segunda-feira, 4 de março de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo XIX)




Passados meses, numa chuvosa e fria noite de inverno, um anjo entrou em casa de Maria de Nazaré, e foi o mesmo que se não tivesse entrado ninguém, pois a família assim como estava assim se deixou ficar, só Maria deu pela chegada do visitante, que nem teria podido ela dar-se por desentendida, uma vez que o anjo lhe dirigiu directamente a palavra, e foi assim, Deves saber, ó Maria, que o Senhor pôs a sua semente de mistura com a semente de José na madrugada em que concebeste pela primeira vez, e que, por conseguinte e consequência, dela, da do Senhor, e não da do teu marido, ainda que legítimo, é que foi engendrado o teu filho Jesus. Ficou Maria muito assombrada com a notícia, cuja substância, felizmente, não se perdeu na elocução confusa do anjo, e perguntou, Então Jesus é filho de mim e do Senhor, Mulher, que falta de educação, deves ter cuidado com as hierarquias, com as precedências, do Senhor e de mim é que deverias dizer, Do Senhor e de ti, Não, do Senhor e de ti, Não me baralhes a cabeça, responde-me ao que te perguntei, se Jesus é filho, Filho, o que se chama filho, é só do Senhor, tu, para o caso, não passaste de ser uma mãe portadora, Então, o Senhor não me escolheu, Qual quê, o Senhor ia só a passar, quem estivesse a olhar tê-lo-ia percebido pela cor do céu, mas reparou que tu e José eram gente robusta e saudável, e então, se ainda te lembras de como estas necessidades se manifestavam, apeteceu-lhe, o resultado foi, nove meses depois, Jesus, E há a certeza, o que se chame certeza, de que tenha sido mesmo a semente do Senhor que engendrou o meu primeiro filho, Bom, a questão é melindrosa, o que tu estás a pretender de mim é, sem tirar nem pôr, uma investigação de paternidade, quando a verdade é que, nestes conúbios mistos, por muitas análises, por muitos testes, por muitas contagens de glóbulos que se façam, certezas nunca as podemos ter absolutas, Pobrezinha de mim, que cheguei a imaginar, ouvindo-te, que o Senhor me havia escolhido para ser a sua esposa naquela madrugada, e afinal foi tudo obra de um acaso, tanto poderá ser que sim como poderá ser que não, digo-te até que melhor seria não teres descido aqui na Nazaré para vires deixar-me nesta dúvida, aliás, se queres que te fale com franqueza, um filho do Senhor, mesmo tendo-me a mim como mãe, dávamos por ele logo ao nascer, e quando crescesse teria, do mesmo Senhor, o porte, a figura e a palavra, ora, ainda que se diga que o amor de mãe é cego, o meu filho Jesus não satisfaz as condições, Maria, o teu primeiro grande engano é julgares que eu vim cá apenas para te falar desse antigo episódio da vida sexual do Senhor, o teu segundo grande engano é pensares que a beleza e a facúndia dos homens existem à imagem e semelhança do Senhor, quando o sistema do Senhor, digo-to eu que sou da casa, é ele ser sempre o contrário de como os homens o imaginam, e, aqui muito em confidência, eu até acho que o Senhor não saberia viver doutra maneira, a palavra que mais vezes lhe sai da boca não é o sim, mas o não, Sempre ouvi eu dizer que o Diabo é que é o espírito que nega, Não, minha filha, o Diabo é o espírito que se nega, se no teu coração não deres pela diferença, nunca saberás a quem pertences, Pertenço ao Senhor, Pois é, dizes que pertences ao Senhor e caíste no terceiro e maior dos enganos, que foi o de não teres acreditado no teu filho, Em Jesus, Sim, em Jesus, nenhum dos outros viu Deus, ou alguma vez o verá, Diz-me, anjo do Senhor, é mesmo verdade que meu filho Jesus viu Deus, Sim, e, como uma criança que encontrou o seu primeiro ninho, veio a correr mostrar-to, e tu, céptica, e tu, desconfiada, disseste que não podia ser verdade, que se ninho havia estava vazio, que se ovos tinha, eram goros, e que se os não tinha, comera-os a serpente, Perdoa-me, meu anjo, por ter duvidado, Agora não sei se estás a falar comigo, ou com o teu filho, Com ele, contigo, com ambos, que posso eu fazer para emendar o mal feito, Que é que te aconselharia o teu coração de mãe, Que fosse procurá-lo, dizer-lhe que creio nele, pedir que me perdoe e volte para casa, aonde o Senhor o virá chamar, em chegando a hora, Francamente, não sei se vais a tempo, não há nada mais sensível do que um adolescente, arriscas-te a ouvir más palavras e a levar com a porta na cara, Se tal acontecer, a culpa tem-na aquele demônio que o embruxou e perdeu, nem sei como o Senhor, sendo pai, lhe consentiu tais liberdades, tanta rédea solta, De que demônio falas, Do pastor com quem o meu filho andou durante quatro anos, a governar um rebanho que ninguém sabe para que serve, Ah, o pastor, Conhecê-lo, Andamos na mesma escola, E o Senhor permite que um demônio como ele perdure e prospere, Assim o exige a boa ordem do mundo, mas a última palavra será sempre a do Senhor, só não sabemos é quando a proferirá, mas vais ver que uma manhã destas acordamos e descobrimos que não há mal no mundo, e agora devo ir-me, se tens mais algumas perguntas a fazer, aproveita, Só uma, óptimo, Para que quer o Senhor o meu filho, Teu filho é uma maneira de dizer, Aos olhos do mundo Jesus é meu filho, Para que o quer, perguntas tu, pois olha que é uma boa pergunta, sim senhor, o pior é que não sei responder-te, a questão, no estado actual, é toda entre eles dois, e Jesus não creio que saiba mais do que a ti te terá dito, Disse-me que terá poder e glória depois de morrer, Dessa parte também estou informado, Mas que irá ele ter de fazer em vida para merecer as maravilhas que o Senhor lhe prometeu, Ora, ora, tu crês, ignorante mulher, que essa palavra exista aos olhos do Senhor, que possa ter algum valor e significado o que presunçosamente chamais merecimentos, em verdade não sei que é que vos julgais, quando não passais de míseros escravos da vontade absoluta de Deus, Nada mais direi, sou realmente a escrava do Senhor, cumpra-se em mim segundo a sua palavra,diz-me só, depois de todos estes meses passados, onde poderei encontrar o meu filho, Procura-o, que é a tua obrigação, ele também foi à procura da ovelha perdida, Para matá-la, Sossega, que a ti não te matará, mas tu, sim, o matarás a ele, não estando presente na hora da sua morte, Como sabes que não morrerei eu primeiro, Estou bastante próximo dos centros de decisão para sabê-lo, e agora adeus, fizeste as perguntas que querias, talvez não tenhas feito alguma que devias, mas isso é assunto que já não me diz respeito, Explica-me, Explica-te tu a ti própria. Com a última palavra, o anjo desapareceu e Maria abriu os olhos. Todos os filhos dormiam, os rapazes em dois grupos de três, Tiago, José e Judas, os mais velhos, a um canto, noutro canto os mais novos, Simão, Justo e Samuel, e com ela, uma de cada lado, como de costume Lísia e Lídia, mas os olhos de Maria, perturbados ainda pelos anúncios do anjo, arregalaram-se-lhe de repente, estarrecidos, ao ver que Lísia estava toda descomposta, praticamente nua, a túnica arregaçada por cima dos seios, e dormia profundamente, e suspirava sorrindo, com o brilho de um leve suor na testa e sobre o lábio superior, que parecia mordido de beijos. Se não fosse a certeza de ter estado ali apenas um anjo conversador, os sinais mostrados por Lísia fariam gritar e clamar que um demônio íncubo, desses que acometem maliciosamente as mulheres adormecidas, andara a fazer das suas no desprevenido corpo da donzela, enquanto a mãe se deixava distrair com a conversa, provavelmente foi sempre assim e nós que não o sabíamos, andarem estes anjos aos pares para onde quer que vão, e enquanto um, para entreter e fazer costas, se põe a contar histórias da Carochinha, o outro, calado, opera o actus nefandus, maneira de dizer, que nefando em rigor não é, tudo indicando que na vez seguinte se trocarão as funções e as posições para que não se perca, nem no sonhador nem no sonhado, o beneficioso sentido da dualidade da carne e do espírito. Maria cobriu a filha como pôde, puxando-lhe a túnica até à altura do que é impróprio estando descoberto, e, quando a teve decente, acordou-a e perguntou-lhe em voz baixa, por assim dizer à queima-roupa, Que estavas a sonhar. Apanhada de surpresa, Lísia não podia mentir, respondeu que sonhara com um anjo, mas que o anjo nada lhe dissera, apenas olhara para ela, e era um olhar tão meigo e tão doce que melhores não poderão ser os olhares no paraíso. Não te tocou, perguntou Maria, e Lísia respondeu, Ó minha mãe, os olhos não servem para isso. Sem bem saber se devia tranquilizar-se ou preocupar-se com o que se passara a seu lado, Maria, em voz ainda mais baixa, disse, Eu também sonhei com um anjo, E o teu, falou, ou também esteve calado, perguntou Lísia, inocentemente, Falou para me dizer que teu irmão Jesus dissera a verdade quando nos anunciou que tinha visto Deus, Ai, minha mãe, que mal fizemos então, não acreditamos na palavra de Jesus, e ele tão bom, que, de zangado, até podia ter levado o dinheiro do meu dote, e não o fez, Agora temos de ver como o remediaremos, Não sabemos onde está, notícias não deu, o anjo é que bem podia ter ajudado, sabem tudo, os anjos, Pois não, não ajudou, só me disse que procurássemos o teu irmão, que era esse o nosso dever, Mas, ó minha mãe, se afinal foi verdade que o mano Jesus esteve com o Senhor, então a nossa vida, daqui por diante, vai ser diferente, Diferente, talvez, mas para pior, Porquê, Se nós não acreditamos em Jesus nem na sua palavra, como esperas que os outros acreditem, com certeza não quererás que vamos aí pelas ruas e praças de Nazaré a apregoar Jesus viu o Senhor Jesus viu o Senhor, seríamos corridas à pedrada, Mas o Senhor, visto que o escolheu, nos defenderia, que somos a família, Não estejas tão certa disso, quando o Senhor fez a sua escolha, nós não estávamos lá, para o Senhor não há pais nem filhos, lembra-te de Abraão, lembra-te de Isaac, Ai, mãe, que aflição, O mais prudente, filha, é guardarmos estas coisas nos nossos corações e falarmos delas o menos possível, Então, que faremos, Amanhã mandarei Tiago e José a procurar Jesus, Mas onde, se a Galileia é imensa, e a Samaria, se para lá foi, ou a Judeia, ou a Idumeia, que essa está no cabo do mundo, O mais provável é teu irmão ter ido para o mar, recorda-te do que ele nos disse quando veio, que tinha andado com uns pescadores, E não teria antes voltado para o rebanho, Esse tempo acabou, Como sabes, Dorme, que a manhã ainda vem longe, Pode ser que tornemos a sonhar com os nossos anjos, Pode ser. Se o anjo de Lísia, acaso tendo fugido à companhia do parceiro, veio habitar-lhe outra vez o sono, não se chegou a perceber, mas o anjo do anúncio, mesmo se se esqueceu de algum pormenor, não pôde voltar, porque Maria esteve sempre de olhos abertos na meia escuridão da casa, o que sabia sobrava-lhe, o que adivinhava temia.
Nasceu o dia, enrolaram-se as esteiras, e Maria, diante da família reunida, fez saber que tendo pensado muito nos últimos tempos sobre o modo como haviam procedido com Jesus, A começar por mim, que, sendo a mãe, deveria ter sido mais benévola e compreensiva, cheguei a uma conclusão muito clara e justa, de que deveremos ir procurá-lo e pedir-lhe que torne a casa, pois nele cremos e, querendo-o o Senhor, viremos a crer no que nos disse, foram estas as palavras de Maria, que não deu fé de estar a repetir o que havia dito o seu filho José, ali presente, na hora dramática da rejeição, quem sabe se Jesus ainda aqui não estaria hoje se aquele murmúrio discreto, que o foi, de facto, embora na altura não o tivéssemos feito notar, se tivesse tornado em voz de todos. Maria não falou de anjo nem de anúncio de anjo, apenas do simples dever de todos para com o primogénito. Não ousou Tiago pôr em dúvida os pontos de vista novos, ainda que, lá no íntimo, não arredasse pé da convicção de que o irmão estava falho do juízo, ou, quando muito, eventualidade sempre a ter em conta, fora objecto duma repugnante mistificação de gente ímpia. Prevendo já a resposta, perguntou, E quem, dos que aqui estão, irá procurar o mano Jesus, Tu irás, que és o irmão a seguir, e José irá contigo, juntos andareis mais seguros, Por onde começaremos a procurar, Pelo mar da Galileia, tenho a certeza de que aí o encontrareis, Quando partimos, Passaram meses depois que Jesus se foi, não devemos perder nem mais um dia, Chove muito, minha mãe, o tempo não está bom para viagem, Filho, a ocasião pode sempre criar uma necessidade, mas se a necessidade é forte, terá de ser ela a fazer a ocasião. Os filhos de Maria olharam-na surpreendidos, em verdade não estavam habituados a ouvir da boca da mãe sentenças tão acabadas, ainda são muito novos para saberem que a frequentação dos anjos produz destes e doutros ainda melhores resultados, a prova, sem que os de mais o suspeitem, está Lísia a dá-la neste mesmo momento, pois outra coisa não significa o seu lento, sonhador movimento afirmativo de cabeça. Terminou o conselho de família, Tiago e José foram ver se os meteoros do ar estavam de feição, que, tendo eles de ir à descoberta de um irmão em tempo tão ruim, ao menos que pudessem sair ao campo numa estiada, ora foi o caso tal que pareceu que estivera a ouvi-los o céu, pois justamente do lado do mar da Galileia se estava agora abrindo um azul aguado que parecia prometer uma tarde aliviada da chuva. Feitas as despedidas dentro da casa, discretamente, por entender Maria que não tinham os vizinhos que saber mais do que convinha, partiram enfim os dois irmãos, não pelo caminho que a Magdala levava, pois não tinham motivo para pensar que Jesus seguira essa direcção, mas por um outro, o que, directamente, e com maior comodidade, os levaria à nova cidade de Tiberíades. Iam descalços porque, com os caminhos transformados num lamaçal, em pouco tempo se lhes cairiam desfeitas dos pés as sandálias, agora a salvo nos alforjes, à espera de tempo mais benigno. Duas boas razões teve Tiago para escolher a estrada de Tiberíades, sendo a primeira a sua própria curiosidade de aldeão que ouvira falar de palácios, templos e outras grandezas similares em construção, e a segunda estar situada a cidade, segundo ouvira contar, entre os extremos norte e sul da margem de cá, mais ou menos a meio caminho. Como teriam de ganhar a vida enquanto durasse a busca, esperava Tiago que fosse fácil arranjarem trabalho nas obras da cidade, apesar do que diziam os judeus devotos de Nazaré, que o local era impuro por causa dos ares malsãos e das águas sulfurosas que havia ali por perto. Não puderam chegar a Tiberíades ainda nesse dia porque as promessas do céu, afinal, não se cumpriram, não passara ainda uma hora de caminho começou a chover, e muita sorte foi terem encontrado uma cova onde felizmente couberam e se abrigaram antes que a chuva tivesse maneira de levá-los de enxurrada. Ali dormiram, e, na manhã do dia seguinte, tornados desconfiados pela experiência, tardaram a convencer-se de que o tempo melhorara para valer e de que poderiam chegar a Tiberíades com a roupa do corpo mais ou menos enxuta. O trabalho que arranjaram nas obras foi o de acarretar pedra, que para mais não dava o saber de um e do outro, felizmente que ao cabo de uns poucos dias encontraram que já tinham ganho o suficiente, não porque o rei Herodes Ântipas fosse generoso pagador, mas porque, sendo tão poucas e tão pouco instantes as necessidades, com elas se podia viver sem ter de satisfazê-las por completo. Logo nesta Tiberíades perguntaram se ali estivera ou por ali tinha passado um tal Jesus de Nazaré, que é nosso irmão, de figura assim assim, modos assim assado, se anda acompanhado, isso é que nós não sabemos. Disseram-lhes que naquela obra não, e eles deram a volta a todos os estaleiros da cidade, até se certificarem de que Jesus nunca aqui havia estado, o que nem era tanto para admirar, pois se o irmão decidira regressar ao seu começado ofício de pescador, com certeza não ia deixar-se ficar, tendo o mar ali à vista, a penar entre duras pedras e duríssimos capatazes. Com o dinheiro ganho, ainda que escasso, a questão que tinham de resolver agora era se a busca ao longo da margem, povoado a povoado, companha a companha, barco a barco, deveria continuar para o norte ou para o sul. Tiago acabou por escolher o sul por lhe parecer ser mais fácil caminho, quase raras as margens, enquanto para norte a orografia se tornava mais acidentada. O tempo estava seguro, o frio suportável, fora-se a chuva, e quaisquer sentidos da natureza mais experientes do que os destes dois moços seriam mesmo capazes de perceber, pelo cheiro dos ares e palpitar do chão, uns primeiros tímidos indícios de primavera. A busca do irmão pelos irmãos, por razões superiores ordenada, estava a transformar-se em excursão amável e egoísta, passeio ao campo, férias na praia, pouco parecia faltar já para que Tiago e José se esquecessem do que tinham vindo fazer para estes lados, quando, de repente, logo nos primeiros pescadores que encontraram, souberam notícias de Jesus, e ainda por cima dadas da mais estranha maneira, pois estas foram as palavras dos homens, Vimo-lo, sim, e conhecemo-lo, e se andais em busca dele dizei-lhe, se o encontrardes, que aqui o estamos esperando como quem espera o pão de cada dia. Assombraram-se os dois irmãos e não puderam acreditar que os pescadores estivessem a falar da pessoa de Jesus, ou então seria outro o Jesus que eles conheciam, Pelos sinais que nos destes, responderam os pescadores, é o mesmo Jesus, se veio de Nazaré não sabemos, que ele não o disse, E por que dizeis que o esperais como ao pão de cada dia, perguntou Tiago, Porque, estando ele dentro de um barco, sempre o peixe vem às redes como nunca em tempo nenhum se viu, Mas o nosso irmão não tem artes bastantes de pescador, logo não é o mesmo Jesus, Nem nós dissemos que este Jesus tem arte de pescador, ele não pesca, apenas diz Lançai a rede deste lado, e nós lançamos e a rede vem cheia, Sendo assim, por que não está ele convosco, Porque se vai embora passados uns dias, diz que tem de ir ajudar outros pescadores, e realmente assim é, pois connosco já esteve três vezes e de cada vez disse que voltava, E agora, onde está ele, Não sabemos, da última vez que aqui esteve foi para o sul, mas também pode ser que tenha ido para o norte sem que nós nos apercebêssemos, ele aparece e desaparece segundo a sua vontade. Disse Tiago para José, Vamos nós então para o sul, pelo menos já sabemos que o nosso irmão anda por esta borda do mar. Parecia fácil, mas há que atender que, ao passarem, Jesus podia estar ao largo numa barca, entregue a uma das suas miraculosas pescas, em geral não damos importância a estes pormenores, mas o destino não é nada do que julgamos, pensamos que está tudo determinado desde um princípio qualquer, quando a verdade é muito diferente, repare-se que para que possa cumprir-se o destino de um encontro de umas pessoas com outras, como no caso de agora, é preciso que elas consigam encontrar-se num mesmo ponto e à mesma hora, o que custa não pouco trabalho, bastava que nos demorássemos, pouco que fosse, a olhar uma nuvem no céu, a escutar o canto duma ave, a contar as entradas e saídas de um formigueiro, ou, pelo contrário, que por distracção não olhássemos nem ouvíssemos nem contássemos e seguíssemos adiante, e lá se deitava a perder o que tão bem ensejado parecia, o destino é o mais difícil que há no mundo, mano José, já verás quando chegares à minha idade. Postos assim de sobreaviso, os dois irmãos iam olhando com mil olhos, faziam paragens no caminho à espera de ver regressar um barco que se demorava, e algumas vezes voltaram subitamente para trás, na mira de surpreenderem pelas costas um possível aparecimento de Jesus em local inesperado. Assim chegaram ao fim do mar. Passaram o rio Jordão para o outro lado e aos primeiros pescadores que encontraram perguntaram por Jesus. Tinham ouvido falar, sim senhor, dele e da sua magia, mas por ali não aparecera. Tornaram Tiago e José sobre os seus passos, rumo ao norte, redobrando de atenção, também eles como pescadores que fossem levando uma rede de arrasto, na esperança de levantarem o rei dos peixes. Uma noite que dormiram no caminho, fizeram quartos de sentinela, não fosse aproveitar Jesus a claridade do luar para ir de um sítio para outro, pela calada. Andando e perguntando chegaram à altura de Tiberíades, aonde não precisaram subir a buscar trabalho, pois ainda não se lhes acabara o dinheiro, para o que concorrera a hospitalidade dos pescadores que lhes davam peixe, o que fez dizer uma vez a José, Mano Tiago, já pensaste que este peixe que estamos a comer pode ter sido pescado pelo nosso irmão, e Tiago respondeu, Não sabe melhor por isso, palavras más que não se esperariam de um amor fraternal, mas que a irritação de quem anda à procura de uma agulha num palheiro, salvo seja, justifica.
Encontraram Jesus aí a uma hora de caminho, hora das nossas, queremos dizer, depois de Tiberíades. O primeiro a avistá-lo foi José, que tinha uns olhos finíssimos a ver ao longe, É ele, além, exclamou. Realmente vêm nesta direcção duas pessoas, mas uma é mulher, e Tiago diz, Não é ele. Um irmão mais novo nunca teima com um irmão mais velho, mas José, de contentamento, não está disposto a respeitar normas nem conveniências, Digo-te que é ele, Mas vem lá uma mulher, Vem lá uma mulher, e vem um homem, e o homem é Jesus. Pelo carreiro ao longo da margem, num campo que aqui era plano, entre duas colinas cujos sopés quase tocavam a água, vinham caminhando Jesus e Maria de Magdala. Tiago parou, à espera, e disse a José que ficasse com ele. O moço obedeceu, contrariado, porque o seu desejo era correr para o irmão finalmente encontrado, abraçá-lo, saltar-lhe ao pescoço. A Tiago perturbava-o a criatura que vinha com Jesus, quem seria, não queria acreditar que o irmão já conhecesse mulher, mas sentia que essa simples probabilidade o colocava, a si, a uma distância infinita do primogénito, como se Jesus, que se gloriara de ter visto Deus, só por esta razão, afinal, de conhecer mulher, é que pertencesse a um mundo definitivamente outro. De uma reflexão se vai à seguinte, e muitas vezes chega-se lá sem dar pelo caminho que uniu as duas, é como ir de uma margem à outra de um rio por uma ponte coberta, vínhamos andando e não víamos para onde, passamos um rio que não sabíamos existir, assim foi que Tiago, sem perceber como, se achou a pensar que não era próprio ter-se deixado ali ficar parado, como se ele é que fosse o primogênito a quem o irmão devesse vir saudar. O seu movimento libertou José, que correu para Jesus de braços abertos, com gritos de pura alegria, fazendo levantar um bando de aves que, escondidas pelas ervas altas da margem, catavam no lodo o sustento. Tiago apressou o passo para impedir que José tomasse à sua conta recados que só a si pertenciam, em pouco tempo estava diante de Jesus e dizia, Graças dou ao Senhor por haver querido que encontrássemos o irmão que buscávamos, e Jesus respondeu, Graças dou por vos ver de boa saúde. Maria de Magdala parara, um pouco atrás. Jesus perguntou, Que viestes fazer a estes lugares, irmãos, e Tiago disse, Afastemo-nos um pouco a esta parte para que em sossego possamos falar, Em sossego já estamos, respondeu Jesus, e se por causa desta mulher é que o disseste, fica sabendo que tudo quanto tenhas para informar-me, e eu queira ouvir de ti, o pode ouvir ela também como se fosse eu próprio. Houve um silêncio tão denso, tão alto, tão profundo que parecia que era um silêncio do mar e dos montes concertados, e não o de quatro simples pessoas frente a frente, tomando forças. Jesus parecia ainda mais homem do que antes, mais escuro de pele, mas quebrara-se-lhe a febre do olhar, e o rosto, sob a espessa barba negra, mostrava-se apaziguado, tranquilo, apesar da visível crispação causada pelo encontro inesperado. Quem é essa mulher, perguntou Tiago, Chama-se Maria e está comigo, respondeu Jesus, Casaste-te, Sim, mas não, não, mas sim, Não compreendo, Nem eu contava que compreendesses, Devo falar-te, Fala, então, Trago recado da nossa mãe, Estou a ouvir-te, Preferia dar-to a sós, Ouviste o que eu disse. Maria de Magdala deu dois passos, Posso retirar-me para onde não vos oiça, disse, Não há na minha alma um pensamento que não conheças, é portanto justo que saibas que pensamentos teve minha mãe a meu respeito, assim poupar-me-ás o trabalho de tos contar depois, respondeu Jesus. A irritação fez subir o sangue à cara de Tiago, que deu um passo atrás, como para retirar-se, ao mesmo tempo em que lançava a Maria de Magdala um olhar de cólera, mas onde se percebia também um sentimento confuso, de cobiça e rancor. No meio dos dois, José estendia as mãos para retê-los, era tudo quanto podia fazer. Enfim, Tiago acalmou-se, e, após uma pausa de concentração mental, para recordar-se, recitou, Mandou-nos a nossa mãe procurar-te para te pedir que tornes a casa, pois em ti cremos e, querendo-o o Senhor, viremos a crer no que nos disseste, Só isso, Foram estas as suas palavras, Queres então dizer que, por vós, nada fareis para crer no que vos contei, que apenas ficareis à espera de que o Senhor mude o vosso entendimento, Entender, ou não entender, tudo está nas mãos do Senhor, Enganas-te, o Senhor deu-nos pernas para que andássemos e nós andamos, que eu saiba nunca homem algum esperou que o Senhor lhe ordenasse Caminha, com o entendimento é o mesmo, se o Senhor no-lo deu foi para que o usássemos segundo o nosso desejo e a nossa vontade, Não discuto contigo, Fazes bem, não ganharias a discussão, Que resposta devo levar à nossa mãe, Diz-lhe que as palavras do seu recado chegaram tarde de mais, que essas mesmas palavras as soube dizer a tempo José e ela não as tomou para si, e que ainda que um anjo do Senhor lhe apareça a confirmar tudo quanto eu vos narrei, convencendo-a enfim a ela a vontade do Senhor, a casa não tornarei, Caíste em pecado de orgulho, Uma árvore geme se a cortam, um cão gane se lhe batem, um homem cresce se o ofendem, É tua mãe, somos teus irmãos, Quem é a minha mãe, quem são os meus irmãos, meus irmãos e minha mãe são aqueles que creram na minha palavra na mesma hora em que eu a proferi, meus irmãos e minha mãe são aqueles que em mim confiam quando vamos ao mar para do que lá pescam comerem com mais abundância do que comiam, minha mãe e meus irmãos são aqueles que não precisem esperar a hora da minha morte para se apiedarem da minha vida, Não tens outro recado para levar, Outro recado não tenho, mas ouvireis falar de mim, respondeu Jesus, e, virando-se para Maria de Magdala, disse, Vamo-nos, Maria, os barcos estão a sair para a pesca, os cardumes reúnem-se, é tempo de ceifar esta seara. Já se afastavam quando Tiago gritou, Jesus, tenho de dizer à nossa mãe quem é essa mulher, Diz-lhe que está comigo e se chama Maria, e a palavra ecoou entre as colinas e sobre o mar. Estendido no chão, José chorava de desgosto.


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