sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

CAIM (Capítulo XIII° - Último Capítulo)



Deus não veio ao bota-fora. Estava ocupado com a revisão do sistema hidráulico do planeta, verificando o estado das válvulas, apertando alguma porca mal ajustada que gotejava onde não devia, provando as diversas redes locais de distribuição, vigiando a pressão dos manômetros, além de uma infinidade de outras grandes e pequenas tarefas, cada uma delas mais importante que a anterior e que ele só, como criador, engenheiro e administrador dos mecanismos universais, estava em condições de levar a bom termo e confirmar com o seu sagrado ok. A festa, para os outros, para ele, o labor. Em horas assim sentia-se menos como um deus que como contramestre dos anjos operários, os quais, neste preciso e exacto momento, cento e cinquenta a estibordo da arca, cento e cinquenta a bombordo, com os seus alvinitentes fatos de trabalho, esperavam a ordem de alçar a enorme embarcação, não diremos a uma só voz porque nenhuma se ouviria, pois toda esta operação é obra da mente, mas como se o pensasse um só homem com o seu único cérebro e a sua única vontade. Num instante a arca estava no chão, no instante seguinte subira à altura dos braços levantados dos anjos operários como num exercício ginástico de pesos e halteres. Entusiasmados, noé e a família debruçaram-se à janela para melhor apreciarem o espetáculo, com risco de algum deles cair dali abaixo, como pensou caim. Um novo impulso e a arca encontrou-se numa região superior ao ar. Foi então que noé deu um grito, O unicórnio, o unicórnio. Efectivamente, galopando ao longo da arca, corria aquele animal sem par na zoologia, com o seu corno espiralado, todo ele de uma brancura deslumbrante, como se fosse um anjo, esse cavalo fabuloso de cuja existência tantos haviam duvidado, e enfim ali estava, quase ao alcance da mão, bastaria fazer descer a arca, abrir-lhe a porta e atraí-lo com um torrão de açúcar que é o mimo que a espécie equina mais aprecia, é quase a sua perdição. De repente, o unicórnio, assim como apareceu, desapareceu. Os gritos de noé, Desçam, desçam, foram inúteis. A manobra de descida teria sido logisticamente complicada, e para quê se ele já tinha levado sumiço, sabe-se lá por onde andará neste momento. Entretanto, numa velocidade muito maior que a do zeppelin hindenburg, a arca sulcava os ares em direcção ao mar, onde finalmente pousou com fundo suficiente dando origem a uma vaga enorme, um autêntico tsunami, que chegou às praias, destroçando os barcos e os casebres de pescadores, afogando uns quantos, arruinando as artes da pesca, como um aviso do que haveria de vir. Mas o senhor não mudou de opinião, os seus cálculos podiam estar errados, mas, como a prova real não havia sido tirada, ainda lhe ficava o benefício da dúvida. Dentro da arca, a família de noé dava graças a deus e, para festejar o êxito da operação e exprimir o seu reconhecimento, sacrificou um cordeiro ao senhor, a quem a oferenda, como é natural, conhecidos os antecedentes, deliciou. Tinha razão, noé havia sido uma boa escolha para o pai da nova humanidade, a única pessoa justa e honesta do tempo, que ele era, emendaria os erros do passado e expulsaria da terra a iniquidade. E os anjos, onde estão os anjos operários, perguntou subitamente caim. Não estavam. Satisfeita de tão perfeita e completa maneira de incumbência do senhor, os diligentes obreiros, com a simplicidade que os caracterizava e de que nos deram não poucas provas desde o primeiro dia em que nos conhecemos, tinham regressado às casernas sem esperar a distribuição das medalhas. A arca, é bom lembrá-lo, não se lhe pode dar corda, e levá-la a remos seria literalmente impensável, nem mesmo as forças de todos os anjos operários disponíveis no céu seriam capazes de a fazer mover por esse meio. Vogará portanto ao sabor das correntes, deixar-se-á empurrar pelos ventos que lhe soprem o bojo, a manobra marinheira será mínima e a viagem um longo descanso, salvo as ocasiões de actividade amatória, que não serão poucas nem breves e para as quais o contributo de caim, pelo que temos podido perceber, é da ordem do exemplar. Digam-no as noras de noé que não poucas vezes têm abandonado a meio da noite a cama onde estavam jazendo com os seus maridos para irem cobrir-se, não apenas com a manta que tapa caim, mas com o seu jovem e experiente corpo.
Passados sete dias, número cabalístico por excelência, abriram-se finalmente as comportas do céu. A chuva irá cair sobre a terra, sem parar, durante quarenta dias e quarenta noites. Ao princípio pareceu não se notar a diferença do efeito das cataratas que continuamente se despenhavam do céu com um rugido ensurdecedor. Era natural, a força da gravidade encaminhava as torrentes para o mar e ali, à primeira vista, era como se sumisse nele, mas não tardou que as fontes do oceano profundo por sua vez rebentassem e a água começasse a subir à superfície em cachões e jorros do tamanho de montanhas que tanto apareciam como desapareciam, fundindo-se com a imensidade do mar. No meio desta furiosa convulsão aquática que tudo queria engolir, a barca lograva aguentar-se, balançando-se de um lado a outro como uma rolha de cortiça, aprumando-se no último instante quando o mar já parecia ir tragá-la. Ao cabo de cento e cinquenta dias, depois de que as fontes do mar profundo e as comportas do céu se tivessem fechado, a água, que havia coberto toda a terra acima das serranias mais altas, começou a baixar lentamente. Entretanto, porém, uma das noras de noé, a mulher de cam, havia morrido num acidente. Ao contrário do que deixamos antes dito ou dado a entender, havia uma grande necessidade de mão de obra na barca, não de marinheiros, é certo, mas de pessoal de limpeza. Centenas, para não dizer milhares de animais, muitos deles de grande porte, enchiam a abarrotar os porões e todos cagavam e mijavam que era um louvar a deus. Limpar aquilo, baldear as toneladas de excrementos todos os dias era uma duríssima prova para as quatro mulheres, uma prova física em primeiro lugar, pois Dalí saíam exaustas as pobres, mas também sensorial, com aquele insuportável fedor a merda e urina que traspassava a própria pele. Foi num desses dias de tempestades desabalada, com a arca a ser sacudida pela tormenta e os animais a atropelarem-se uns aos outros, que a mulher de cam, tendo escorregado no chão imundo, foi acabar sob as patas de um elefante. Lançaram-na ao mar tal como se encontrava, ensanguentada, suja de excrementos, um mísero despojo humano sem honra nem dignidade. Por que não a limparam antes, perguntou caim, e noé respondeu, Vai ter muita água para se lavar. A partir deste momento e até ao final da história, caim irá odiá-lo de morte. Diz-se que não há efeito sem causa nem causa sem efeito, parecendo portanto que as relações entre uma coisa e outra deverão ser em cada momento, não só patentes, mas compreensíveis em todos os seus aspectos quer consequentes quer subconsequentes. Não nos arriscamos a sugerir que deva ser incluída neste quadro geral a explicação da mudança de atitude da mulher de noé. Pode ela ter pensado simplesmente que, faltando a mulher de cam, outra deveria ocupar o seu lugar, não para acolitar o viúvo nas suas noites agora solitárias, mas para recuperar a harmonia antes vivida entre as fêmeas mais novas da família e o hóspede caim, ou, por palavras mais claras e directas, se antes ele tinha três mulheres à sua disposição, não havia motivo para que não continuasse a tê-las. Mal sabia ela que na cabeça do homem rondavam ideias que tornavam absolutamente secundária a questão. Em todo o caso, como uma coisa não empata a outra, caim acolheu com simpatia os avanços dela, Aqui onde me vês, apesar da idade, que já não é da primeira juventude, e tendo parido três filhos, ainda me sinto muito apetecível, e tu que achas, caim, perguntara ela. Havia muito tempo que deixara de chover, a enorme massa de água entretinha-se agora a macerar os mortos e empurrá-los docemente, no seu eterno balanceio, para a boca dos peixes. Caim tinha assomado à janela para ver o mar que resplandecia sob a lua, havia pensado um pouco em lilith e em seu filho enoch, ambos mortos, mas de maneira distraída, como se não lhe importasse muito, e foi então que ouviu sussurrar ao seu lado, Aqui onde me vês. Dali foram, ele e ela, para o cubículo onde caim costumava dormir, não esperaram sequer que noé, já entregue ais braços de morfeu, se ausentasse do mundo, e, quando acabaram, o homem teve de reconhecer que a mulher tinha razão no juízo que sobre si própria havia feito, ainda estava ali para lavar e durar, e mostrava ter, em certos momentos, uma experiência acrobática a que as outras ainda não haviam conseguido chegar, fosse pela falta de vocação natural, fosse por inibição causada pela actuação tradicional dos respectivos maridos. E, posto que estamos a falar de maridos, diga-se já que cam foi o segundo a desaparecer. Tinha subido à cobertura da arca para ajustar algumas tábuas que rangiam com o balanço e o impediam de dormir, quando alguém se aproximou, Dás-me uma ajuda, perguntou, Sim, foi a resposta, e empurraram-no para o mar, uma queda da altura de quinze metros que pareceu interminável, mas logo acabou. Noé barafustou, zangou-se, disse que, depois de tanto tempo de prática de navegação, só uma imperdoável falta de atenção ao trabalho podia explicar o sucedido, Abram os olhos, exigiu, vejam onde põem os pés, e continuou, Perdemos um casal, e isso vai significar que vamos ter de copular muito mais se quisermos que a vontade do senhor se cumpra, a de que sejamos os pais e mães da nova humanidade. Interrompeu-se por um instante e virando-se para as duas noras que lhe restavam, perguntou, Alguma de vocês está grávida. Uma delas respondeu que sim, que estava grávida, a outra que ainda não tinha certeza, mas que talvez, E quem é o pai, Para mim, estou que é caim, disse a mulher de jafet. Para mim também, disse a mulher de sem, Parece impossível, disse noé, se aos vossos maridos lhes anda a faltar a potência genesíaca, o melhor é que vocês se deitem só com caim, tal como eu, aliás, já havia mais ou menos previsto desde o princípio, rematou. As mulheres, incluindo a do próprio noé, sorriram para dentro, elas saberiam porquê, quanto aos homens, esses não tinham  gostado da repreensão pública, mas prometeram, se lhes permitisse, ser mais diligentes no porvir. É curioso que as pessoas falem tão ligeiramente do futuro, como se o tivessem na mão, como se estivesse em seu poder afastá-lo ou aproximá-lo de acordo com as conveniências e necessidades de cada momento. Jafet, por exemplo, vê o futuro como uma sucessão de cópulas bem sucedidas, um filho por ano, gêmeos umas quantas vezes, o olhar complacente do senhor sobre a sua cabeça, muitas ovelhas, muitas juntas de bois, em suma, a felicidade. Não sabe, o pobre, que o seu fim está perto, que uma rasteira o precipitará no vácuo sem colete salva-vidas, esbracejando nas agonias de um inútil desespero, aos gritos, enquanto a arca se vai distanciando majestosamente ao encontro do seu destino. A perda de mais um tripulante afligiu noé a um extremo indescritível, a desejada concretização do plano do senhor encontrava-se em grave risco, vista a situação, de ter que impor a necessidade de duplicar ou até mesmo triplicar o tempo indispensável a um razoável repovoamento da terra. Cada vez se tornará mais necessária a colaboração de caim, por isso noé, já que ele não parecia querer decidir-se, resolveu ter uma conversa de homem para homem com ele, Deixemo-nos de rodeios e de meias palavras, disse, tens de pôr imediatamente mãos à obra, a partir de hoje é quando quiseres e como quiseres, a mim estas preocupações matam-me, não posso ser de grande ajuda por enquanto, Quando quiser e como quiser, que significa isso, perguntou caim, Sim, e com quem  quiseres, respondeu noé, exibindo a sua melhor cara de entendido, Incluindo a tua mulher, quis saber caim, Insisto que o faças, a mulher é minha, posso fazer com ela o que me apetecer, Tanto mais que se trata de uma boa obra, insinuou caim, Uma obra prima, uma obra do senhor, assentiu noé com a solenidade apropriada, Sendo assim, comecemos já, disse caim, manda-a ter comigo ao cubículo onde durmo e que ninguém venha nos incomodar, aconteça o que acontecer e ouça-se o que se ouvir, Assim farei, e que se cumpra a vontade do senhor, Amém. Não faltará quem pense que o malicioso caim anda a divertir-se com a situação, jogando ao gato e ao rato com os seus inocentes companheiros de navegação, aos quais, como o leitor já terá suspeitado, tem vindo a eliminar um a um. Equivocar-se-á quem assim creia. Caim debate-se com a sua raiva contra o senhor como se estivesse preso nos tentáculos de um polvo, e estas suas vítimas agora não são mais, como já abel o tinha sido no passado, que outras tantas tentativas para matar deus. A próxima vítima será justamente a mulher de noé, que, sem o merecer, vai pagar com a vida as horas de gozo passadas nos braços do seu futuro assassino com a bênção e a conivência do próprio marido, a tal ponto havia chegado a delinquência dos costumes desta humanidade a cujos últimos dias vimos assistindo. Depois da repetição, em todo o caso com algumas variações mais ou menos subtis, de uns quantos excessos de delírio erótico protagonizados principalmente pela mulher e expressados, como sempre, em murmúrios, gemidos e logo incontroláveis gritos, caim levou-a pela mão até á janela para tomarem o fresco da noite e dali, metendo-lhe as mãos por entre as coxas ainda frementes de prazer, a precipitou no mar. Das oito pessoas que compunham a família de noé só restavam agora, além do próprio patriarca, o seu filho sem e a mulher e a viúva de jafet. Duas mulheres ainda dão para muito, pensava noé com o seu indefectível optimismo e a sua inabalável confiança no senhor. Não deixou no entanto de mostrar a sua estranheza pelo inexplicável desaparecimento da esposa e manifestou-a a caim, Ela estava em tudo ao teu cuidado, não compreendo como pode ter sucedido esta desgraça, ao que caim respondeu perguntando, E era eu o guarda-costas da tua mulher, levava-a eu atada a mim pelo tornozelo com um baraço como se fosse uma ovelha, Não digo isso, encolheu-se noé, mas ela dormia contigo, podias ter-te apercebido de algo, Tenho o sono pesado. A conversa não foi mais longe, em verdade, caim não podia ser responsabilizado pelo facto de a mulher se ter levantado para ir urina fora, à brisa nocturna, e ali sofrer, por exemplo, uma tontura, para depois rolar por um desaguadouro e desaparecer nas águas. Coisas da fatalidade. O nível do imenso mar que cobria a terra continuava a descer, mas nenhum cume de montanha havia levantado a cabeça para dizer, Aqui estou, o meu nome é ararat e estou na turquia. Fosse como fosse, porém, a grande viagem aproximava-se do fim, era tempo de começar a preparar a conclusão, o desembarque ou o que tiver de suceder. Sem e a mulher caíram ao mar no mesmo dia em circunstancias que ficarão por explicar, o mesmo tendo acontecido à viúva de jafet, que ainda na véspera tinha dormido na cama de caim. E agora, clamava noé, arrepelando o cabelo no mais absoluto desespero, tudo está perdido, sem mulheres que fecundem não haverá vida nem humanidade, melhor teria sido contentar-nos com a que tínhamos, que já a conhecíamos, e insistia, perdido de desgosto, Com que cara irei eu comparecer diante do senhor com este barco cheio de animais, que hei-de eu fazer, como viverei o resto da minha vida, Deita-te daqui abaixo, disse caim, nenhum anjo virá colher-te nos seus braços. Algo soou na voz com que o disse que fez acordar noé para a realidade, Foste tu, disse, Sim, fui eu, respondeu caim, mas em ti não tocarei, morrerás pelas tuas próprias mãos, E deus, que dirá deus, perguntou noé, Vai tranquilo, de deus encarrego-me eu. Noé deu a meia dúzia de passos que o separavam da borda e, sem uma palavra, deixou-se cair.
No dia seguinte a barca tocou a terra. Então ouviu-se a voz de deus, Noé, noé, sai da arca com a tua mulher e os teus filhos e as mulheres dos teus filhos, retira também da arca os animais de toda espécie que estão contigo, as aves, os quadrúpedes, os répteis todos que rastejam pela terra, a fim de que se espalhem pelo mundo e por toda a parte se multipliquem. Houve um silêncio, depois a porta da arca abriu-se lentamente e os animais começaram a sair. Saíam, saíam, e não acabavam de sair, uns grandes, como o elefante e o hipopótamo, outros, pequenos, como a lagartixa e o gafanhoto, outros de tamanho médio, como a cabra e a ovelha. Quando as tartarugas, que tinham sido as últimas, se afastavam, lentas e compenetradas como lhes está na natureza, deus chamou, Noé, noé, por que não sais. Vindo do escuro interior da arca, caim apareceu no limiar da grande porta, Onde estão noé e os seus, perguntou o senhor, Por aí, mortos, respondeu caim, Mortos, como, mortos, porquê, Menos noé, que se afogou por sua livre vontade, aos outros matei-os eu, Como te atreveste, assassino, a contrariar o meu projecto, é assim que me agradeces ter-te poupado a vida quando mataste abel, perguntou o senhor, Teria de chegar o dia em que alguém te colocaria perante a tua verdadeira face, Então a nova humanidade que eu tinha anunciado, Houve uma, não haverá outra e ninguém dará pela falta, Caim és, e malvado, infame e matador do teu próprio irmão, Não tão malvado e infame como tu, lembra-te das crianças de sodoma. Houve um grande silêncio. Depois caim disse, Agora já podes matar-me, Não posso, palavra de deus não volta atrás, morrerás da tua natural morte na terra abandonada e as aves de rapina virão devorar-te a carne, Sim, depois de tu primeiro me haveres devorado o espírito. A resposta de deus não chegou a ser ouvida, também a fala seguinte de caim se perdeu, o mais natural é que tenham argumentado um contra o outro uma vez e muitas, a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuaram a discutir e que a discutir estão ainda. A história acabou, não haverá nada mais que contar.

FIM
 
 
Saramago, José

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