segunda-feira, 12 de novembro de 2012

CAIM (Capítulo V°)




Caim já entrou, já dormiu na cama de lilith, e, por mais incrível que nos pareça, foi a sua própria falta de experiência de sexo que o impediu de se afogar no vórtice de luxúria que num só instante arrebatou a mulher e a fez voar e gritar como possessa. Rangia os dentes, mordia a almofada, logo o ombro do homem, cujo sangue sorveu. Aplicado, caim esforçava-se sobre o corpo dela, perplexo por aqueles desgarros de movimentos e vozes, mas, ao mesmo tempo, um outro caim que não era ele observava o quadro com curiosidade, quase com frieza, a agitação irreprimível dos membros, as contorções do corpo dela e do seu próprio corpo, as posturas que a cópula, ela mesma, solicitava ou impunha, até ao acme dos orgasmos. Não dormiram muito nessa primeira noite os dois amantes. Nem na segunda, nem na terceira, nem em todas as que se seguiram. Lilith era insaciável, as forças de caim pareciam inesgotáveis, insignificante, quase nulo, o intervalo entre duas erecções e respectivas ejaculações, bem poderia dizer-se que estavam, um e outro, no paraíso do Alá que há-de ser. Numa noite dessas, noah, o senhor da cidade e marido de lilith, a quem um escravo de confiança levara a notícia de que algo extraordinário se passava ali, entrou na antecâmara. Não era a primeira vez que o fazia. Marido consentidor como os que mais o têm sido, noah, em todo o tempo, como é costume dizer-se, de vida em comum, havia sido incapaz de fazer um filho à mulher e fora justamente a consciência desse contínuo desaire, e talvez também a esperança de que lilith acabasse por engravidar de um amante ocasional e lhe desse finalmente um filho a quem pudesse chamar herdeiro, que o havia levado a adoptar, quase sem se aperceber, essa atitude de condescendência conjugal que, com o tempo, viria a tornar-se em cômoda maneira de viver, só perturbada pelas raríssimas vezes em que lilith, movida pelo que imaginamos ser a tão falada compaixão feminina, decidia ir ao quarto do marido para um fugaz e insatisfatório contacto que a nenhum dos dois comprometia, nem a ele para exigir mais do que lhe era dado, nem a ela para lhe reconhecer esse direito. Nunca, porém, lilith permitiu a noah que entrasse no seu quarto. neste momento, apesar da porta fechada, a veemência das expansões eróticas dos dois parceiros atingia o pobre homem como sucessivas bofetadas, dando lugar, nele, ao nascimento súbito de um sentimento que não havia experimentado antes, um ódio desmedido ao cavaleiro que montava a égua lilith e a fazia relinchar como nunca. Mato-o, disse consigo noah, sem pensar nas consequências do acto, por exemplo, como iria reagir lilith se lhe matassem o amante preferido. Mato-os, insistia noah, ampliando agora o seu propósito, mato-o a ele e mato-a a ela. Sonhos, fantasias, delírios, noah não matará ninguém e terá ele próprio a sorte de escapar à morte sem fazer nada por isso. Do quarto já não chega agora qualquer som, mas isso não quer dizer que a festa dos corpos tenha terminado, os músicos só estão a descansar um pouco, não tardará que a orquestra ataque o baile seguinte, aquele em que a exaustão sucederá, até à noite seguinte, ao violento paroxismo final. Noah já se retirou, leva os seus projectos de vingança, que acaricia como se afagasse o corpo inacessível de lilith. Veremos como acabará tudo isto.

Depois do que aí ficou descrito, é natural que a alguém lhe ocorra perguntar se caim não andará cansado, espremido até os tutanos pela insaciável amante. Cansado está, espremido também, e pálido como se estivesse à beira de extinguir-se-lhe a vida. É certo que a palidez não é mais que a consequência da falta de sol, da privação do benefícioso ar livre que faz crescer as plantas e doura a pele da gente. De todo o modo, quem tivesse visto este homem antes de haver entrado no quarto de lilith, todo o seu tempo dividido entre a antecâmara e a cópula, sem dúvida diria, repetindo, sem o saber, as palavras do olheiro dos alvenéis, Está uma sombra, uma verdadeira sombra. Disto mesmo acabou por dar-se conta a principal responsável da situação, Andas com má cara, disse ela, Estou bem, respondeu caim, Estarás, mas a tua cara diz o contrário, Não tem importância, Tem-na, a partir de agora darás um passeio todos os dias, levas um escravo para que ninguém te importune, quero ver-te com a cara que tinhas quando te vi na pisa do barro, Não tenho mais vontade que a tua, senhora. O escravo acompanhante foi escolhido pela própria lilith, mas o que ela não sabia é que se tratava de um agente duplo que, embora ao seu serviço do ponto de vista administrativo, recebia ordens de noah. Temamos portanto o pior. Nas primeiras saídas o passeio não foi perturbado pro qualquer incidente, o escravo sempre um passo atrás de caim, sempre atento ao que ele dizia, sugerindo o que achava ser o melhor percurso fora dos muros da cidade. Não havia motivos para preocupações. Até que um dia elas se apresentaram todas juntas na figura de três homens que lhes saltaram ao caminho e com quem, como caim logo percebeu, o escravo traidor fazia quadrilha. Que querem, perguntou caim. Os homens não responderam. Todos vinham armados, de espada aquele que parecia ser o chefe, de punhais os outros. Que querem, tornou a perguntar caim. A resposta foi-lhe dada pelo gládio de repente desembainhando e apontado ao seu peito, Matar-te, disse o homem e avançou, Porquê, perguntou caim, Porque os teus dias foram contados, Não poderás matar-me, disse caim, a marca que levo na testa não to permitirá, Que marca, perguntou o homem que, pelos vistos, era míope, Esta, aqui, indicou caim, Ah, sim, já vejo, o que não vejo é como pode esse sinal evitar que eu te mate, Não é sinal, mas marca, E quem ta fez, tu mesmo, perguntou o outro, Não, o senhor, Que senhor, O senhor deus. O homem deu uma gargalhada a que os restantes, incluindo o escravo infiel, fizeram animado coro. Os que riem chorarão, disse caim, e, para o chefe do grupo, Tens família, perguntou, Para que queres saber, Tens filhos, mulher, pai e mãe vivos, outros parentes, Sim, mas, Não precisarás matar-me para que eles sofram castigo, interrompeu caim, a espada que tens na mão já os condenou, palavra do senhor, Não julgues que com essas mentiras te vais salvar, gritou o homem e avançou de espada em riste. No mesmo instante a arma transformou-se numa cobra que o homem sacudiu da mão horrorizado, Aí tens, disse caim, sentiste uma cobra e era uma espada. Baixou-se e tomou a arma pelo punho, Poderia matar-te agora mesmo, que ninguém viria em teu auxílio, disse, os teus companheiros fugiram, o traidor que vinha comigo também, Perdoa-me, implorou o homem pondo-se de joelhos, Só o senhor poderia perdoar-te se quisesse, eu não, vai-te, terás em casa o pago da tua vileza. O homem afastou-se de cabeça baixa, chorando, arrepelando-se, mil vezes repeso de haver escolhido a profissão de salteador de caminhos na variante de assassino. Repetindo os passos que havia dado na primeira vez, caim voltou à cidade. Tal como então, ao virar uma esquina encontrou-se de frente com o velho e as duas cabras atadas com um baraço. Mudaste muito, não pareces nada o vagabundo que veio do poente nem um pisador de barro, disse ele, Sou porteiro, respondeu caim, e prosseguiu seu caminho, Porteiro de que porta, perguntou o velho em tom que queria ser de escárnio, mas soava de despeito, Se o sabes, não te canses a perguntar, Faltam-me os pormenores, nos pormenores é que está o sal, Enforca-te com eles, baraço já o tens, rematou caim, será a melhor maneira de não voltar a ver-te. O velho ainda gritou, Ver-me-ás até ao fim dos teus dias, Os meus dias não terão fim, respondeu caim já longe, entretanto cuida que as ovelhas não comam o baraço, Para isso estou, mas elas não pensam noutra coisa.

Lilith não se encontrava no quarto, estaria na açoteia, nua como era seu costume, a tomar o sol. Sentado no seu único banco, caim fez um balanço, uma revisão do que havia sucedido. Era evidente que o escravo o levara propositadamente por aquele caminho ao encontro dos bandidos que faziam a espera, alguém, portanto, teria elaborado o plano para lhe acabar com a vida. Adivinhar quem fosse o que poderemos hoje designar como autor intelectual do frustrado atentado não era nada difícil. Noah, disse caim, foi ele, ninguém mais no palácio e na cidade teria interesse no meu desaparecimento. Foi neste momento que lilith entrou na antecâmara, Durou pouco o teu passeio, disse. Uma fina camada de suor lhe fazia brilhar a pele dos ombros, estava apetitosa como uma romã madura, como um figo a que já se lhe houvesse rachado a casca e deixasse sair a primeira gota de mel. A caim ainda lhe passou pela cabeça arrastá-la para a cama, mas desistiu da ideia, havia neste momento assuntos sérios a tratar, talvez mais tarde. Tentaram matar-me, disse, Matar-te, quem, perguntou lilith, sobressaltada, O escravo que mandaste comigo e uns bandidos contratados, Que se passou, conta-me, O escravo levou-me por um caminho fora da cidade, o assalto foi aí, Fizeram-te mal, feriram-te, Não, Como conseguiste livrar-te deles, perguntou lilith, A mim não se me pode matar, disse caim serenamente, Serás tu a única pessoa a crê-lo neste mundo, Assim é. Houve um silêncio que caim interrompeu, Não me chamo abel, disse, o meu nome é caim, Gosto mais desse que do outro, disse lilith fazendo um esforço para manter a conversa num tom ligeiro, propósito que caim desfez no instante seguinte, Abel era o nome do meu irmão, a quem matei porque o senhor me havia preterido em favor dele, tomei o seu nome para ocultar a minha identidade, Aqui não nos importaria nada que fosses caim ou abel, a notícia do teu crime nunca cá chegou, Sim, hoje compreendo isso, Conta-me então o que se passou, Não tens medo de mim, não te repugno, perguntou caim, És o homem que escolhi para a minha cama e com quem estarei deitada daqui a pouco. Então caim abriu a arca dos segredos e relatou p dramático sucesso com todos os pormenores, não esquecendo as moscas nos olhos e na boca de abel, também as palavras ditas pelo senhor, o enigmático compromisso por ele assumido de o proteger de uma morte violenta, Não me perguntes, disse caim, por que o fez, não mo disse e não creio que seja coisa que se possa explicar, A mim basta-me que estejas vivo e nos meus braços, disse lilith, Vês em mim um criminoso a que nunca se poderá perdoar, perguntou caim, Não, respondeu ela, vejo em ti um homem a quem o senhor ofendeu, e, agora que já sei como realmente te chamas, vamos para a cama, arderei aqui mesmo de desejo se não me acodes, foste o abel que conheci entre os meus lençóis, agora és o caim que me falta conhecer. Quando o desvario das repetidas e variadas penetrações deu lugar à lassidão, ao abandono total dos corpos, lilith disse, Foi noah, Creio que sim, creio que terá sido noah, concordou caim, não encontro outra pessoa no palácio e na cidade que pudesse desejar, tanto como ele, ver-me morto, Quando nos levantarmos, disse lilith, chamá-lo-ei aqui, ouvirás o que tenho para lhe dizer. Dormiram um pouco para dar satisfação aos membros cansados, acordaram quase ao mesmo tempo e lilith, já a pé, disse, Deixa-te estar deitado, ele não entrará. Chamou uma escrava, enviou recado a noah para lhe vir falar. Sentou-se na antecâmara à espera e, quando o marido entrou, disse sem preâmbulos, Mandarás matar o escravo que me deste para acompanhar caim no seu passeio, Quem é caim, perguntou noah surpreendido pela novidade, Caim foi abel, agora é caim, aos homens que estiveram na emboscada matá-los-ás também, Onde está caim, já que passou a ser esse o seu nome, A salvo, no meu quart. O silêncio tornou-se palpável. Por fim, noah disse, Não tive nada que ver com o que dizes ter acontecido, Cuidado, noah, mentir é a pior das cobardias, Não estou a mentir, És cobarde e estás a mentir, foste tu quem industriou o escravo sobre o que deveria fazer, e onde e como, esse mesmo escravo que, aposto, te tem servido de espião dos meus actos, ocupação em verdade escusada porque o que faço, faço-o às claras, Sou teu marido, deverias respeitar-me, É possível que tenhas razão, realmente deverias respeitar-te, Então que estás à espera, perguntou noah fingindo uma irritação que, apavorado pela acusação, estava longe de sentir, Não estou à espera de nada, não te respeito, simplesmente, Sou mau amante, não te fiz o filho que querias, é isso, perguntou ele, Poderias ser um amante de primeira classe, poderias ter-me feito não um filho, mas dez, e, ainda assim, não te respeitaria, Porquê, Vou pensar no assunto, logo que tiver descoberto as razões por que não sinto o menor respeito por ti mandar-te-ei chamar, prometo que serás o primeiro a sabê-las, e agora peço-te que te retires, estou fatigada, preciso de descansar. Noah já se afastava, mas ela ainda lançou, Uma coisa mais, quando tiveres caçado esse maldito traidor, e espero que não tardes demasiado, é um conselho que te estou a dar, avisa-me para que vá assistir à sua morte, os outros não me interessam, Assim farei, disse noah e pôs o pé no limiar da porta, ainda a tempo de ouvir as últimas palavras da mulher, E, em caso de haver tortura, quero estar presente. Regressada ao quarto, lilith perguntou a caim, Ouviste, Sim, Que te pareceu, Não há dúvida, foi ele quem mandou matar-me, nem sequer foi capaz de reagir como o faria um inocente. Lilith meteu-se na cama, mas não se chegou a caim. Estava deitada de costas, com os olhos muito abertos fitando o tecto, e de repente disse, Tive uma ideia, Qual, Matar noah, Isso é loucura, um disparate sem pés nem cabeça, protestou caim, expulsa esse absurdo do teu ânimo, por favor, Absurdo, porquê, ficaríamos livres dele, casaríamos, tu serias o novo senhor da cidade e eu a tua rainha e a tua escrava preferida, aquela que beijaria o chão por onde tu passasses, aquela que, se fosse necessário, receberia nas suas mãos as tuas fezes, E quem o mataria, Tu, Não, lilith, não mo peças, não mo ordenes, já tenho a minha parte de assassínios, Não o farias por mim, não me amas, perguntou ela, entreguei-te o meu corpo para que o gozasses sem conta, nem peso, nem medida, para que desfrutasses dele sem regras nem proibições, abri-te as portas do meu espírito antes trancadas, e recusas-te a fazer algo que te peço e que nos traria a liberdade plena, Liberdade, sim, e remorso também, Não sou mulher para remorsos, isso é coisa para fracos, para débeis, eu sou lilith. E eu sou apenas um caim qualquer que veio de longe, um matador do seu irmão, um pisador de barro que, sem ter feito nada para o merecer, teve a sorte de dormir na cama da mulher mais bela e mais ardente do mundo, a quem ama, quer e deseja em cada poro do seu corpo, Não mataremos então noah, perguntou lilith, Se estás tão empenhada nisso, manda um escravo, Não desprezo tanto a noah ao ponto de o mandar matar por um escravo, Escravo sou eu e querias que o matasse, Seria diferente, não é escravo aquele que se deita na minha cama, ou talvez o seja, mas de mim e do meu corpo, E por que não o matas tu, perguntou caim, Creio que, apesar de tudo, não seria capaz, Homens que matam mulheres é coisa de todos os dias, matando-o tu talvez inaugurasses uma nova época, Outras que o façam, eu sou lilith, a louca, a desvairada, mas os meus erros e os meus crimes por aí se ficam, Então deixemo-lo viver, já lhe bastará o castigo de saber que nós sabemos que me quis matar, Abraça-me, calca-me aos teus pés, pisador de barro. Caim abraçou-a, mas entrou nela suavemente, sem violência, com uma doçura inesperada que quase a levou às lágrimas. Duas semanas depois lilith anunciou que estava grávida.

Qualquer dia que a paz social e a paz doméstica reinavam finalmente no palácio, a todos envolvendo no mesmo amplexo fraternal. Não era assim, decorridos alguns dias caim havia chegado à conclusão de que, agora que lilith estava à espera de um filho, o seu tempo terminara. Quando a criança viesse ao mundo seria para toda a gente o filho de noah, e se ao princípio não iriam faltar as mais justificadas suspeitações e murmurações, o tempo, esse grande igualador, se encarregaria de limiar umas e outras, sem contar que os futuros historiadores tomariam a seu cuidado eliminar da crônica da cidade qualquer alusão a um certo pisador de barro chamado abel, ou caim, ou como diabo fosse o seu nome, duvida esta que, só por si, já seria considerada razão suficiente para o condenar ao esquecimento, em definitiva quarentena, assim supunham eles, no limbo daqueles sucessos que, para tranquilidade das dinastias, não é conveniente arejar. Este nosso relato, embora não tendo nada de histórico, demonstra a que ponto estavam equivocados ou eram mal-intencionados os ditos historiadores, caim existiu mesmo, fez um filho à mulher de noah, e agora tem um problema para resolver, como informar lilith de que é seu desejo partir. Confiava que a condenação ditada pelo senhor, Andarás errante e perdido pelo mundo, pudesse convencê-la a aceitar sua decisão de ir-se. Afinal, foi menos difícil do que esperava, talvez também porque essa criança, formada por não mais que um punhado de células titubeantes, exprimisse já um querer e uma vontade, o primeiro efeito dos quais tivesse sido reduzir a louca paixão dos pais a um vulgar episódio de cama a que, como já sabemos, a história oficial nem sequer irá dedicar uma linha. Caim pediu a lilith um jumento e ela deu ordens para que lhe fosse entregue o melhor, o mais dócil, o mais robusto que houvesse nas estrebarias do palácio. E nisto se estava quando correu pela cidade a notícia de que o escravo traidor e seus comparsas haviam sido descobertos e presos. Felizmente para as pessoas sensíveis, dessas que sempre apartam os olhos dos espetáculos incômodos, sejam eles de que natureza forem, não houve interrogatórios nem torturas, o que talvez se tivesse devido à gravidez de lilith, pois, segundo a opinião de abalizadas autoridades locais, poderiam ser de mau agouro para o futuro da criança em gestação, não só o sangue que inevitavelmente se derramaria, mas também os desabalados gritos dos torturados. Disseram essas autoridades, em geral parteiras de longa experiência, que os bebês, dentro das barrigas das mães, ouvem tudo quanto se passa cá fora. O resultado foi uma sóbria execução por enforcamento perante toda a população da cidade, como um aviso, Atenção, isto é o mínimo que vos pode suceder a todos. De um balcão no palácio assistiram ao acto punitivo noah, lilith e caim, este como vítima do frustrado assalto. Foi notado que, ao contrário do que determinaria o protocolo, não era noah quem ocupava o centro do pequeno grupo, mas sim lilith, que desta maneira separava o marido do amante, como se dissesse que, embora não amando o esposo oficial, a ele se manteria ligada porque assim o parecia desejar a opinião pública e o necessitavam os interesses da dinastia, e que, sendo obrigada pelo cruel destino, Andarás errante e perdido pelo mundo, deixaria partir caim, a ele iria continuar unida pela sublime memória do corpo, pela recordação inapagável das fulgurantes horas que havia passado com ele, isto uma mulher nunca esquece, não como os homens, a quem tudo lhes escorre pela pele. Os cadáveres dos facinorosos ficarão pendurados ali mesmo onde se encontram até que deles não restem mais que os ossos, pois a sua carne é maldita, e a terra, se nela fossem sepultados, se revolveria em transe até vomitá-los, uma e muitas vezes. Nessa noite, lilith e caim dormiram juntos pela última vez. Ela chorou, ele abraçou-se a ela e chorou também, mas as lágrimas não duraram muito, daí a nada a paixão erótica tomava conta deles, e, governando-os, novamente os desgovernou até ao delírio, até ao absoluto, como se o mundo não fosse mais do que isto, dois amantes que um ao outro interminavelmente se devoravam, até que lilith disse, Mata-me. sim, talvez devesse ser este o fim lógico da história dos amores de caim e lilith, mas ele não a matou. Beijou-a longamente nos lábios, depois levantou-se, olhou-a uma vez mais e foi acabar a noite na cama do porteiro.
 
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