sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

CAIM (Capítulo XII°)




Não teve de andar muito para deixar o triste presente das terras de us e ver-se rodeado de verdejantes montanhas, de luxuriosos vales onde discorriam riachos da mais pura e cristalina água que olhos humanos alguma vez haviam visto e a boca saboreado. Isto, sim, poderia ter sido o jardim do éden de saudosa memória, agora que tantos anos passaram já e as más recordações, com a ajuda do tempo, mais ou menos se vieram diluindo. E, no entanto, percebia-se na deslumbrante paisagem algo de postiço, de artificial, como se se tratasse de um cenário preparado adrede para um fim impossível de descortinar a quem vem montado num vulgar jerico e sem guia michelin. Caim rodeou um penhasco que lhe vinha ocultando um bom trecho do panorama e encontrou-se à entrada de um vale menos arborizado, mas não menos atractivo que o anteriormente visto, onde se estendia uma construção de madeira que, pelo aspecto das partes e pela cor dos materiais, se assemelhava muito a um barco ou, para ser mais exacto, a uma grande arca cuja presença ali se tornava altamente intrigante porque um barco, se barco era, constrói-se, por principio, à beira d’água, e uma arca, de mais a mais daquele tamanho, não é coisa para se deixar ficar num vale, à espera não se sabe de quê. curioso, caim resolveu ir a fonte limpa, neste caso as pessoas que, fosse para seu próprio uso, fosse por encomenda de terceiros, estavam a construir o enigmático barco ou a não menos enigmática arca. Encaminhou o jumento em direcção ao estaleiro, ali saudou os presentes e tentou meter conversa, Bonito sítio, este, disse, mas a resposta, além de demorar, foi dada da maneira mais sintética possível, um sim meramente confirmativo, indiferente, desinteressado, sem compromisso. Caim continuou, Quem por aqui venha de viagem, como é o meu caso, esperará encontrar tudo menos uma construção com a grandeza desta, mas a insinuação intencionalmente lisonjeira caiu em saco roto. Via-se que as oito pessoas que trabalhavam na obra, quatro homens e quatro mulheres, não estavam dispostas a confraternizar com o intruso e não faziam nada para disfarçar o muro de hostilidade com que se defendiam dos seus avanços. Caim resolveu deixar-se de rodeios e atacou, E isto que estão a fazer, que é, um barco, uma arca, uma casa, perguntou. O mais velho do grupo, um homem alto, robusto como sansão, limitou-se a dizer, Casa não é, E arca também não, cortou caim, porque não há arca sem tampa, e a tampa desta, se existisse, não haveria força humana que a conseguisse levantar. O homem não respondeu e fez menção de se retirar, mas caim reteve-o no último instante, Se não é casa nem arca, então só pode ser barco, disse, Não respondas, noé, disse a mais velha das mulheres, o senhor irá ficar enfadado contigo se falares mais do que a conta. O homem assentiu com um movimento de cabeça e disse para caim, Temos muito que fazer e a tua conversa distrai-nos do trabalho, peço-te que nos deixes e continues o teu caminho, e rematou em tom levemente ameaçador, Como poderás ver com os teus próprios olhos, somos aqui quatro homens fortes, eu e os meus filhos, Muito bem, respondeu caim, vejo que as antigas regras da hospitalidade mesopotâmica, desde sempre respeitadas nas nossas terras, perderam todo o valor para a família de noé. Naquele exato momento, em meio de um trovão ensurdecedor e dos correspondentes relâmpagos pirotécnicos, o senhor manifestou-se. Vinha em fato de trabalho, sem os luxos vestimentários com que reduzia à obediência imediata aqueles a quem pretendia impressionar sem ter de recorrer à dialéctica divina. A família de noé e o próprio patriarca prostraram-se acto contínuo no chão coberto de aparas de madeira, enquanto o senhor olhava surpreendido a caim e lhe perguntava, Que fazes por aqui, nunca mais te vi desde o dia em que mataste o teu irmão, Enganas-te, senhor, vimo-nos, embora não me tenhas reconhecido, em casa de abraão, nas azinheiras de mambré, quando ias destruir sodoma, Foi um bom trabalho, esse, limpo e eficaz, sobretudo definitivo, Não há nada definitivo no mundo que criaste, job julgava estar a salvo de todas as desgraças, mas a tua aposta com satã reduziu-o à miséria e o seu corpo é uma pegada chaga, assim o vi quando saí das terras de us, Já não, caim, já não, a pele dele sarou completamente e os rebanhos que tinha duplicaram, agora tem catorze mil ovelhas, seis mil camelos, mil juntas de bois e mil jumentos, E como os conseguiu ele, Dobrou-se à minha autoridade, reconheceu que o meu poder é absoluto, ilimitado, que não tenho que dar contas senão a mim mesmo nem deter-me por considerações de ordem pessoal e que, isto digo-to agora, sou dotado de uma consciência tão flexível que sempre a encontro de acordo com o que quer que faça, E os filhos que job tinha e morreram debaixo dos escombros da casa, Um pormenor a que não há que dar demasiada importância, terá outros dez filhos, sete varões e três fêmeas como antes, para substituir os que perdeu, Da mesma maneira que os rebanhos, os filhos não soa mais que isso, rebanhos. Noé e a família já se tinham levantado do chão e assistiam com assombro ao diálogo do senhor e de caim, que mais parecia de dois velhos amigos que tivessem acabado de reencontrar-se depois de uma longa separação. Não me disseste que vieste aqui fazer, disse deus, Nada de especial, senhor, alias não vim, encontrei-me cá, Da mesma maneira que te encontraste em sodoma ou nas terras de us, E também no monte sinai, e em jericó, e na torre de babel, e nas terras de nod, e no sacrifício de isaac, Tens viajado muito, pelos vistos, Assim é, senhor, mas não que fosse por minha vontade, pergunto-me até se estas constantes mudanças que me têm levado de um presente a outro, ora no passado, ora no futuro, não serão também obra tua, Não, nada tenho que ver com isso, são habilidades primarias que me escaparam, truques para épater le bourgeois, para mim o tempo não existe, Admites então que haja no universo uma outra força, diferente e mais poderosa que a tua, É possível, não tenho por hábito discutir transcendências ociosas, mas uma coisa ficas sabendo, não poderás sair deste vale, nem te aconselho que o tentes, a partir de agora as saídas estarão guardadas, em cada uma delas haverá dois querubins com espadas de fogo e com ordem de matar quem quer que se aproxime, Como aquele que pusestes à porta do jardim do éden, Como o soubeste, Os meus pais falavam muito dele. Deus virou-se para noé e perguntou, Contaste a este homem para que vai servir a barca, Não, meu senhor, que a língua me caia da boca se minto, tenho a minha família como testemunha, És um servo leal, fiz bem em escolher-te, Obrigado, senhor, e, se me permitis a pergunta, que faço agora com este homem, Leva-o na barca e junta-o à família, terás mais um homem para fazer filhos nas tuas noras, espero que os maridos delas não se importem, Prometo que não se vão importar, eu próprio tratarei de cumprir com a minha parte, estarei velho, mas não tanto que vire a cara a um bom pedaço de mulher. Caim decidiu intervir, Pode-se saber de que estão a falar, perguntou, e o senhor respondeu como se repetisse um discurso já feito antes e decorado, A terra está completamente corrompida e cheia de violências, só encontro nela corrupção, pois todos os seus habitantes seguiram caminhos errados, a maldade dos homens é grande, todos os seus pensamentos e desejos pendem sempre e unicamente para o mal, arrependo-me de ter criado o homem, pois que por causa dele o meu coração tem sofrido amargamente, o fim de todos os homens chegou perante mim, porquanto eles encheram a terra de iniquidades, vou exterminá-los, assim como à terra, a ti noé, escolhi-te para iniciares a nova humanidade, e assim mandei que construísses uma arca de madeiras resinosas, que a dividisses em compartimentos e a calafetasses com betume por dentro e por fora, ordenei-te que o comprimento dela fosse de trezentos côvados, e eles aí estão, que a largura fosse de cinquenta côvados e a altura de trinta, que no alto fizesses uma claraboia a um côvado do cimo, que colocasses a porta da arca a um lado e construísses nela um andar inferior, um segundo e um terceiro andares, pois vou lançar um dilúvio de água que, ao inundar tudo, eliminará debaixo do céu todos os seres vivos que existem no mundo, tudo quanto há na terra vai morrer, mas contigo, noé, fiz um pacto de aliança, no momento próprio entrarás na arca com os teus filhos, a tua mulher e as mulheres dos teus filhos, e todas as espécies de seres vivos levarás para a arca dois exemplares, macho e fêmea, para poderem viver juntamente contigo, portanto, de cada espécie diferente de seres vivos, sejam aves, quadrúpedes ou outros animais, irão dois exemplares contigo, deves também apanhar e armazenar os diferentes tipos de comida que cada espécie costuma comer, como provisões para ti e para todos os animais. Este foi o discurso do senhor. Então disse caim, Com estas dimensões e a carga que irá levar dentro, a arca não poderá flutuar, quando o vale começar a ser inundado não haverá impulso de água capaz de a levantar do chão, o resultado será afogarem-se todos os que lá estiverem e a esperada salvação transformar-se-á em ratoeira, Os meus cálculos não me dizem isso, emendou o senhor, Os teus cálculos estão errados, um barco deve ser construído junto à água, não num vale rodeado de montanhas, a uma distância enorme do mar, quando está terminado empurra-se para a água e é o próprio mar, ou rio, se for esse o caso, que se encarregam de o levantar, talvez não saibas que os barcos flutuam porque todo o corpo submergido num fluido experimenta um impulso vertical e para cima igual ao peso do volume do fluido desalojado, é o princípio de arquimedes,  Permite, senhor, que eu expresse o meu pensamento, disse noé, Fala, disse deus, manifestamente contrariado, Caim tem razão, senhor, se ficarmos aqui à espera de que a água nos levante acabaremos por morrer todos afogados e não poderá haver outra humanidade. Enrugando a testa para pensar melhor, o senhor deu umas quantas voltas ao assunto e acabou por chegar à mesma conclusão, tanto trabalho para inventar um vale que nunca existira antes, e afinal para nada. Então disse, O caso tem bom remédio, quando a arca estiver pronta mandarei os meus anjos operários para a levarem pelos ares para a costa do mar mais próxima, É muito peso, senhor, os anjos não vão poder, disse noé, Não sabes a força que têm os anjos, com um só dedo levantariam uma montanha, o que me vale é serem tão disciplinados, não fosse isso e já teriam organizado um complô para me deporem, Como satã, disse caim, Sim, como satã, mas a este já lhe encontrei a maneira de o trazer contente, de vez em quando deixo-lhe uma vítima nas mãos para que se entretenha, e isso lhe basta, Tal como fizeste a job, que não ousou amaldiçoar-te, mas que leva no coração toda a amargura do mundo, Que sabes tu do coração de job, Nada, mas sei tudo do meu e alguma coisa do teu, respondeu caim, Não creio, os deuses são como poços sem fundo, se te debruçares neles nem mesmo a tua imagem conseguirás ver, Com o tempo todos os poços acabam por secar, a tua hora também há-de chegar. O senhor não respondeu, mas olhou fixamente caim e disse, O teu sinal na testa está maior, parece um sol negro a levantar-se no horizonte dos olhos, Bravo, exclamou caim batendo palmas, não sabia que fosses dado à poesia, É o que eu digo, não sabes nada de mim. Com esta magoada declaração deus afastou-se e, mais discretamente que à chegada, sumiu-se noutra dimensão.

Picado por um debate em que, na opinião de qualquer observador imparcial, não tinha feito a melhor das figuras, o senhor resolveu mudar de planos. Acabar com a humanidade não era o que se poderia chamar uma tarefa urgente, a obrigada extinção do bicho-homem poderia esperar dois ou três ou mesmo dez séculos, mas, uma vez que havia tomado a decisão, deus andava a sentir uma espécie de comichão na ponta dos dedos que era sinal de impaciência grave. Decidiu portanto mobilizar a sua legião de anjos operários com efeito imediato, ou seja, em vez de os utilizar somente para levara  arca ao mar como ficara previsto, mandou-os ajudar a exausta família de noé que, como se pôde observar, já andava mais morta que viva naquele tráfego. Poucos dias depois apareceram os anjos, formados a três de fundo, e puseram imediatamente mãos à obra. O senhor não havia exagerado quando disse que os anjos tinham muita força, bastava ver aqui a naturalidade com que metiam as grossas tábuas debaixo do braço, como se fossem o jornal da tarde, e as levavam, sendo preciso, de uma ponta à outra da arca, trezentos côvados ou, em medida moderna, cento e cinquenta metros, praticamente um porta-aviões. O mais surpreendente, porém, era a maneira como introduziam os pregos na madeira. Não usavam martelo, punham o prego em posição vertical, de ponta para baixo, e, com o punho fechado, davam-lhe uma pancada seca na cabeça, com o que a peça metálica penetrava sem qualquer resistência, como se, em vez de entrar naquele duríssimo carvalho, se tratasse de manteiga no verão. Mais assombro ainda era ver como aplainavam uma tábua, assentavam a palma da mão em cima dela e moviam-na para diante e para atrás, sem produzir uma única apara ou o menor vestígio de serradura, a tábua ia diminuindo simplesmente de espessura até chegar à medida justa. E sem caso de ter de abrir um furo par introduzir uma cavilha, o simples dedo indicador bastava-lhes. Era um espetáculo vê-los trabalhar assim. Não é de admirar, portanto, que a obra tivesse avançado com uma celeridade antes inimaginável, não havia nem tempo para apreciar as mudanças. Durante este período, o senhor só apareceu uma vez. Perguntou a noé se tudo estava a correr bem, interessou-se por saber se caim ia ajudando a família, e era certo que sim, senhor, ajudava, a prova é que já havia dormido com duas noras e se preparava para dormir com a terceira. O senhor perguntou também a noé como andava isso de juntar os animais que iriam na arca, e o patriarca disse que uma boa parte deles já havia sido recolhida e que, tão cedo a obra da arca terminasse, reuniriam os que ainda faltavam. Não era verdade, era, tão-só, uma pequena parte da verdade. Havia realmente uns quantos animais, dos mais comuns, numa cerca instalada no outro extremo do vale, pouquíssimos se compararmos com o plano de recolha estabelecido pelo senhor, isto é, todos os bichos viventes, desde o pançudo hipopótamo à mais insignificante pulga, sem esquecer o que houvesse daí para baixo, incluindo os microorganismos, que também são gente. Gente, neste amplo e generoso sentido, são igualmente alguns animais de que muito se fala em certos círculos estritos que cultivam o esoterismo, mas que nunca ninguém se pôde gabar de ter visto. Referimo-nos, por exemplo, ao unicórnio, à ave fênix, ao hipogrifo, ao centauro, ao minotauro, ao basilisco, à quimera, a toda essa bicharada desconforme e compósita que não tem mais que uma justificação para existir, a de ter sido produzida por deus em hora de extravagância, do mesmo modo que o jerico ordinário, dos tantos que enxameiam estas terras. Imagina-se o orgulho, o prestígio, o crédito que noé ganharia aos olhos do senhor se conseguisse convencer um destes animais a entrar na arca, de preferência o unicórnio, supondo que o consiga encontrar alguma vez. O problema do unicórnio é que não se lhe conhece fêmea, portanto não há maneira de que possa vir a reproduzir-se pelas vias normais da fecundação e da gestação, ainda que, pensando melhor, talvez não o necessite, afinal, a continuidade biológica não é tudo, já basta que a mente humana crie e recrie aquilo em que obscuramente acredita. Para todas as tarefas que ainda falta executar, como sejam a recolha completa dos animais e o abastecimento de comestíveis, noé espera contar com a competente colaboração dos anjos operários, os quais, honra lhes seja feita, continuam a trabalhar com um entusiasmo dignos de todos os encômios. Uns com os outros, não mostram qualquer relutância em reconhecer que a vida no céu é a coisa mais aborrecida que alguma vez se inventou, sempre o coro dos anjos a proclamar aos quatro ventos a grandeza do senhor, a generosidade do senhor, inclusive a beleza do senhor. Já é tempo de que estes e os outros anjos comecem a experimentar as simples alegrias da gente comum, nem sempre há-de ser preciso, para maior exaltação do espírito, pôr fogo a sodoma ou soprar em trombetas para deitar abaixo as muralhas de jericó. Pelo menos neste caso, do ponto de vista particular dos anjos operários, a felicidade na terra era em tudo superior à que se podia ter no céu, mas o senhor, claro está, sendo tão invejoso como é, não o deveria saber, sob pena de exercer sobre os pensamentos sediciosos as mais duras represálias sem olhar a patentes angelicais. Graças à boa harmonia reinante entre o pessoal que andava a trabalhar na obra da arca é que caim pôde conseguir que o seu burro, quando chegar a altura, seja metido lá dentro pela porta do cavalo, quer dizer, como passageiro clandestino, escapando do afogamento geral. Foi também graças a essa cordial relação que logrou partilhar de certas dúvidas e perplexidades dos anjos. A dois deles, com quem havia estabelecido laços que no plano humano seriam facilmente classificados como de camaradagem e amizade, perguntou caim se realmente pensavam que, exterminada esta humanidade, aquela que lhe suceder não irá cair nos mesmos erros, nas mesmas tentações, nos mesmos desvarios e crimes, e eles responderam, Nós somos apenas anjos, pouco sabemos dessa charada indecifrável a que vocês chamam natureza humana, mas, falando com franqueza, não vemos como irá resultar satisfatória a segunda experiência quando a primeira acabou no estendal de misérias que temos diante dos olhos, em nossa sincera opinião de anjos, para resumir, e consideramos as provas dadas, os seres humanos não merecem a vida, Em verdade, vocês acham que os homens não merecem viver, perguntou caim, alvoroçado, Não foi isso o que dissemos, o que dissemos, e repetimos, é que os seres humanos, à vista da maneira como se têm comportado ao longo dos tempos conhecidos, não merecem a vida com tudo aquilo que, apesar dos seus lados negros, que são muitos, ela tem de belo, de grande, de maravilhoso, respondeu um dos anjos, Portanto, dizer uma coisa não é dizer a outra, acrescentou o segundo anjo, Se não é o mesmo, é quase, insistiu caim, Será, mas a diferença está nesse quase, e ela é enorme, Que eu saiba, nós nunca nos perguntamos aqui se merecíamos ou não a vida, disse caim, Se o tivessem pensado, talvez não se encontrasse na iminência de desaparecer da face da terra, Não vale a pena chorar, não se irá perder muito, respondeu caim dando voz ao seu sombrio pessimismo nascido e formado em sucessivas viagens ao horrores  do passado e do futuro, se as crianças que em sodoma morreram queimadas não tivessem nascido, não teriam tido que soltar aqueles gritos que ouvi enquanto o fogo e o enxofre iam caindo do céu sobre as suas cabeças inocentes, A culpa tiveram-na os pais, disse um dos anjos, Não era razão para que os filhos tivessem de padecer por ela, O erro é crer que a culpa terá de ser entendida da mesma maneira por deus e pelos homens, disse um dos anjos, No caso de sodoma alguém a teve, e esse foi um deus absurdamente  apressado que não quis perder tempo a apartar para o castigo somente aqueles que, segundo os seus critérios, andavam a praticar o mal, além disso, anjos, onde é que nasceu essa peregrina ideia de que deus, só por ser deus, deve governar a vida íntima dos seus crentes, estabelecendo regras, proibições, interditos e outras patranhas do mesmo calibre, perguntou caim, Isso não sabemos, disse um dos anjos, Destas coisas, o que nos dizem é quase nada, a bem dizer só servimos para os trabalhos pesados, acrescentou o outro em tom de queixa, quando for a altura de levantar a barca e levá-la para o mar, podes apostar já que não verás por aqui nem serafins, nem querubins, nem tronos, nem arcanjos, Não me admira, começou caim a dizer, mas a frase ficou-lhe no ar, suspensa, enquanto uma espécie de vento lhe açoitava os ouvidos e de repente se encontrou no interior de uma tenda. Havia um homem deitado, nu, e esse homem era noé a quem a embriaguez submergia no mais profundo dos sonos. Havia outro homem que com ele estava a ter trato carnal e esse homem era cam, o seu filho mais novo, pai, por sua vez, de canaã. Cam viu pois nu o seu próprio pai, maneira elíptica esta, mais ou menos discreta, de descrever o que de inconveniente e reprovável ali se estava a passar. O pior, porém, foi ter ido depois o filho faltoso contar tudo aos irmãos, sem e jafet, que estavam fora da tenda, mas estes, compassivos, pegaram num manto e, levando-o, aproximaram-se de costas viradas para o pai, de modo a não o verem nu. Quando noé acordar e perceber o insulto que lhe havia sido feito por cam, dirá, fazendo cair sobre o filho dele a maldição que ferirá todo o povo cananeu, Maldito seja canaã, ele será o último dos escravos dos seus irmãos, abençoado seja sem pelo senhor meu deus, que canaã seja seu escravo, que deus faça crescer jafet, que is seus descendentes habitem com os de sem e que canaã lhes sirva de escravo. Caim já ali não estará, o mesmo rápido sopro de vento o trouxe à porta da arca no preciso momento em que se vinham acercando noé e o seu filho cam com as últimas notícias, Partimos amanhã, disseram, os animais já estão todos na arca, os comestíveis armazenados, podemos levantar ferro.
XXX

Nenhum comentário:

Postar um comentário