segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

CAIM (Capítulo XI°)





De súbito, viu-se entrar pela porta de uma cidade onde nunca havia estado. Imediatamente pensou que não levava um cêntimo consigo nem via modo imediato de o conseguir, uma vez que ninguém ali o conhecia. Se tivesse saído a passeio levando o jumento, o problema econômico estaria resolvido, pois de um animal como aquele qualquer comprador concordaria que valia o seu peso em ouro. Perguntou a dois homens que passavam que nome era o da cidade, e um deles respondeu, Isto aqui chama-se terra de us. O tom natural, sem mostra de impaciência, animou caim a fazer outra pergunta, E onde poderei arranjar trabalho, acrescentando como quem tivesse de se justificar,  É que acabei de chegar, não conheço ninguém. Os homens olharam-no de alto a baixo, não lhe encontraram pinta de mendigo ou de vagabundo, só se detiveram um nada a olhar-lhe a marca da testa, e o segundo disse, O proprietário mais rico destes sítios e de todo o oriente chama-se job, vai pedir-lhe que te dê trabalho, talvez tenhas sorte, E onde o poderei encontrar, perguntou caim, Vem connosco, nós levaremos-te até lá, ele tem tantos serviçais que um a mais ou a menos não lhe fará diferença, É assim tão rico, Imensamente rico, imagina o que é ser dono de sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas burras, Os pobres têm muita imaginação, disse caim, pode-se até dizer que não têm outra coisa, mas confesso que a tanto não sou capaz de chegar. Fez-se um silêncio e depois um dos homens disse como por acaso, Nós já nos conhecíamos, Também tenho uma ideia vaga, disse caim a medo, Chamas-te caim e estavas em sodoma quando a cidade foi destruída, temos boa memória, Sim, é verdade, agora me lembro, Já sabes, o meu colega e eu somos dois anjos do senhor, E que valho eu para que dois anjos do senhor tenham querido acudir-me nesta dificuldade, Foste bom com abraão, ajudaste-o a que não nos sucedesse nada de mau em casa de lot e isso merece uma recompensa, Nem sei como lhes agradecer, Somos anjos, se nós não fizermos o bem, quem o fará, perguntou um deles. Para ganhar coragem, caim respirou fundo três vezes antes de falar, Se o vosso encargo em sodoma era destruir a cidade, qual é a missão que vos trouxe agora, Não podemos revelá-la a ninguém, avisou um, Bom, não é segredo, disse o outro, e para todos deixará de o ser quando as coisas acontecerem, além disso, este que vai aqui connosco já demonstrou ser de confiança, Assumes a responsabilidade da inconfidência, imagina que ele chega e vai a correr contar a job, O mais provável seria que não acreditasse, Bem, faz o que quiseres, lavo daí as minhas mãos. Caim parou e disse, Não vale a pena que estejam a discutir por minha causa, contem se quiserem, se não quiserem não contem, eu não obrigo nem peço. Perante este desprendimento até o anjo reticente se rendeu, Conta, disse para o outro, e logo, pondo um olhar severo em caim, ordenou, E tu, juras que não dirás a ninguém o que vais ouvir, Juro, disse caim, levantando a mão direita. Então o outro anjo começou, Aqui há dias, como acontece de vez em quando, reuniram-se todos os seres celestes perante o senhor e presente também estava satã, e deus perguntou-lhe, Donde vens agora, e satã respondeu, Fui passear e dar umas voltas pela terra, e o senhor fez-lhe outra pergunta, Não reparaste no meu servo job, não há outro como ele no mundo, é um homem bom e honesto, muito religioso e não faz nada de mal. Satã, que ouvira com um sorriso torcido, desdenhoso, perguntou ao senhor, Achas que os seus sentimentos religiosos são desinteressados, não é verdade que, tal como uma muralha, tu o proteges de todos os lados, a ele e à sua família e a tudo o que lhe pertence. Fez uma pausa e continuou, Mas experimenta tu levantar a mão contra aquilo que é seu e verás se ele não te amaldiçoa. Então o senhor disse a satã, Tudo o que lhe pertence está à tua disposição, mas nele não poderás tocar. Satã ouviu e foi-se embora, e nós aqui estamos, Para quê, perguntou, Para que satã não se exceda, para que não vá além dos limites que o senhor lhe marcou. Então caim disse, Se bem entendi, o senhor e satã fizeram uma aposta, mas job não pode saber que foi alvo de um acordo de jogadores entre deus e o diabo, Exactamente, exclamaram os anjos em coro, A mim não me parece muito limpo da parte do senhor, disse caim, se o que ouvi é verdade, job apesar de rico, é um homem bom, honesto, e ainda por cima muito religioso, não cometeu nenhum crime, mas vai ser castigado sem motivo com a perda dos seus bens, talvez, como tantos dizem, o senhor seja justo, mas a mim não me parece, faz-me recordar sempre o que aconteceu com abraão aquém deus, para pôr à prova, ordenou que matasse o seu filho isaac, em minha opinião, se o senhor não se fia das pessoas que creem nele, então não vejo por que tenham essas pessoas de fiar-se no senhor, Os desígnios de deus são inescrutáveis, nem nós, anjos, podemos penetrar no seu pensamento, Estou cansado da lengalenga de que is desígnios do senhor são inescrutáveis, respondeu caim, deus deveria ser transparente e límpido como cristal em lugar desta contínua assombração, deste constante medo, enfim, deus não nos ama, Foi ele quem te deu a vida, A vida deram-ma meu pai e minha mãe, juntaram a carne à carne e eu nasci, não consta que deus estivesse presente no acto, Deus está em todo o lado, Sobretudo quando manda matar, uma só criança das que morreram feitas tições em sodoma bastaria para o condenar sem remissão, mas a justiça, para deus, é uma palavra vã, agora vai fazer sofrer job por causa de uma aposta e ninguém lhe pedirá contas, Cuidado, caim, falas de mais, o senhor está a ouvir-te e tarde ou cedo te castigará, O senhor não ouve, o senhor é surdo, por toda parte se lhe levantam súplicas, são pobres, infelizes, desgraçados, todos a implorar o remédio que o mundo lhes negou, e o senhor vira-lhes as costas, começou por fazer uma aliança com os hebreus e agora faz um pacto com o diabo, para isto não valia a pena haver deus. Os anjos protestaram indignados, ameaçaram deixá-lo ali sem emprego, com o que o debate teológico terminou e as pazes mais ou menos ficaram feitas. Um dos anjos chegou mesmo a dizer, Creio que o senhor apreciaria discutir contigo sobre estes assuntos, Talvez algum dia, respondeu caim. Estavam à porta da casona de job, um dos anjos pediu para falar com o intendente, que não veio em pessoa, mas mandou um representante a saber o que pretendiam, Trabalho, disse o anjo, não para nós, que somos doutros sítios, mas para este nosso amigo que acaba de chegar e quer fundar uma nova vida na terra de us, Ti que sabes fazer, perguntou o delegado do intendente, Entendo um pouco de burros, fui ajudante de alveitar no exército de josué, Muito bem, é uma boa recomendação, vou mandar um escravo contigo e incorporas-te agora mesmo, só preciso que me digas como te chamas, Caim sou, E donde vieste, Das terras de nod, Nunca ouvi falar, Não és o primeiro, quem diz terras de nod, diz terra de nada. Então um dos anjos disse a caim, Estás entregue, já tens trabalho, Enquanto durar, respondeu caim com um sorriso apagado, Não penses no pior, acudiu o delegado do intendente, quem teve a sorte de entrar um dia nesta casa ficou com trabalho para toda a vida, não há melhor homem que job. Os anjos despediram-se de caim com um abraço para voltar à sua tarefa de fiscais do cumprimento das ordens do senhor, afinal, quem sabe se tudo isto não virá a ter um desenlace melhor do que aquele que parece prometido.

Infelizmente foi pior que tudo o que se poderia esperar. Munido da carta de plenos poderes que lhe havia sido concedida, satã atacou ao mesmo tempo em todas as frentes. Um dia em que os filhos e filhas de job, sete, eles, três, elas, estavam à mesa a beber vinho em casa do irmão mais velho, um mensageiro, precisamente o nosso conhecido caim, que, como sabemos, trabalhava com os asnos, veio dizer a job, Os bois lavravam e as jumentas pastavam perto deles, de repente apareceram os sabeus e roubaram tudo e passaram os criados a fio de espada, só escapei eu para te trazer a notícia. Ainda caim estava a falar quando chegou outro mensageiro e disse, O fogo de deus caiu do céu, queimou e reduziu a cinzas as ovelhas e os escravos, só escapei eu para te trazer a noticia. Ainda este não se tinha calado e outro chegou, Os caldeus, disse, divididos em três quadrilhas, lançaram-se sobre os criados a fio de espada, só escapei eu para te trazer a notícia. Ainda este estava a falar, e eis que entrou outro e disse, Os teus filhos e as tuas filhas estavam a comer e a beber vinho em casa do irmão mais velho, quando de repente um furacão se levantou do outro lado do deserto e abalou os quatro cantos da casa que desabou sobre eles e os matou a todos, só eu consegui escapar para te trazer a notícia. Então job levantou-se, rasgou o manto e rapou a cabeça, feito o que, prostrado por terra, disse, Saí nu do ventre da minha mãe e nu hei-de voltar ao seio da terra, o senhor mo deu, o senhor mo tirou, bendito seja o nome do senhor. O desastre desta infeliz família não irá ficar por aqui, mas, antes de prosseguir, sejam-nos permitidas umas quantas observações. A primeira para manifestar estranheza pelo facto de satã poder dispor a seu bel-prazer dos sabeus e dos caldeus para serviço dos seus interesses particulares, a segunda para expressar uma estranheza ainda maior por satã haver sido autorizado a servir-se de um fenômeno natural, como foi o caso do furacão, e, pior ainda, e isso, sim, inexplicável, por utilizar o próprio fogo de deus para queimar as ovelhas e os escravos que as guardavam. Portanto, ou satã pode muito mais do que pensávamos, ou estamos perante uma gravíssima situação de cumplicidade tácita, pelo menos tácita, entre o lado maligno e o lado benigno do mundo. O luto tinha caído como uma lousa funerária sobre as terras de us, pois os mortos haviam nascido todos na cidade, agora condenada, sabe-se lá até quando, a uma miséria geram em que o menos pobre não era certamente job. Poucos dias depois destes infaustos acontecimentos realizou-se no céu uma nova assembleia dos seres celestes e satã estava outra vez entre eles. Então o senhor disse-lhe, Donde vens tu, e satã respondeu, Venho de dar outra volta ao mundo e percorrê-lo todo, Reparaste no meu servo job, perguntou o senhor, não há ninguém como ele na terra, homem íntegro, recto, temente a deus e afastado do mal, e que persevera sempre na sua virtude, apesar de me teres incitado contra ele para que eu o atribulasse sem o merecer, e satã respondeu, Fi-lo com o teu acordo, se job o merecia ou não merecia, não era assunto meu nem a ideia de o atormentar foi minha, e continuou, Um homem é capaz de dar tudo o que tem até a sua própria pele para poder salvar a vida, mas experimenta levantar a tua mão contra ele, faz com que sofra a doença nos seus ossos e no seu corpo e verás se ele não te amaldiçoa cara a cara. Disse o senhor, Aí o tens à tua disposição, mas com a condição de que lhe poupes a vida, Isso me basta, respondeu satã e foi dali aonde estava job a quem, em menos tempo do que leva a dizer amém, cobriu de horríveis chagas desde a planta dos pés ao alto da cabeça. Havia que ver o infeliz sentado na poeira do caminho enquanto ia raspando o pus das pernas com um caco de telha, como o último dos últimos. A mulher de job, de quem até agora não tínhamos ouvido uma palavra, nem sequer para chorar a morte dos seus dez filhos, achou que já era hora de desabafar e perguntou ao marido, Ainda continuas firme na tua rectidão, eu, se fosse a ti, se estivesse no teu lugar, amaldiçoaria a deus ainda que daí me viesse a morte, ao que job respondeu, Estás a falar como uma ignorante, se recebemos o bem da mão de deus, por que não receberíamos também o mal, esta foi a pergunta, mas a mulher respondeu irada, Para o mal estava aí satã, que o senhor nos apareça agora como seu concorrente é coisa que nunca me passaria pela cabeça, Não pode ter sido deus quem me pôs neste estado, mas satã, Com a concordância do senhor, disse ela, e acrescentou, Sempre ouvi dizer ao antigos que as manhas do diabo não prevalecem contra a vontade de deus, mas agora duvido de que as coisas sejam assim tão simples, o mais certo é que satã não seja mais que um instrumento do senhor, o encarregado de levar a cabo os trabalhos sujos que deus não pode assinar com seu nome. Então job, no cúmulo do sofrimento, talvez, sem o confessar, animado pela mulher, rompeu o dique do temor de deus que lhe selava os lábios e clamou, Pereça o dia em que nasci e a noite em que foi dito, Foi concebido um varão, converta-se esse dia em trevas, que deus lá do alto não lhe dê atenção nem a luz sobre ele resplandeça, que dele se apoderem as trevas e a obscuridade, que as nuvens o envolvam e os eclipses o apavorem, que não se mencione esse dia entre os dias do ano, nem se conte entre os meses, que seja estéril tal noite e não veja abrirem-se as pálpebras da aurora por não me ter fechado a saída do ventre de minha mae, impedindo que eu chegasse a ver tanta miséria, e assim se foi job queixando da sua sorte, páginas e páginas de imprecações e lamentos, enquanto três amigos seus, elifaz de taman, baldad de suás e sofar de naamat, lhe iam fazendo discursos sobre a resignação em geral e o dever, para todo o crente, de acatar de cabeça baixa a vontade do senhor, fosse ela qual fosse. Caim tinha conseguido um trabalho, pouca coisa, a cuidar dos burros de um pequeno proprietário, a quem teve de repetir mil vezes, a ele e aos parentes, como havia sido aquilo do ataque dos sabeus e do roubo das jumentas. Calculava que os anjos ainda andassem por ali a recolher informações da desgraça de job para levar ao senhor, que deveria estar impaciente, mas, contra as suas expectativas, foram eles quem lhe apareceram para o felicitarem por ter escapado à crueldade dos nômades sabeus, Um milagre, disseram. Caim agradeceu como era seu dever, mas o privilégio não podia fazê-lo esquecer dos seus agravos contra deus, que iam em aumento, Suponho que o senhor estará feliz, disse aos anjos, ganhou a aposta contra satã e, apesar de tudo quanto está a sofrer, job não o renegou, Todos sabíamos que não o faria, Também o senhor, imagino, O senhor primeiro que todos, Isso quer dizer que ele apostou porque tinha a certeza de que ia ganhar, De certo modo, sim, Portanto, tudo ficou como estava, neste momento o senhor não sabe mais de job do que aquilo que sabia antes, Assim é, Então, se é assim expliquem-me por que está job leproso, coberto de chagas purulentas, sem filhos, arruinado, O senhor arranjará maneira de o compensar, Ressuscitará os dez filhos, levantará as paredes, fará regressar os animais que não foram mortos, perguntou caim, Isso não sabemos, e que fará o senhor a satã, que tão mau uso, pelos vistos, parece ter feito da autorização que lhe foi dada, Provavelmente nada, Como, nada, perguntou caim em tom escandalizado, mesmo que os escravos não contem para as estatísticas, há muita outra gente morta, e ouço que provavelmente o senhor não irá fazer nada, No céu as coisas sempre foram assim, não é nossa culpa, Sim, quando numa assembleia de seres celestes está presente satã, há qualquer coisa que o simples mortal não entende. A conversa ficou por ali, os anjos foram-se embora e caim começou a pensar que teria de encontrar um caminho mais digno para a sua vida, Não vou ficar aqui o resto do tempo a cuidar de burros, pensou. O propósito era merecedor de consideração e louvor, mas as alternativas eram nulas, salvo se regressasse à terras de nod e ocupasse o seu lugar no palácio e na cama de lilith. Engordaria, far-lhe-ia mais dois ou três filhos, e, agora lhe estava ocorrendo a ideia, poderia ir ver como estavam os pais, se ainda eram vivos, se estavam bem. Usaria um disfarce para que não o reconhecessem, mas essa alegria ninguém lha roubaria, Alegria, perguntou a si mesmo, para caim nunca haverá alegria, caim é o que matou o irmão, caim é o que nasceu para ver o inenarrável, caim é o que odeia deus.

Faltava-lhe, porém, um burro que o levasse. Num primeiro momento ainda pensou em deixar-se de burros e ir a pé, mas, se a passagem de um presente a outro tardasse, não teria outro remédio que andar ao acaso por aqueles desertos guiando-se pelas estrelas quando fosse noite e esperando que elas aparecessem quando fosse dia. Além disso, não teria com quem conversar. Ao contrário do que geralmente se pensa, o burro é um grande conversador, basta reparar nas diversas maneiras que tem de zurrar e resfolgar e na variedade de movimentos das orelhas, nem  todas as pessoas que montam jumentos conhecem a linguagem deles, daí que aconteçam situações aparentemente inexplicáveis como postar-se o animal no meio do caminho, imóvel, e dali não sair nem que o moam à pancada. Diz-se então que o asno é teimoso como um burro quando afinal do que se trata é de um problema de comunicação, como tantas vezes sucede até entre os humanos. A ideia de ir a pé não durou portanto muito na cabeça de caim. Precisava de um burro, ainda que tivesse de o roubar, mas nós, que o vamos conhecendo cada vez melhor, sabemos que não o fará. Apesar de assassino, caim é um homem intrinsecamente honesto, os dissolutos dias vividos em contubérnio com lilith, ainda que censuráveis do ponto de vista dos preconceitos burgueses, não foram bastantes para prever o seu inato sentido moral da existência, haja vista o corajoso enfrentamento que tem mantido com deus, embora, forçoso é dizê-lo, o senhor nem de tal se tenha apercebido até hoje, salvo se recorda-se da discussão que ambos travaram diante do cadáver ainda quente de abel. Neste ir e vir de pensamentos, ocorreu a caim a salvadora ideia de comprar um dos burros ao seu cuidado, recebendo em dinheiro contado só metade do soldo e deixando a outra metade nas mãos do proprietário como pagamento por conta. Inconveniente seria a lentidão do processo de liquidação, mas caim não tinha pressa, não havia no mundo ninguém à sua espera, nem sequer lilith, por mais voltas que o seu corpo, nervoso e impaciente, lhe desse na cama. O dono dos burros, que não era má pessoa, fez as contas à sua maneira, de forma a beneficiar os interesses de caim, que nem de tal suspeitou, tanto mais que as matemáticas nunca tinham sido o seu forte. Não foram necessárias muitas semanas para que caim se visse, por fim, investido na posse do seu jumento. Podia partir quando quisesse. Na véspera da saída resolveu ir ver como estaria o seu antigo patrão, se já se lhe haviam sarado as chagas, mas teve o desgosto de o ver sentado ao chão, à porta da casa, raspando as feridas das pernas com um caco de telha, tal como no dia em que a maldição lhe caiu em cima, que maldição, e das piores, foi tê-lo abandonado deus às mãos de satã. Grande nau, grande tormenta, diz o povo, e a história de job o vem demonstrando à saciedade. Discreto, como a foragido convém, caim não se aproximou para lhe desejar as melhoras da sua saúde, afinal, este patrão e este empregado nem tinham chegado a conhecer-se, é o mau que tem a divisão em classes, cada um no seu lugar, se possível onde nasceu, assim não haverá nenhuma maneira de fazer amizades entre oriundos dos diversos mundos. Montado no burro que já lhe pertencia de direito, caim voltou ao seu lugar de trabalho para preparar o equipamento de viagem. Em comparação com o jumento que havia ficado na estrebaria do palácio de lilith, aquela magnífica estampa de burro que tinha feito despertar a cobiça do alveitar em jericó, a nova montada é mais uma espécie de rocinante aposentado que um exemplar para desfiles. No entanto, mesmo a menos exigente das independências de juízo mandará reconhecer que é sólido de pernas, ainda que as tenha delgadas e algo canhestras. No conjunto, como está pensando o antigo dono que veio despedir-se à porta, caim não vai mal servido quando no dia seguinte, de manhã cedo, se fizer finalmente à estrada.
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