, sem alterar-se, Tão pouco veio de Deus. Jesus fez saltar as moedas, uma, duas vezes, brincando, e disse, tão simplesmente como se anunciasse que no dia seguinte voltaria à banca de carpinteiro, Minha mãe, de Deus falaremos amanhã, e, para os irmãos Tiago e José, Também convosco falarei, acrescentou, ora, é bom que não se pense ter sido uma deferência de primogénito dizê-lo, aqueles dois já entraram na maioridade religiosa, têm, por direito próprio, acesso aos assuntos reservados. Entendeu porém Tiago que, tendo em conta a superior importância do tema, algo devia ser adiantado já sobre os motivos da prometida conversa, não é chegar aqui um irmão, por muito primogénito que seja, e dizer, Temos de ter uma conversa acerca de Deus, por isso, com um sorriso insinuante, disse, Se, como nos disseste, andaste quatro anos de pastor por esses montes e vales, não há-de ter sido muito o tempo que te sobrou para frequentares sinagogas e aprender nelas, ao ponto de, mal tornado a casa, nos dizeres que nos queres falar do Senhor. Jesus sentiu a hostilidade por baixo da blandícia e respondeu, Ai, Tiago, quão pouco sabes tu de Deus se ignoras que não precisamos andar à procura dele se ele estiver decidido a encontrar-nos, Se bem estou a entender-te referes-te a ti próprio, Não me faças perguntas até amanhã, amanhã falarei do que tiver de falar. Murmurou Tiago palavras que não se ouviram, mas que deviam ter sido um comentário ácido sobre aqueles que presumem de saber tudo. Maria disse com ar cansado para Jesus, Amanhã dirás, ou depois de amanhã, ou quando quiseres, mas agora diz-me, e aos teus irmãos, o que tencionas fazer com esse dinheiro, que aqui estamos passando muita necessidade, Não queres saber como o tenho, Disseste que não sabias que o tinhas, E é verdade, mas pensei e sei já por que o tenho, Se não está mal nas tuas mãos, também não o estará nas da tua família, É tudo quanto tens a dizer acerca deste dinheiro, Sim, Então gastá-lo-emos, como é justo, no governo da casa. Ouviu-se um murmúrio geral de aprovação, o próprio Tiago fez um sinal de congratulação amistosa, e Maria disse, Se não te importasses, guardaríamos uma parte dele para o dote da tua irmã, Ainda não me havíeis dito que Lísia já tem casamento aprazado, Sim, vai ser na primavera, Dir-me-ás quanto necessitas, Não sei o que valem essas moedas. Jesus sorriu e disse, Também não sei quanto valem, só sei o valor que têm. Riu alto e destemperado, como se tivesse achado graça às suas próprias palavras, e toda a família o olhou, confundida. Apenas Lísia baixara os olhos, tem quinze anos e o pudor intacto, todas as misteriosas intuições da idade, e é, de quantos aqui estão, aquela que mais fortemente se perturba com este dinheiro que ninguém quer saber a quem pertenceu, donde veio nem como foi ganho. Jesus entregou uma moeda à mãe e disse, Amanhã a cambiarás, então saberemos o seu valor, Decerto me vão perguntar como me entrou tanta riqueza em casa, pois quem uma moeda destas pode mostrar, outras mais terá guardadas, Dizes apenas que o teu filho Jesus voltou da viagem, e que não há riqueza maior que o regresso do filho pródigo.
Nessa noite Jesus sonhou com o pai. Fora deitar-se no pátio, debaixo do alpendre, porque, ao ver aproximar-se a hora de ir para a cama, sentiu que não suportaria a promiscuidade da casa, aquelas dez pessoas espalhadas pelos cantos à procura dum recolhimento impossível, não era como no tempo em que não se notava grande diferença entre isto e um rebanho de cordeirinhos, agora sobram pernas, braços, contactos e incompatibilidades. Antes de adormecer, Jesus pensou em Maria de Magdala e em todas as coisas que tinham feito juntos, e, se é certo que tais pensamentos o alteraram ao ponto de por duas vezes se ter levantado da palha para dar uma volta no pátio a fim de refrescar o sangue, também é certo que, entrado finalmente no sono, o dormir acabou por lhe chegar liso e manso, de criança inocente, como um corpo que fosse rio abaixo, abandonado à corrente vagarosa, vendo passar por cima da cabeça os ramos e as nuvens, e um pássaro sem voz que aparecia e desaparecia. O sonho de Jesus começou quando ele imaginou ter sentido um leve choque, como se o seu corpo, vogando, tivesse roçado outro corpo. Pensou que era Maria de Magdala e sorriu, sorrindo voltou a cabeça para ela, mas quem ali ia, levado na mesma água, debaixo do mesmo céu e dos mesmos ramos, sob o esvoaçar da ave silenciosa, era seu pai. O antigo grito de pavor começou a formar-se-lhe na garganta, mas suspendeu-se logo, o sonho não era o do costume, ele não estava, criança, numa praça de Belém com outras crianças à espera da morte, não se ouviam passos e relinchos de cavalos nem tilintar e ranger de armas, apenas o sedoso deslizar da água, os dois corpos como se fossem uma jangada, o pai, o filho, levados no mesmo rio. Nesse instante, o medo desapareceu da alma de Jesus e, em seu lugar, explodiu, irreprimível, como um rapto patético, um sentimento de exultação, Meu pai, disse ele, sonhando, Meu pai, repetiu, já acordado, mas agora estava a chorar porque percebeu que se encontrava sozinho. Quis regressar ao sonho, repeti-lo desde o primeiro momento, para tornar a sentir, já a esperando, a surpresa daquele choque, ver outra vez o pai e deixar-se ir com ele na corrente, até ao fim das águas e dos tempos. Não o conseguiu nesta noite, mas o antigo sonho não voltará mais, daqui em diante, em vez do medo vir-lhe-á a exultação, em vez da solidão terá a companhia, em vez da morte adiada a vida prometida, expliquem agora, se tal podem, os sábios da Escritura que sonho foi este que Jesus teve, que significam o rio e a corrente, e os ramos suspensos e as nuvens vogando, e a ave calada, e por que é que graças a tudo isto, reunido e posto por ordem, se puderam juntar o pai e o filho, apesar da culpa de um não ter perdão e a dor do outro não ter remédio.
No dia seguinte, Jesus quis ajudar Tiago no trabalho da carpintaria, mas logo ali ficou demonstrado que os seus bons propósitos não bastariam para suprir a ciência que faltava e que, até aos últimos tempos da aprendizagem, em vida do pai, nunca chegara a merecer nota de suficiente. Para as necessidades da clientela, Tiago tornara-se num carpinteiro bastante sofrível, e o próprio José, apesar de não ter mais que catorze anos, conhecia já destas artes da madeira o bastante para poder dar lições ao irmão mais velho, se um tal atentado às precedências da idade fosse consentido na rígida hierarquia familiar. Tiago ria-se da falta de jeito de Jesus e dizia-lhe, Quem te fez pastor, perdeu-te, palavras estas simples, de simpática ironia, que não se podia imaginar que cobrissem um pensamento reservado ou sugerissem um segundo sentido, mas que fizeram com que Jesus se afastasse de modo brusco da banca e Maria dissesse ao segundo filho, Não fales de perdição, não chames o diabo e o mal à nossa casa. E Tiago, estupefacto, Mas eu não chamei nada, minha mãe, eu só disse, Sabemos o que disseste, cortou Jesus, a nossa mãe e eu sabemos o que disseste, quem juntou na sua cabeça pastor e perdição foi ela, não tu, e as razões tu não as sabes, mas ela sim, Eu avisei-te, disse Maria, com força, Avisaste-me quando o mal estava feito, se mal foi, que eu olho para mim e não o encontro, respondeu Jesus, Não há cego tão cego como aquele que não quer ver, disse Maria. Estas palavras enfadaram muito Jesus, que respondeu, repreensivo, Cala-te, mulher, se os olhos do teu filho viram o mal, viram-no depois de ti, mas estes mesmos olhos, que para ti parece que estão cegos, viram também o que nunca viste e com certeza não verás. A autoridade de filho primogénito e a dureza do tom, além das enigmáticas palavras finais, fizeram ceder Maria, mas a sua resposta ainda levou uma última advertência, Perdoa-me, não foi minha intenção ofender-te, queira o Senhor guardar-te sempre a luz dos olhos e a luz da alma, disse. Tiago olhava a mãe, olhava o irmão, percebia que havia ali um conflito, mas não imaginava que antigas causas pudessem explicá-lo, já que para causas novas não parecia que tivesse chegado a haver tempo. Jesus dirigiu-se para a casa, mas, no limiar da porta, virou-se para trás e disse à mãe, Manda os teus filhos que saiam e se distraiam fora, preciso falar-te a sós, mais a Tiago e a José. Saíram os irmãos, e a casa, um minuto antes atravancada de gente, ficou de repente vazia, apenas quatro pessoas sentadas no chão, Maria entre Tiago e José, Jesus diante deles. Houve um longo silêncio, como se todos, de comum acordo, estivessem dando tempo aos indesejados ou não merecedores para que se afastassem até onde nem o eco de um grito pudesse chegar, enfim Jesus disse, deixando cair as palavras, Eu vi Deus. O primeiro sentimento legível nos rostos da mãe e dos irmãos foi de temor reverencial, o segundo de incredulidade cautelosa, depois, entre um e outro, perpassou algo como uma expressão de desconfiança malévola em Tiago, um assomo de excitação deslumbrada em José, um traço de amargor resignado em Maria. Nenhum deles falou, e Jesus repetiu, Eu vi Deus. Se um súbito instante de silêncio é, no dizer popular, consequência de ter passado um anjo, aqui não acabavam de passar, Jesus já dissera tudo, os parentes não sabiam que dizer, não tarda que se levantem e vá cada um à sua vida, perguntando-se se realmente teriam sonhado um sonho assim, tão impossível de acreditar. Tem, porém, o silêncio, se lhe dermos tempo, aquela virtude, que aparentemente o nega, de obrigar a falar. Por isso, quando já não se podia aguentar mais a tensão da espera, Tiago fez uma pergunta, a mais inócua de todas, pura e gratuita retórica, Tens a certeza. Jesus não respondeu, apenas o olhou como provavelmente Deus o olhara a ele de dentro da nuvem, e pela terceira vez disse, Eu vi Deus. Maria não fez perguntas, só disse, Terá sido uma ilusão tua, Mãe, as ilusões existem, mas as ilusões não falam, e Deus falou-me, respondeu Jesus. Tiago recobrara a presença de espírito, o caso parecia-lhe mais uma história de loucos, um irmão seu a falar com Deus, imagine-se o disparate, Quem sabe, então, se não foi o Senhor quem te pôs o dinheiro no alforje, e sorriu quando o disse, ironicamente. Jesus corou, mas respondeu com secura, Do Senhor nos vem tudo, sempre ele encontra e abre os caminhos para chegar até nós, e esse dinheiro, que em verdade não veio dele, por ele é que veio, E que foi que te disse o Senhor, onde estavas quanto o viste, dormias ou vigiavas, Estava no deserto, procurava uma ovelha e ele chamou-me, Que te disse, se te é permitido repeti-lo, Que um dia me pedirá a minha vida, Todas as vidas pertencem ao Senhor, Isso lhe disse, E ele, Que em troca da vida que lhe hei-de dar, terei poder e glória, Terás poder e glória depois de morreres, perguntou Maria, que julgara ter ouvido mal, Sim, mãe, Que glória, que poder poderá ser dado a alguém que morreu, Não sei, Estavas a sonhar, Estava acordado e procurava a minha ovelha no deserto, E quando te vai pedir o Senhor a tua vida, Não sei, mas disse-me que tornarei a encontrá-lo quando estiver preparado. Tiago olhou o irmão com expressão inquieta, depois lançou uma dúvida, O sol do deserto fez-te mal à cabeça, foi o que foi, e Maria inesperadamente, E a ovelha, que aconteceu à ovelha, O Senhor mandou-me que lha sacrificasse como um sinal de aliança. Estas palavras indignaram Tiago, que protestou, Ofendes o Senhor, o Senhor fez uma aliança com o seu povo, não a ia fazer agora com um simples homem como tu, filho de carpinteiro, pastor e sabe-se lá que mais. Maria, pela expressão do seu rosto, parecia que estivera seguindo, com muito cuidado, um fio de pensamento, como se temesse vê-lo partir-se diante dos seus olhos, mas ao fim dele encontrou a pergunta que tinha de fazer, Que ovelha era essa, Era o cordeiro que eu tinha comigo quando nos encontramos em Jerusalém, na porta de Ramalá, afinal, o que eu tinha querido negar ao Senhor, o Senhor mo tomou das mãos, E Deus, como era Deus quando o viste, Uma nuvem, Fechada ou aberta, perguntou Tiago, Uma coluna de fumo, Estás louco, irmão, Se estou louco o Senhor me enlouqueceu, Estás em poder do Diabo, disse Maria; e o seu dizer era um grito, Não foi o Diabo que eu encontrei no deserto, foi o Senhor, e se for verdade que em poder do Diabo estou, o Senhor o quis, O Diabo está contigo desde que nasceste, Tu o sabes, Sim, sei-o, viveste com ele e sem Deus durante quatro anos, E ao fim de quatro anos com o Diabo encontrei-me com Deus, Estás a dizer horrores e falsidades, Sou o filho que tu puseste no mundo, crê em mim, ou rejeita-me, Não creio em ti, E tu, Tiago, Não creio em ti, E tu, José, que tens o nome do nosso pai, Eu creio em ti, mas não no que dizes. Jesus levantou-se, olhou-os do alto e disse, Quando em mim se cumprir a promessa que o Senhor fez, sereis obrigados a acreditar no que então de mim se disser. Foi buscar o alforge e o cajado, calçou as sandálias. Já à porta, dividiu o dinheiro em duas partes e disse, Este é o dote de Lísia, para a sua vida de casada, e dispô-lo no chão, moeda ao lado de moeda, na soleira da porta, o resto voltará às mãos donde veio, talvez lá se torne também em dote. Virou-se para a porta, ia sair sem despedir-se, e Maria disse, Reparei que não trazes no teu alforge uma tigela para servir-te, Tive-a, mas partiu-se, Estão aí quatro, escolhe uma e leva-a. Jesus ainda hesitou, queria ir de mãos vazias, mas foi ao forno, onde, postas umas sobre as outras, estavam as quatro tigelas. Escolhe uma, repetiu Maria. Jesus olhou, escolheu, Levo esta, que é a mais velha, Escolheste como te convinha, disse Maria, Porquê, Tem a cor da terra negra, não se parte nem se gasta. Jesus meteu a tigela no alforge, bateu com o cajado no chão, Dizei outra vez que não me creis, Não te cremos, disse a mãe, e agora menos que antes, porque escolheste o sinal do Diabo, De que sinal falas, Essa tigela. Neste momento, vindas do fundo profundo da memória, chegaram aos ouvidos de Jesus as palavras de Pastor, Terás uma outra tigela, mas essa não se há-de quebrar enquanto vivas. Uma corda parecia que fora estendida e esticada em todo o seu comprimento, e afinal o que temos aqui é um círculo, fechado com um nó que acaba de ser dado. Por segunda vez, Jesus saía de sua casa, mas agora não disse, Duma maneira ou doutra, sempre voltarei. O que pensava, enquanto, voltadas as costas a Nazaré, ia descendo a primeira encosta da montanha, era bem mais simples e melancólico, se também Maria de Magdala não acreditaria nele.
Este homem, que traz em si uma promessa de Deus, não tem outro sítio aonde ir se não a casa duma prostituta. Não pode regressar ao rebanho, Vai-te, disse-lhe Pastor, nem tornar à sua própria casa, Não te cremos, disse-lhe a família, e agora os seus passos hesitam, tem medo de ir, tem medo de chegar, é como se estivesse novamente no meio do deserto, Quem sou eu, os montes e os vales não lhe respondem, nem o céu que tudo cobre e tudo devia saber, se agora a casa voltasse e a pergunta repetisse, sua mãe dir-lhe-ia, És meu filho, mas não te creio, ora, sendo assim, é tempo de que Jesus se sente nesta pedra que aqui está à sua espera desde que o mundo é mundo, e nela sentado chore lágrimas de abandono e de solidão, quem sabe se o Senhor não resolverá aparecer-lhe outra vez, mesmo que seja em figura de fumo e de nuvem, a questão é que lhe diga, Homem, o caso não é para tanto, lágrimas, soluços, que é isso, todos nós temos os nossos maus bocados, mas há um ponto importante de que nunca falamos, digo-to agora, na vida, percebes, tudo é relativo, uma coisa má até pode tornar-se sofrível se a compararmos com uma coisa pior, portanto enxuga-me essas lágrimas e porta-te como um homem, já fizeste as pazes com o teu pai, que mais queres, e essa cisma da tua mãe, eu me encarrego quando chegar a altura, o que não me agradou muito foi a história com a Maria de Magdala, uma puta, mas enfim, estás na idade, aproveita, uma coisa não empata a outra, há um tempo para comer e um tempo para jejuar, um tempo para pecar e um tempo para ter medo, um tempo para viver e um tempo para morrer. Jesus enxugou as lágrimas às costas da mão, assoou-se sabe Deus a quê, em verdade não valia a pena ficar ali o dia todo, o deserto é como se vê, rodeia-nos, cerca-nos, de algum modo protege-nos, mas dar, não dá nada, apenas olha, e se o sol se cobriu de repente e por causa disso dizemos, O céu acompanha a minha dor, tolos somos, que o céu, nisso, é de uma perfeita imparcialidade, nem se alegra com as nossas alegrias nem se entristece com as nossas tristezas. Vem gente nesta direcção, a caminho de Nazaré, e Jesus não quer dar pasto aos risos, um homem inteiro e de barba na cara a chorar como uma criança que pede colo. Cruzam-se na estrada os raros viajantes, uns que sobem, outros que descem, saúdam-se com a conhecida exuberância, mas só depois de certificados da bondade das intenções, porque, nestas paragens, quando se fala de bandidos, tanto pode ser de uns como pode ser de outros. Há-os da espécie gatuna e salteadora, como aqueles malvados escarninhos que roubaram este mesmo Jesus vai para cinco anos, quando o pobre ia procurar em Jerusalém alívio para as suas penas, e há-os da digna espécie guerrilheira que, sendo certo não fazerem da estrada seu trânsito habitual, às vezes por aí aparecem, disfarçados, a espreitar as deslocações dos contingentes militares dos romanos, com vista à próxima emboscada, ou então, de cara descoberta, para deixarem sem ouro nem prata, nem valor que se aproveite, os ricaços colaboracionistas, a quem, em geral, nem as nutridas escoltas que trazem conseguem livrar do enxovalho. Não teria Jesus os seus dezoito anos se alguns devaneios de bélica aventura não lhe perpassassem na imaginação diante destas solenes montanhas em cujas ravinas, grutas e desvãos se ocultam os continuadores das grandes lutas de Judas o Galileu e dos seus companheiros, e então pôs- se a futurar que decisão tomaria se lhe saísse ao caminho um destacamento de guerrilheiros a desafiá-lo para que se juntasse a eles, trocando as amenidades da paz, mesmo necessitada, pela glória das batalhas e pelo poder de vencedor, pois escrito está que um dia a vontade do Senhor suscitará um Messias, um Enviado, para que, de uma vez, fique o seu povo liberto das opressões de agora e fortalecido para os combates do futuro. Uma lufada de louca esperança e de irresistível orgulho sopra, como um sinal do Espírito, a fronte de Jesus, e o filho do carpinteiro vê-se, pelo tempo de uma rápida vertigem, capitão, general e mando supremo, de espada ao alto, espavorindo, com a sua simples aparição, as legiões romanas, lançadas aos precipícios como varas de porcos possessos de todos os demônios, senatus populusque romanus, pois então. Ai de nós, que no instante seguinte se lembrou Jesus de que o poder e a glória lhe estão prometidos, sim, mas para depois da sua morte, posto o que o melhor é que aproveite a vida, e se tivesse de ir à guerra, uma condição lhe poria, que, havendo tréguas, pudesse ir-se das fileiras para estar uns dias com Maria de Magdala, salvo se nas hostes dos patriotas se admitem vivandeiras de um soldado só, que mais do que isso seria prostituição, e Maria de Magdala já disse que se acabou. Esperemos que sim, porque a Jesus lhe entraram renovadas forças com a lembrança dessa mulher que o curou de uma dolorosa chaga, pondo no seu lugar a insofrida ferida do desejo, e a pergunta é esta, como vai ele enfrentar-se com a porta fechada e assinalada, sem a certeza certa de que por trás dela só encontrará o que imagina ter deixado, alguém que alimenta uma exclusiva espera, a do seu corpo e da sua alma, que Maria de Magdala não aceita uma coisa sem outra. A tarde descai, as casas de Magdala já se veem ao longe, reunidas como um rebanho, mas a de Maria é como a ovelha que se afastou, não é possível distingui-la daqui, entre as grandes pedras que ladeiam o caminho, curva após curva. Por momentos, Jesus lembrou-se da ovelha, aquela que teve de matar para selar com sangue a aliança que o Senhor lhe impôs, e o seu espírito, agora desligado de batalhas e triunfos, todo se comoveu à ideia de que a estava procurando outra vez, a sua ovelha, não para a matar, não para a levar de novo ao rebanho, mas para juntos subirem aonde se encontram as pastagens virgens, que as há ainda, se procurarmos bem, no vasto e cruzado mundo, e, nas ovelhas que somos, os desfiladeiros indevassados, se procurarmos melhor. Jesus parou diante da porta, com mão discreta verificou que está fechada por dentro. O sinal continua dependurado, Maria de Magdala não recebe. A Jesus bastaria chamar, dizer, Sou eu, e de dentro ouvir-se-ia o canto jubiloso, Esta é a voz do meu amado, ei-lo que veio saltando sobre os montes, pulando sobre os outeiros, ei-lo atrás dos nossos muros, atrás desta porta, sim, mas Jesus preferirá bater nela com o punho, uma vez, duas vezes, sem falar, e esperar que lhe venham abrir, Quem é e o que quer, perguntaram de dentro, foi então que Jesus teve uma má ideia, disfarçar a voz e proceder como cliente que trouxesse dinheiro e urgência, dizer, por exemplo, Abre, flor, que não te arrependerás, nem do pago, nem do serviço, e é certo que a fala lhe saiu mentirosa, porém as palavras tiveram de ser as verdadeiras, Sou Jesus, de Nazaré. Tardou Maria de Magdala a vir abrir, por suspeita da voz que não condizia com o anúncio, mas também por lhe parecer impossível que já estivesse de volta, passada apenas uma noite, passado um dia, o homem que lhe prometera, Um dia destes virei visitar-te, de Nazaré a Magdala não é longe, quantas vezes se disseram coisas assim, só para comprazer a quem nos ouve, um dia destes poderá significar daqui por três meses, mas nunca amanhã. Maria de Magdala abre a porta, lança-se aos braços de Jesus, nem quer acreditar em tamanha felicidade, e a sua comoção é tal que a leva, absurdamente, a imaginar que ele voltou por se lhe ter aberto novamente a chaga do pé, e é a pensar nisto que o conduz para dentro, que o senta e aproxima uma luz, O teu pé, mostra-me o teu pé, mas Jesus diz-lhe, O meu pé está curado, não vês. Maria de Magdala poderia ter-lhe respondido, Não, não vejo, porque essa era a verdade extrema dos seus olhos rasos de lágrimas. Precisou tocar com os lábios o dorso do pé coberto de poeira, desatar cuidadosamente os atilhos que cingiam a sandália ao tornozelo, afagar com a ponta dos dedos a fina pele renovada, para confirmar-se nas esperadas virtudes lenitivas do unguento e, no mais íntimo dos pensamentos, admitir que o seu amor alguma parte podia ter tido na cura.
Enquanto cearam, Maria de Magdala não fez perguntas, quis apenas saber, e isso, escusado seria dizê-lo, não era perguntar, se lhe correra bem a viagem, se tivera maus encontros no caminho, trivialidades, coisas assim. Terminada a refeição, calou-se, abriu e manteve um espaço de silêncio, porque já não era a sua vez de falar. Jesus olhou-a fixamente, como se estivesse no alto duma rocha a medir as suas forças com o mar, não por temer que na lisa superfície se ocultassem animais devorantes ou recifes rasgadores, mas como quem, simplesmente; interroga a sua própria coragem de saltar. Conhece esta mulher há uma semana, tempo e vida bastantes para saber que se for para ela encontrará uns braços abertos e um corpo oferecido, mas amedronta-o revelar-lhe, porque o momento sem dúvida é chegado, o que ainda há tão poucas horas foi objecto de rejeição por aqueles que, sendo da sua carne, deveriam ser também do seu espírito. Jesus hesita, procura o caminho por onde há-de levar as palavras e o que lhe sai não é a longa explicação necessária, mas uma frase para ganhar tempo, se não é mais exacto dizer perdê-lo, Não estranhaste ter eu vindo tão cedo, Comecei a esperar-te quando partiste, não contei o tempo entre ires e voltares, como também não o contaria se tivesses demorado dez anos. Jesus sorriu, fez um movimento com os ombros, já devia saber que para esta mulher não serviam fingimentos ou palavras evasivas. Estavam sentados no chão, frente a frente, com uma luz no meio, o que sobrara da comida. Jesus tomou um pedaço de pão, partiu-o em duas partes, e disse, dando uma delas a Maria, Que este seja o pão da verdade, comamo-lo para que creiamos e não duvidemos, seja o que for que aqui dissermos e ouvirmos, Assim seja, disse Maria de Magdala. Jesus acabou de comer o pão, esperou que ela terminasse também, e disse, pela quarta vez, as palavras, Eu vi Deus. Maria de Magdala não se alterou, apenas as mãos que tinha cruzadas no regaço se moveram um pouco, e perguntou, Era isso o que tinhas para dizer-me se nos voltássemos a encontrar, Sim, e mais quanto me aconteceu desde que de casa saí, há quatro anos, que estas coisas me parece que estão todas ligadas uma às outras, mesmo não sabendo eu explicar porquê nem para quê, Sou como a tua boca e os teus ouvidos, respondeu Maria de Magdala, o que disseres estarás a dizê-lo a ti mesmo, eu apenas sou a que está em ti. Agora Jesus já pode começar a falar, porque ambos comeram do pão da verdade, e em verdade não são muitas na vida as horas como esta. A noite tornou-se madrugada, a luz da candeia duas vezes morreu e duas vezes ressuscitou, toda a história de Jesus que já conhecemos foi ali narrada, incluindo, até, certos pormenores que então não achamos que merecessem a pena, e muitos e muitos pensamentos que deixamos escapar, não porque Jesus no-los disfarçasse, mas simplesmente porque não podíamos, nós, evangelista, estar em todo o lado. Quando, numa voz que de repente se tornara cansada, Jesus ia começar a dizer o que sucedera depois do seu regresso a casa, o desgosto fê-lo hesitar, como lá o fizera parar aquele obscuro pressentimento antes de bater à porta, e Maria de Magdala, rompendo pela primeira vez o silêncio, perguntou, contudo no tom de quem antecipadamente conhece a resposta, Tua mãe não acreditou em ti, Assim é, respondeu Jesus, E por isso voltaste a esta outra casa, Sim, Quem me dera poder mentir-te, para te dizer que também não acredito, Porquê, Porque tornarias a fazer o que fizeste, ir-te-ias daqui como te foste de tua casa, e eu, não te crendo, não teria de seguir-te, Isso não responde à minha pergunta, Tens razão, não responde, Então, Se eu não acreditasse em ti, não teria de viver contigo as coisas terríveis que te esperam, E como podes saber tu que me esperam coisas terríveis, Não sei nada de Deus, a não ser que tão assustadoras devem ser as suas preferências como os seus desprezos, Onde foste buscar tão estranha ideia, Terias de ser mulher para saberes o que significa viver com o desprezo de Deus, e agora vais ter de ser muito mais que um homem para viveres e morreres como seu eleito, Queres assustar-me, Vou-te contar um sonho que tive, uma noite apareceu-me em sonho um menino, de repente apareceu vindo de parte nenhuma, apareceu e disse Deus é medonho, disse-o e desapareceu, não sei quem fosse aquela criança, donde veio e a quem pertencia, Sonhos, Ninguém menos do que tu pode dizer a palavra nesse tom, E depois, que aconteceu, Depois comecei a ser prostituta, Já deixaste tal vida, Mas o sonho não foi desmentido, nem mesmo depois que te conheci, Diz-me outra vez, como foram as palavras, Deus é medonho. Jesus viu o deserto, a ovelha morta, o sangue na areia, ouviu a coluna de fumo suspirando de satisfação, e disse, Talvez, talvez, porém uma coisa é ouvi-lo em sonho, outra será vivê-lo em vida, Prouvera a Deus que o não viesses a saber, Cada um tem de viver o seu destino, E do teu já tu recebeste o primeiro aviso solene. Sobre Magdala e o mundo, gira lentamente a cúpula de um céu crivado de estrelas. Em algum lugar do infinito, ou infinitamente o preenchendo, Deus faz avançar e recuar as peças doutros jogos que joga, é demasiado cedo para preocupar-se com este, agora só tem de deixar que os acontecimentos sigam naturalmente o seu curso, apenas uma vez ou outra dará com a ponta do dedo mindinho um toque a propósito para que algum acto ou pensamento desgarrados não quebrem a implacável harmonia dos destinos. Por isto é que não cura de interessar-se pelo resto da conversa que Jesus e Maria de Magdala prosseguem, E agora, que pensas fazer, perguntou ela, Disseste que irias comigo para onde eu fosse, Disse que estaria contigo onde tu estivesses, Qual é a diferença, Nenhuma, mas podes ficar aqui pelo tempo que quiseres, se não te importa viver comigo na casa onde fui prostituta. Jesus pensou, ponderou, finalmente disse, Buscarei onde trabalhar em Magdala e viveremos juntos como marido e mulher, Prometes demasiado, já é bastante que me deixes estar ao pé de ti.
Trabalho, Jesus não teve, mas teve o que deveria ter esperado, risos, chufas e insultos, realmente o caso não era para menos, um homem, pouco mais do que adolescente na idade, a viver com a Maria de Magdala, aquela gaja, Deixem vocês passar uns dias e ainda o vamos ver sentado à porta de casa, à espera que saia o cliente. Duas semanas se aguentou a troça, mas ao cabo Jesus disse a Maria, Vou-me embora daqui, Para onde, Para a borda do mar. Partiram de madrugada, e os habitantes de Magdala não chegaram a tempo de aproveitar alguma coisa na casa que ardia.


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