sexta-feira, 30 de novembro de 2012

CAIM (Capítulo X°)





 Caim não sabe onde se encontra, não percebe se o jumento o estará levando por uma das tantas vias do passado ou por algum estreito carreiro do futuro, ou se, simplesmente, vai andando por um qualquer outro presente que ainda não se deu a conhecer. Olha o chão seco, os cardos espinhosos, as raras ervas torriscadas pelo sol, mas chão seco, cardos e ervas queimadas é o que mais se vê por estas inóspitas paisagens. Caminhos à vista, nem sinal deles, desde aqui poderia chegar a todo o lado ou a lado nenhum, como destinos que se renovassem ou algum outro que tivesse decidido esperar melhor ocasião para manifestar-se. O jumento pisa firme, parece ele que sabe aonde se dirige, como se seguisse um rastro, aquele sempre cofuso ir e vir de marcas de sandálias, cascos ou pés descalços que é preciso observar com atenção para não estar a voltar para trás quem imaginasse avançar, sem desvios, directo à estrela polar. Caim, que no passado, além de incipiente agricultor, foi pisador de barro, é agora um diligente rastreador que, mesmo quando indeciso, tenta não perder o fio de quem por aqui passou antes, tivesse ou não achado um lugar onde deter-se e aí dizer consigo mesmo, Cheguei. Bons olhos terá caim, não duvidamos, mas não tão bons que neste momento lhe permitam reconhecer, entre os múltiplos sinais, as próprias marcas dos seus pés, a depressão causada por um calcanhar ou o arrastamento provocado por uma perna cansada. Caim passou por aqui, isso sim, é certo. Vai descobri-lo quando de súbito lhe aparecer o que resta da casa arruinada onde em tempos se resguardou da chuva e onde não poderia abrigar-se hoje porque o que ainda havia de tecto caiu já, agora não se veem mais que uns troços de muros esboroados que, com a passagem de mais dois ou três invernos, definitivamente se confundirão com o chão onde se erguiam, terra eu tornou à terra, pó que tornou ao pó. A partir daqui o jumento só irá aonde o queiram levar, o tempo de ser ele o único guia nesta viagem acabou, ou não, se o deixassem solto, imaginemo-lo, a lembrança da antiga estrebaria talvez fosse suficientemente poderosa para o conduzir por seu pé à cidade donde partiu carregando este homem ao lombo há não se sabe quantos anos. No que se refere a caim, é natural que não se tenha esquecido do caminho para chegar ao palácio. Quando ali entrar, estará em seu poder mudar de rumo, abandonar os outros presentes que o esperam antes do hoje e depois do hoje, e regressar a este passado por um dia que seja, ou dois, talvez mais, mas não para o todo o que lhe falte viver, pois o seu destino ainda está por cumprir, como a seu tempo se saberá. Caim tocou de leve com os calcanhares as ilhargas do jumento, lá adiante está o caminho que o levará à cidade, seja qual for a espécie de vinho que lhe tiverem servido no copo, à sua espera, é preciso bebê-lo. Vista de perto, a cidade não parece ter aumentado, são as mesmas casas atarracadas sob o seu próprio peso, são os mesmos adobes, só o palácio emerge da massa parda das velhas construções, e, como era de prever, de acordo com as regras destas narrativas, o mesmo velho está à entrada da praça, ao virar da esquina, com as mesmas ovelhas atadas ao mesmo baraço. Por onde tens andado, voltaste para ficar, perguntou ele a caim, E tu, ainda por cá andas, ainda não morreste, retrucou caim, Não morrerei enquanto estas ovelhas viverem, devo ter nascido para as guardar, para as impedir de comer o baraço que as ata, Outros nasceram para pior, Falas de ti mesmo, Talvez te responda noutra ocasião, agora estou com pressa, Tens alguém à espera, perguntou o velho, Não sei, Ficarei aqui para ver se sais ou ficas no palácio, Deseja-me sorte, Para desejar-te sorte teria de saber primeiro o que para ti é o melhor, Coisa quem nem eu próprio sei, Sabes que lilith tem um filho, perguntou o velho, É natural, estava grávida quando parti, Pois é verdade, tem um filho, Adeus, Adeus. Sem precisar de que lho ordenassem, o jumento avançou para a porta do palácio e aí se deteve. Caim deixou-se escorregar da albarda, entregou a arreata a um escravo que tinha acudido e perguntou-lhe, Está alguém no palácio, Sim, está a senhora, Vai dizer-lhe que chegou um visitante, Abel, chamas-te abel, murmurou o escravo, lembro-me bem de ti, Vai, então. O escravo subiu a escada e voltou daí a pouco acompanhado por um rapazinho que deveria ter uns nove ou dez anos, É o meu filho, pensou caim. O escravo fez-lhe sinal para seguir. No cimo da escada estava lilith, tão bela, tão voluptuosa como antes, Adivinhei que virias hoje, disse, por isso me vesti assim, para que gostasses de me ver, Quem é este rapazinho, O seu nome é enoch e é teu filho. Caim subiu os poucos degraus que o separavam de lilith, agarrou as mãos que ela lhe estendia e, em um momento, apertava-a nos seus braços. Ouviu-a suspirar, sentiu que todo o seu corpo estremecia, e, quando lilith disse, Voltaste, só pôde responder, Sim, voltei. A um sinal, o escravo levou o rapaz, deixando-os sós. Vem comigo, disse ela. Entraram na antecâmara e caim reparou que ainda estavam ali o catre e o banco de porteiro que lhe haviam sido destinados dez anos antes, Como soubeste que vinha hoje se eu próprio me encontrei nestes sítios sem dar por isso, Nunca me perguntes como sei eu o que digo que sei porque não poderia responder-te, esta manhã, quando acordei, disse em voz alta, Voltará hoje, disse-o para que tu ouvisses, e foi verdade, aqui estás, mas não penso perguntar-te por quanto tempo, Acabei agora mesmo de chegar, não é a altura de falar em partir, Por que vieste, É uma história comprida que não se pode contar assim, entre duas portas, Então virás contá-la na cama. Entraram no quarto, onde nada parecia haver mudado, como se a memória de caim, durante a longa separação, não tivesse modificado as recordações, uma por uma, para não ter que surpreender-se agora. Lilith começou a despir-se, e o tempo não parecia haver passado por ela. Foi então que caim perguntou, E noah, Morreu, disse ela com simplicidade, sem que a voz lhe tremesse nem o olhar se desviasse, Mataste-o, tornou caim a perguntar, Não, respondeu lilith, prometi-te que não o mataria, morreu da sua natural morte, Melhor assim, disse caim, A cidade também se chama enoch, lembrou lilith, Como o meu filho, Sim, E quem foi que lhe deu o nome, A quem, À cidade, O nome pôs-lho noah, E porque deu ele à cidade o nome de um filho que não era seu, Nunca mo disse, e eu nunca lho perguntei, respondeu lilith, já deitada, E noah, morreu quando, perguntou caim, Há três anos, Quer dizer que durante sete anos, aos olhos de toda a gente, foi ele o pai de enoch, Fazia-se de conta, todos os daqui sabiam que eras tu o pai, ainda que é certo que, com o tempo, só as pessoas mais velhas recordavam, seja como for, noah não o teria tratado melhor se fosse um filho seu, Nem parece o homem que eu conheci, é como se fossem duas pessoas, Ninguém é uma pessoa só, tu, caim, és também abel, E tu, Eu sou todas as mulheres, todos os nomes delas são meus, disse lilith, e agora vem, vem depressa, vem dar-me notícias do seu corpo, Em dez anos não conheci outra mulher, disse caim enquanto se deitava, Nem eu outro homem, disse lilith, sorrindo com malícia, É verdade o que dizes, Não, estiveram aqui nesta cama alguns, não muitos porque não os podia suportar, a minha vontade era cortar-lhes o pescoço quando descarregavam, Agradeço-te a franqueza, A ti nunca te mentiria, disse lilith, e abraçou-se a ele.

Tranquilizados os espíritos, compensados da longa separação os corpos com juros altíssimos, chegou o momento de pôr o passado em ordem. Lilith tinha perguntado, Por que vieste, mas ele já havia declarado antes que não sabia como chegara ali, por isso ela modificou a interrogação, Que andaste a fazer durante todos estes anos, foi a pergunta e caim respondeu, Vi coisas que ainda não aconteceram, Queres dizer que adivinhaste o futuro, Então não lhe chamemos futuro, chamemos-lhe outro presente, outros presentes, Não percebo, Também a mim ao princípio me custou a compreender, mas depois vi que, se está lá, e realmente estava, era num presente que me encontrava, o que havia sido futuro tinha deixado de ser, o amanhã era agora, Ninguém vai acreditar em ti, Não penso dizer isto a mais ninguém, O teu mal é que não trazes contigo nenhuma prova, um objecto qualquer desse outro presente, Não foi um presente, mas vários, Dá-me um exemplo. Então caim contou a lilith o caso de um homem chamado abraão a quem o senhor ordenara que lhe sacrificasse o próprio filho, depois o de uma grande torre com a qual os homens queriam chegar ao céu e que o senhor com um sopro deitou abaixo, logo o de uma cidade em que os homens preferiam ir para a cama com outros homens e do castigo de fogo e enxofre que o senhor tinha feito cair sobre eles sem poupar as crianças, que ainda não sabiam o que iriam querer no futuro, a seguir o de um enorme ajuntamento de gente no sopé de um monte a que chamavam sinai e a fabricação de um bezerro de ouro que adoraram e por isso morreram muitos, o da cidade de madian que se atreveu a matar trinta e seis soldados de um exército denominado israelita e cuja população foi exterminada até à última criança, o de uma outra cidade, chamada jericó, cujas muralhas foram deitadas abaixo pelo clangor de trombetas feitas de cornos de carneiro e depois destruído tudo o que tinha dentro, incluindo, além dos homens e mulheres, novos e velhos, também os bois, as ovelhas e os jumentos. Foi isto o que eu vi, rematou caim, e muito mais para que não me chegam as palavras, Crês realmente que o que acabas de contar acontecerá no futuro, perguntou lilith, Ao contrário do que costuma dizer-se, o futuro já está escrito, o que nós não sabemos é ler-lhe a página, disse caim enquanto perguntava a si mesmo aonde teria ido buscar revolucionária ideia, E que pensas do facto de teres sido escolhido para viveres essa experiência, Não sei se fui escolhido, mas algo sei, sim, algo devo ter aprendido, Quê, Que o nosso deus, o criador do céu e da terra, está rematadamente louco, Como te atreves a dizer que o senhor deus está louco, Porque só um louco sem consciência dos seus actos admitiria ser o culpado directo da morte de centenas de milhares de pessoas e comportar-se depois como se nada tivesse sucedido, salvo, afinal, que não se trate de loucura, a involuntária, a autêntica, mas de pura e simples maldade, Deus nunca poderia ser mau ou não seria deus, para mau temos o diabo, O que não pode ser bom é um deus que dá ordem a um pai para que mate e queime na fogueira o seu próprio filho só para provar a sua fé, isso nem o mais maligno dos demônios o mandaria fazer, Não te reconheço, não és o mesmo homem que dormiu antes nesta cama, disse lilith, Nem tu serias a mesma mulher se tivesses visto aquilo que vi, as crianças de sodoma carbonizadas pelo fogo do céu, Que sodoma era essa, perguntou lilith, A cidade onde os homens preferiam os homens às mulheres, E morreu toda a gente por causa disso, Toda, não escapou uma alma, não houve sobreviventes, Até as mulheres que esses homens desprezavam, tornou lilith a perguntar, Sim, Como sempre, às mulheres, de um lado lhes chove, do outro lhes faz vento, Seja como for, os inocentes já vêm acostumados a pagar pelos pecadores, Que estranha ideia do justo parece ter o senhor, A ideia de quem nunca deve ter tido a menor noção do que possa vir a ser uma justiça humana, E tu, tem-na, perguntou lilith, Sou apenas caim, aquele que matou o irmão e por esse crime foi julgado, Com bastante benignidade, diga-se de passagem, observou lilith, Tens razão, seria o último a negá-lo, mas a responsabilidade principal teve-a deus, essa a que chamamos senhor, Não estarias aqui se não tivesses matado abel, pensemos egoistamente que uma coisa deu para a outra, Vivi o que tinha de viver, matar o meu irmão e dormir contigo na mesma cama são tudo efeitos da mesma causa, Qual, Estarmos nas mais de deus, ou do destino, que é o seu outro nome, E agora, que tencionas fazer perguntou lilith, Depende, Depende de quê, Se alguma vez chego a ser dono da minha própria pessoa, se acabar-se este passar de um tempo a outro sem que a minha vontade tenha sido para aí chamada, farei aquilo a que costuma chamar-se uma vida normal, como os demais, Não como toda a gente, casarás comigo, já temos o nosso filho, esta é a nossa cidade, e eu ser-te-ei fiel como a casca da árvore ai tronco a que pertence, Mas, se não for assim, se o meu fado continua, então em qualquer lugar em que me encontre estarei sujeito a mudar de um tempo para outro, nunca estaremos mais certos, nem tu nem eu, do dia de amanhã, além disso, Além disso, quê perguntou lilith, Sinto que o que me acontece deve ter um significado, um sentido qualquer, sinto que não devo parar a meio do caminho sem descobrir do que se trata, Isso significa que não ficarás, que partirás um dia destes, disse lilith, Sim, creio que assim será, se nasci para viver algo diferente, tenho de saber quê e para quê, Desfrutemos então o tempo que nos resta, vem para mim, disse lilith. Abraçaram-se aos beijos, agarrados rolaram na cama de um lado para outro, e quando caim se encontrou sobre lilith e se preparava para a penetrar, ela disse, A marca da tua testa está maior, Muito maior, perguntou caim, Não muito, Às vezes penso que ela irá crescendo, crescendo, se alastrando por todo o corpo e me converterei em negro, Era o que ainda me faltava, disse lilith soltando uma gargalhada, a que imediatamente sucedeu um gemido de prazer quando ele, num só impulso, a cravou até ao fundo.

Tinham passado apenas duas semanas quando caim desapareceu. Havia ganho o hábito de fazer demorados passeios a pé pelos arredores da cidade, não porque estivesse necessitando de sol e ar livre como da outra vez, benesses naturais que efectivamente não lhe tinham faltado nos últimos dez anos, mas para escapar ao ambiente pesado do palácio, onde, além das horas passadas na cama com lilith, nada mais tinha que fazer, a não ser, sem resultados que valha a pena mencionar, trocar umas quantas frases com o desconhecido que, para ele, era enoch, o seu filho.

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