sexta-feira, 9 de novembro de 2012

CAIM (Capítulo IV°)




E, contudo, esse homem acossado que aí vai, perseguido pelos seus próprios passos, esse maldito, esse fratricida, teve bons princípios como poucos. Que o Dida sua mãe que tantas vezes o foi encontrar, sentado no chão úmido do horto, a olhar para uma pequena árvore recém-plantada, à espera de vê-la crescer. Tinha quatro ou cinco anos e queria ver crescer árvores. Então ela, pelos vistos mais imaginosa que o filho, explicou-lhe que as árvores são muito tímidas, só crescem quando não estamos a olhar para elas, É que lhes dá vergonha, disse-lhe um dia. Por alguns instantes caim permaneceu calado, a pensar, mas logo respondeu, Então não olhes, mãe, de mim não têm vergonha,estão habituadas. Prevendo já o que viria depois, a mãe apartou o olhar imediatamente e a voz do filho soou triunfal, Agora mesmo cresceu, agora mesmo cresceu, eu bem te tinha dito que não olhasses. Nessa noite, quando adão voltou do trabalho, eva, rindo, contou-lhe o que se tinha passado e o marido respondeu, Esse rapaz vai longe. Talvez fosse, sim, se o senhor não se tivesse atravessado no seu caminho. Ainda assim, longe bastante já ele ia, embora não no sentido que o pai lhe havia vaticinado. Arrastando os pés de cansaço, avançava por um descampado sem um arruinado casebre à vista ou outro sinal de vida, uma solidão desgarradora que o céu raso aumentava ainda mais pela ameaça de uma chuvarada iminente. Não teria onde recolher-se, a não ser debaixo de alguma árvore entre as poucas que, lentamente, à medida que caminhava, iam assomando a copa acima do horizonte próximo. As ramagens, em geral escassamente povoadas de folhas, não garantiam protecção digna desse nome. Foi então, ao caírem as primeiras gotas, que caim deu por que tinha a túnica suja de sangue. Pensou que talvez a mancha desaparecesse com a chuva, mas logo percebeu que não, melhor seria disfarçá-la com terra, ninguém seria capaz de suspeitar o que estaria debaixo, tanto mais que gente com túnicas sujas, enodoadas, era o que menos faltava por estes sítios. Começou a chover com força, em pouco tempo a túnica ficou empapada, da mancha de sangue não se percebia o menor vestígio, além disso, sempre poderia dizer, se fosse perguntado, que se tratava de sangue de cordeiro. Sim, disse caim em voz alta, mas abel não era nenhum cordeiro, era o meu irmão, e eu matei-o. Nesse momento não se lembrou de que havia dito ao senhor que ambos eram culpados do crime, mas a memória não tardou a ajudá-lo, por isso acrescentou, Se o senhor, que, segundo se diz, tudo sabe e tudo pode, tivesse feito sumir dali a queixada de burro, eu não teria matado abel, e agora podíamos estar os dois à porta da casa a ver a chuva cair, e abel reconheceria que realmente o senhor havia feito mal em não aceitar o único que eu tinha para lhe oferecer, as sementes e as espigas nascidas do meu afã e do meu suor, e ele ainda vivo e nós seríamos tão amigos como sempre tínhamos sido. Chorar o leite derramado não é tão inútil quanto se diz, é de alguma maneira instrutivo porque nos mostra a verdadeira dimensão da frivolidade de certos procedimentos humanos, porquanto se o leite se derramou, derramado está e só há que limpá-lo, e se abel foi morto de morte malvada é porque alguém lhe tirou a vida. Reflectir enquanto a chuva nos vem caindo em cima não é certamente a coisa mais cômoda do mundo, e foi talvez por isso que de um momento para o outro deixou de chover, para que caim pudesse pensar à vontade, seguir livremente o curso do seu pensamento até ver aonde ele o levaria. Não o chegaremos a saber nunca, nem nós, nem ele, o súbito aparecimento, como se saísse do nada, do que restava de um casebre distraiu-o das suas cogitações e dos seus pesares. Havia sinais de cultivo da terra ma arte de trás da casa, mas era evidente que os habitantes a tinham abandonado havia muito tempo, em todo o caso talvez não tanto se tivermos em conta a fragilidade intrínseca, a precária coesão dos materiais destas humildes moradas, que necessitam constantes reparações para não se irem abaixo em uma só estação. Se lhes falta uma mão cuidadosa, a casa dificilmente suportará a acção corrosiva das intempéries, em particular a chuva que empapa os adobes e o vento que a vai raspando como se estivesse forrado de lixa grossa. Algumas das paredes interiores haviam caído, o tecto desabara na sua maior parte, apenas sobrevivia um recanto relativamente protegido onde o exausto caminhante se deixou cair. Mal se podia ter nas pernas, não só pelo muito que tinha andado, mas também porque a fome começava a apertá-lo. O dia estava quase chegando ao fim, em pouco tempo seria noite. Vou ficar aqui, disse caim em voz alta, conforme era seu costume, como se precisasse de tranquilizar-se a si mesmo, ele a quem ninguém ameaçava neste momento, provavelmente nem o próprio senhor sabe onde ele se encontra. Apesar de o tempo não estar demasiado frio, a túnica molhada, pregada à pele, causava-lhe arrepios. Pensou que despindo-a mataria dois coelhos de uma cajadada, primeiro porque se acabariam os frios, e também porque a túnica, sendo feita de pano mais fino que grosso, em pouco tempo secaria. Assim fez e imediatamente se sentiu melhor. É verdade que não lhe pareceu bem ver-se nu como tinha vindo ao mundo, mas estava sozinho, sem testemunhas, sem ninguém que lhe pudesse tocar. Este pensamento provocou nele um novo arrepio, não o mesmo, não aquele que havia resultado directamente do contacto da túnica molhada, mas uma espécie de estremecimento na região do sexo, um ligeiro entumecimento que não tardou a desaparecer, como se tivesse se envergonhado de si mesmo. Caim sabia o que aquilo era, mas, apesar da sua juventude, não lhe prestava grande atenção ou simplesmente tinha medo de que dali lhe viesse mais mal do que bem. Enroscou-se no seu canto, juntando os joelhos com o peito, e assim adormeceu. O frio da madrugada fê-lo acordar. Estendeu a mão para apalpar a túnica, sentiu que ainda havia nela um resto de umidade, mas, apesar disso, decidiu-se a vesti-la, acabaria de secar no corpo. Não teve sonhos nem pesadelos, dormiu como se supõe que deverá dormir uma pedra, sem consciência, sem responsabilidade, sem culpa, porém, ao acordar, à primeira luz da manhã, as suas palavras foram, Matei meu irmão. Se os tempos fossem outros, talvez tivesse chorado, talvez se tivesse desesperado, talvez tivesse dado punhadas no peito e na cabeça, mas sendo as coisas o que são, praticamente o mundo, só agora inaugurado, faltam-nos ainda muitas palavras para que comecemos a tentar dizer quem somos e nem sempre daremos com as que melhor o expliquem, contentou-se com repetir as que havia dito até que deixaram de significar e não foram mais que uma série de sons inconexos, uns balbucios sem sentido. Foi então que percebeu que afinal havia sonhado, não um sonho precisamente, mas uma imagem, a sua, regressando a casa e encontrando o irmão no vão da porta, à sua espera. Assim o recordará durante toda a vida como se tivesse feito as pazes com o seu crime e não houvesse mais remorso que sofrer.
Saiu da barraca e aspirou profundamente o ar frio. O sol ainda não havia nascido, mas o céu já se iluminava de delicados tons coloridos, o suficiente para que a árida e monótona paisagem que tinha diante dos olhos, a esta primeira luz da manhã, aparecesse transfigurada, uma espécie de jardim do éden sem proibições. Caim não tinha qualquer motivo para orientar os seus passos numa direcção precisa, mas instintivamente buscou os sinais que deixara antes de se ter desviado para o casebre em que passara a noite. Era simples, afinal bastaria caminhar ao encontro do sol, para aquele lado, onde ele não tardaria a levantar-se. Aparentemente apaziguado pelas horas de sono, o estomago moderara as contracções, e seria bom que se mantivesse nessa disposição porque esperança de comida próxima não havia nenhuma, e se é certo que de vez em quando aparecia uma ou outra figueira, frutos não tinham, que não era tempo deles. Com um resto de energia que não imaginava possuir ainda, reiniciou a caminhada. O sol apareceu, hoje não choverá, é mesmo possível que venha a fazer calor. Ao cabo de não muito tempo, começou a sentir-se outra vez cansado. Tinha de encontrar algo de comer, ou então acabaria prostrado neste deserto, em poucos dias reduzido à ossamenta, que disso se encarregariam as aves carnívoras ou alguma matilha de cães asselvajados que até agora ainda não se tinha manifestado. Estava porém escrito que a vida de caim não se acabaria aqui, sobretudo porque não teria valido a pena que o senhor tivesse perdido tanto tempo para amaldiçoá-lo se era para vir morrer neste páramo. O aviso veio de baixo, dos fatigados pés que haviam tardado a perceber que o chão que pisavam era já outro, despido de vegetação, sem ervas ou cardos que embaraçassem o andar, enfim, para tudo deixar dito em poucas palavras, caim, sem saber como nem quando, tinha achado um caminho. Alegrou-se o pobre errante, pois é norma conhecida que uma via de trânsito, estrada, vereda ou carreiro, acabará por conduzir, mais cedo ou mais tarde, perto ou longe, a um lugar povoado onde talvez seja possível encontrar trabalho, tecto e um naco de pão que mate esta fome. Animado pelo súbito descobrimento, fazendo, como é costume dizer-se, das tripas coração, buscou forças onde já as não havia e acelerou o passo, sempre à espera de ver aparecer uma casa com sinais de vida, um homem montado num burro ou uma mulher com um cântaro à cabeça. Ainda teve de andar muito. O velho que finalmente lhe apareceu pela frente ia a pé e levava duas ovelhas atadas por um baraço. Caim saudou-o com as palavras mais cordiais do seu vocabulário, mas o homem não retribuiu, Que marca é essa que tens na testa, perguntou. Apanhado de surpresa, caim perguntou por sua vez, Qual marca, Essa, disse o homem, levando a mão à sua própria testa, É um sinal de nascença, respondeu caim, Não deves ser boa gente, Quem  to disse, como o sabes, respondeu caim imprudentemente, Como diz o refrão antigo, o diabo que te assinalou, algum defeito te encontrou, Não sou melhor nem pior que os demais, procuro trabalho, disse caim tratando de levar a conversa ao terreno que lhe convinha, Trabalho é o que por aqui não falta, que sabes tu fazer, perguntou o velho, Sou agricultor, Já temos agricultores em quantidade suficiente, por esse lado não irás conseguir nada, além disso vens sozinho, sem família, Perdi a minha, Perdeste-a como, Perdi-a simplesmente, e não há mais que contar, Sendo assim, deixo-te, não gosto da tua cara nem desse sinal que tens na testa. Já se afastava, mas caim ainda o reteve, Não vás, diz-me ao menos como chamam a estes sítios, Chamam-lhes terra de nod, e nod que quer dizer, Significa terra da fuga ou terra dos errantes, diz-me-tu, já que aqui chegaste, de quê andas fugindo e porquê és um errante, Não conto a minha vida ao primeiro que encontre no caminho com duas ovelhas atadas por um baraço, além disso não te conheço, não te devo respeito e não tenho por que responder às tuas perguntas, Voltaremos a ver-nos, Quem sabe, talvez não encontre trabalho aqui e tenha de buscar outro destino, Se és capaz de moldear um adobe e levantar uma parede, este é o teu destino, Aonde devo ir, perguntou caim, Segue por esta rua direto, ao fundo há uma praça, aí terás a resposta, Adeus, velho, Adeus, oxalá não chegues tu a sê-lo, Por baixo das palavras que dizes percebo que há outras que calas, Sim, por exemplo, essa tua marca não é de nascença, não a fizeste a ti próprio, nada do que disseste aqui é verdadeiro, Pode ser que a minha verdade seja para ti a mentira, Pode ser, sim, a dúvida é o privilégio de quem viveu muito, será por isso que não conseguiste convencer-me a aceitar como certezas o que para mim mais se parece a falsidade, Quem és tu, perguntou caim, Cuidado, rapaz, se me perguntas quem sou estarás a reconhecer o meu direito a saber quem és, Nada me obrigará a dizê-lo, Vai entrar nesta cidade, vai ficar aqui, mais cedo ou mais tarde tudo se saberá, Só quando tenha de ser e não por mim, Diz-me, ao menos, como te chamas, Abel é o meu nome, disse caim.
 Enquanto o falso abel vai andando em direcção à praça onde, no dizer do velho, se encontrará com o seu destino, atendamos à pertinentíssima observação de alguns leitores vigilantes, dos sempre atentos, que consideram que o diálogo que acabamos de registrar como acontecido não seria historicamente nem culturalmente possível, que um lavrador de poucas e já nenhumas terras, e um velho de quem não se conhece nem ofício nem benefício, nunca poderiam pensar e falar assim. Têm razão esses leitores, porém, a questão não está tanto em dispor ou não dispor de ideias e vocabulário suficiente para as expressar, mas sim na nossa própria capacidade de admitir, que mais não seja por simples empatia humana e generosidade intelectual, que um camponês das primeiras eras do mundo e um velho com duas ovelhas atadas a um baraço, apenas com o seu limitado saber e uma linguagem que ainda estaria a dar os primeiros passos, fossem impelidos pela necessidade a provar maneiras de expressar premonições e intuições aparentemente fora do seu alcance. Que eles não disseram aquelas palavras é mais do que óbvio, mas as dúvidas, as suspeitas, as perplexidades, os avanços e recuos da argumentação, estiveram lá. O que fizemos foi simplesmente passar ao português corrente o duplo e para nós irresolúvel mistério da linguagem e do pensamento daquele tempo. Se o resultado é coerente agora, também o seria na altura porque, ao final, almocreves somos e pela estrada andamos. Todos, tanto os sábios como os ignorantes.
Aí está a praça. Em verdade, ter chamado a isto uma cidade foi um exagero. Umas quantas casas térreas mal alinhadas, umas quantas crianças brincando não se sabe a quê, uns adultos que se movem como sonâmbulos, uns burros que parecem ir aonde querem e não aonde os conduzem, qualquer cidade que se preze desse nome nunca se reconhecerá na cena primitiva que temos diante dos olhos, faltam aqui os automóveis e os autocarros, os sinais de tráfego, os semáforos, as passagens subterrâneas, os anúncios nas frontarias ou nos telhados das casas, numa palavra, a modernidade, a vida moderna. Enfim, tudo se andará, o progresso, tal como virá a reconhecer-se mais tarde, é inevitável, fatal como a morte. E a vida. Ao fundo vê-se um edifício em construção, uma espécie de palácio rústico de pisos, nada que se pareça a mafra, a versalhes ou a buckinghan, em que se afadigam dezenas de pedreiros e ajudas, estes carregando adobes às costas, aqueles assentando-os em fieiras regulares. Caim nada entende de trabalhos de alta ou baixa alvenaria, mas, se o seu destino o está esperando aqui, por muito amargo que possa vir a ser, e isso sempre se sabe quando já é demasiado tarde para mudar, não lhe resta outro remédio senão enfrentá-lo. Como um homem. Disfarçando o melhor que podia a ansiedade e a fome que lhe faziam tremer as pernas, avançou para o estaleiro. Se por natural desconhecimento os operários o confundiram com um daqueles ociosos que em todas as épocas da humanidade se detiveram para ver trabalharem os outros, logo perceberam que quem ali estava era mais uma vítima da crise, um triste desempregado à busca de uma tábua de salvação. Quase sem que caim tivesse necessidade de dizer ao que ia, apontaram-lhe o olheiro que vigiava o grupo, Fala com ele, disseram. Caim foi, subiu ao poiso do observador e, depois das saudações usuais, disse que andava à procura de trabalho. O olheiro perguntou, Que sabes tu fazer, e caim respondeu, Desta arte, nada, sou lavrador, mas imagino que mais dois braços alguma serventia poderão ter, Dois braços, não, uma vez que não sabes nada do ofício de alvenel, mas dois pés, talvez, Dois pés, estranhou caim, sem compreender, Sim, dois pés, para pisar o barro, Ah, Espera aqui, vou falar com o capataz. Retirava-se já, mas ainda voltou a cabeça para perguntar, Como te chamas, Abel, respondeu caim. O olheiro não se demorou muito, Podes começar a trabalhar já, eu levo-te à pisa do barro, Quanto vou ganhar, perguntou caim, Os pisadores ganham todos por igual, Sim, mas quanto irei eu ganhar, Isso não é da minha conta, em todo o caso, se queres um bom conselho, não perguntes já, não está bem visto, primeiro terás de mostrar o que vales, e ainda te digo mais, não deverias perguntar nada, espera que te paguem, Se pensas que é o melhor, assim farei, mas não me parece justo, Aqui não convém ser impaciente, De quem é a cidade, como se chama, perguntou caim, Como se chama quem, a cidade ou o senhor dela, Ambos, A cidade, por assim dizer, ainda não tem nome, uns chamam-lhe de uma forma, outros de outra, de toda maneira estes sítios são conhecidos por terra de nod, Já o sabia, disse-mo um velho que encontrei ao chegar, Um velho com duas ovelhas atadas por um baraço, perguntou o olheiro, Sim, Aparece por aí às vezes, mas não vive cá, E o senhor daqui, é quem, O senhor é senhora e o seu nome é lilith, Não tem marido, perguntou caim, Creio ter ouvido dizer que se chama noah, mas ela é quem governa o rebanho, disse o olheiro e imediatamente anunciou, Aqui está a pisa do barro. Um grupo de homens com a túnica arregaçada com um nó acima do joelho dava voltas na grossa camada de mistura de barro, palha e areia, calcando-a com determinação de modo a tornar a massa tão homogênea quanto fosse possível na falta de meios mecânicos. Não era um trabalho que exigisse muita ciência, apenas boas e sólidas pernas e, podendo ser, um estômago confortado, o que, como sabemos, não era o caso de caim. Disse o olheiro, Podes entrar, só tens de fazer o que fazem os outros, Há três dias que não como, tenho medo de que se me quebrem as forças e caia aí no meio do barro, disse caim, Vem comigo, Não tenho com que pagar, Pagas depois, vem. Foram os dois a uma espécie de quiosque que havia a um lado da praça e onde se vendia comida. Para não sobrecarregar o relato com pormenores históricos dispensáveis passaremos sem exame a modesta ementa, cujos ingredientes, aliás, pelo menos em alguns casos, não saberíamos identificar. Os alimentos tinham ar de bem apaladados e caim comia que dava gosto vê-lo. Então o olheiro perguntou, Que sinal é esse que tens na testa, não parece natural, Pode ser que não pareça, mas já nasci com ele, Dá a impressão de que alguém te marcou, O velho das duas ovelhas também disse o mesmo, mas estava enganado, tal como tu estás, Se tu o dizes, Digo-o e repeti-lo-ei quantas vezes forem necessárias, mas preferiria que me deixassem em paz, se eu fosse coxo em vez de ter este sinal, suponho que não mo fariam notar constantemente, Tens razão, não tornarei a importunar-te, Não me importunas nada, tanto mais que tenho de agradecer-te a grande ajuda que me estás a dar, o emprego, esta comida que veio pôr-me a alma no seu lugar, e talvez ainda alguma coisa mais, Que coisa, Não tenho onde dormir, Isso resolve-se facilmente, arranjo-te uma esteira, há aí uma hospedaria, falarei com o dono, Não há dúvida de que és um bom samaritano, disse caim, Samaritano, perguntou o olheiro intrigado, isso que vem a ser, Não sei, saiu-me de repente, sem pensar, nem sei o que significa, Tens mais coisas na cabeça do que a tua aparência promete, Esta túnica imunda, Cedo-te uma das minhas, e essa passarás a usá-la para trabalhar, Pelo pouco que conheço deste mundo não deve haver muitos homens bons, foi uma sorte para mim encontrar aqui um deles, Acabaste, perguntou o olheiro num tom algo seco, como se aborrecessem os louvores, Não posso mais, não me lembro de alguma vez na vida ter comido tanto, Agora, a trabalhar. Regressaram ao palácio, desta vez pela parte edificada anterior à ampliação em curso, e aí viram num balcão uma mulher vestida com tudo o que devia ser o luxo do tempo, e essa mulher, que à distância já parecia belíssima, olhava-os como absorta, como se não desse por eles, Quem é, perguntou caim, É lilith, a dona do palácio e da cidade, oxalá não ponha os olhos em ti, oxalá, Porquê, Contam-se coisas, Que coisas, Diz-se que é bruxa, capaz de endoidecer um homem com os seus feitiços, Que feitiços, perguntou caim, Não sei nem quero saber, não sou curioso, a mim basta-me ter visto por aí dois ou três homens que tiveram comércio carnal com ela, E quê, Uns infelizes que davam lástima, espectros, sombras de que haviam sido, Deves estar louco se imaginas um pisador de barro a dormir com a rainha da cidade, Queres dizer a dona, Rainha ou dona, tanto faz, Vê-se que não conheces as mulheres, são capazes de tudo, do melhor e do pior se lhes dá para isso, são muito senhoras de desprezar uma coroa em troca de irem lavar ao rio a túnica do amante ou atropelarem tudo e todos para chegar a sentar-se num trono, Falas por experiência, perguntou caim, Observo, nada mais, para isso é que sou olheiro, No entanto, alguma experiência terás, Sim, alguma, mas sou um pássaro de asas curtas, desses que voam baixo, Pois eu nem sequer alcei voo uma vez que fosse, Não conheces mulher, perguntou o olheiro, Não, Estás muito a tempo, ainda és novo. Tinham na sua frente a pisa do barro. Esperaram que os homens, mais ou menos alinhados desde o centro para a periferia e que de vez em quando trocavam de sítio, os de dentro para fora, os de fora para dentro, acabassem de dar a volta e chegassem à sua altura. Então o olheiro disse, tocando-o num ombro, Entra.
Como tudo, as palavras têm os seus quês, os seus comos e os seus porquês. Algumas, solenes, interpelam-nos com ar pomposo, dando-se importância, como se estivessem destinadas a grandes coisas, e, vai-se ver, não eram mais que uma brisa leve que não conseguiria mover uma vela de moinho, outras, das comuns, habituais, das de todos os dias, viriam a ter, afinal, consequências que ninguém se atreveria a prever, não tinham nascido para isso, e contudo abalaram o mundo. O olheiro disse, Entra, e foi como se dissesse, Vai pisar barro, vai ganhar o teu pão, mas essa palavra foi exactamente a mesma que lilith, semanas mais tarde, virá a pronunciar, letra por letra, quando mandou chamar o homem de quem lhe haviam dito que se chamava abel, Entra. Em mulher com fama de despachada em procurar satisfação para os seus desejos, pode parecer estranho que tivesse levado semanas a abrir a porta do seu quarto, mas até isso tem explicação, como mais adiante se verá. Durante esse tempo, caim não poderia imaginar que ideias estava alimentando aquela mulher quando ao princípio acompanhada por um séquito de guardas, escravas e outros servidores, começou a aparecer na pisa de barro. Seria como aqueles proprietários rurais bem-dispostos que se vão interessar na seara pelo esforço dos que para eles trabalham, animando-os com a sua visita, em que nunca falhará uma palavra de estímulo e, às vezes, no melhor dos casos, um gracejo de camarada que, com vontade ou sem ela, fará rir toda gente. Lilith não falava, a não ser com o olheiro do local, a quem pedia informações sobre o andamento do trabalho e, uma vez ou outra, aparentemente para fazer conversa, sobre a origem dos trabalhadores vindos de fora, por exemplo, este que vai aqui, Não sei donde veio, senhora, quando lho perguntei, é natural que queiramos saber com quem temos de lidar, apontou na direção do poente e pronunciou duas palavras, Que palavras, De além, senhora, Não falou das razões por que deixou a sua terra, Não, senhora, E como se chama ele, Abel, senhora, disse-me que se chama abel, É bom trabalhador, Sim, senhora, é dos que falam pouco, cumpre bem a obrigação, E o sinal que tem na testa, que é aquilo, Também lhe perguntei e ele disse que o recebera de nascença, Portanto, deste abel que veio do poente não sabemos nada, Não é o único, senhora, tirante os que são de cá e mais ou menos conhecemos, o resto são histórias por contar, vagamundos, foragidos, no geral gente de poucas palavras, lá entre eles talvez se confiem uns aos outros, mas nem disso se pode ter a certeza, E o do sinal, como se comporta, Em minha opinião, procede como se desejasse que ninguém reparasse nele, Reparei eu, murmurou lilith falando consigo mesma. Passados uns dias apareceu na pisa do barro um enviado do palácio que perguntou a caim se tinha algum ofício. Caim respondeu-lhe que em tempos fora agricultor e que havia sido obrigado a deixar as suas terras por causa das más colheitas. O enviado levou tal informação e voltou ao fim de três dias com uma ordem para que o pisador abel se apresentasse imediatamente no palácio. Tal como se encontrava, com a sua velha túnica manchada e tornada já quase um farrapo, caim, depois de limpar o melhor que pôde as pernas sujas de barro, seguiu o enviado. Entraram no palácio por uma pequena porta lateral que dava para um vestíbulo onde duas mulheres esperavam. Retirou-se o enviado para ir dar parte de que o pisador de barro abel já se encontrava ali e ao cuidado das escravas. Conduzido por elas a um quarto separado, caim foi despido e logo lavado dos pés à cabeça com água tépida. O contacto insistente e minucioso das mãos das mulheres provocou-lhe uma erecção que não pôde reprimir, supondo que tal proeza seria possível. Elas riram e, em resposta, redobraram de atenções para com o órgão erecto, a que, entre novas risadas, chamavam flauta muda, o qual de repente havia saltado nas suas mãos com a elasticidade de uma cobra. O resultado, vistas as circunstâncias, era mais do que previsível, o homem ejaculou de repente, em jorros sucessivos que, ajoelhadas como estavam, as escravas receberam na cara e na boca. Um súbito relâmpago de lucidez iluminou o cérebro de caim, para isto o tinham ido buscar à pisa do barro, mas não para dar gosto a simples escravas que outras satisfações próprias da sua condição deveriam ter. O aviso prudente do olheiro dos alvenéis caíra em cesto roto, caim assentara o pé na armadilha para onde a dona do palácio o viera empurrando suavemente, sem precipitações, quase sem dar por tal, como se estivesse distraída por uma nuvem que passava, a pensar noutra coisa. A demora do golpe final fora propositada para dar tempo a que a semente lançada à terra como por acaso pudesse germinar por si mesma e florescer. Quanto ao fruto, estava claro que já não teria de esperar muito para ser colhido. As escravas pareciam não ter pressa, concentradas agora em extrair as últimas gotas do pênis de caim que levavam à boca na ponta de um dedo, uma após a outra, com delícia. Tudo acaba, porém, tudo tem o seu termo, uma túnica lavada cobriu a nudez do homem, é hora, palavra sobre todas anacrônica nesta bíblica história, de ser conduzido à presença da dona do palácio, que lhe dará destino. O enviado esperava no vestíbulo, um simples olhar bastou-lhe para adivinhar o que se havia passado durante o banho, mas não se escandalizou, é que os enviados, por razões de oficio, veem muito mundo, não há nada que os surpreenda. Além disso, como já nesta época era sabido, a carne é supinamente fraca, e não tanto por sua culpa, pois o espírito, cujo dever, em princípio, seria levantar uma barreira contra todas as tentações, é sempre o primeiro a ceder, a içar a bandeira branca da rendição. O enviado sabia onde estava levando o pisador de barro abel, aonde e para quê, mas não o invejava, ao contrário do episódio lúbrico das escravas, que, esse sim, lhe perturbava a circulação do sangue. A entrada no palácio foi, desta vez, pela porta principal porque aqui nada se faz às escondidas, se a dona lilith arranjou um novo amante, melhor é que se saiba já, que não se arme aqui todo um jogo de segredinhos e maledicências, toda uma rede de risotas e murmurações, como infalivelmente sucederia em outras culturas e civilizações. O enviado ordenou a uma escrava que estava esperando do lado de fora da porta da antecâmara, Vai dizer à tua senhora que estamos aqui. A escrava foi e voltou com o recado, Vem comigo, disse para caim, e logo, para o enviado, Tu vai-te, já não és preciso. Assim são as coisas, que ninguém se envaideça por lhe terem confiado uma missão delicada, o mais certo é que depois do trabalho lhe digam, Tu vai-te, já não és preciso, disto sabem os enviados muito. Lilith estava sentada num escabelo de madeira trabalhada, tinha um traje que devia valer um potosí, um vestido que exibia com mínimo recato um decote que deixava ver a primeira curva dos seios e adivinhar o resto. A escrava tinha-se retirado, estavam sós. Lilith lançou ao homem um olhar apreciador, pareceu gostar do que viu e finalmente disse, Estarás sempre nesta antecâmara, de dia e de noite, tens ali o teu catre e um banco para te sentares, serás, até que eu mude de ideias, o meu porteiro, impedirás a entrada de qualquer pessoa, seja quem for, no meu quarto, salvo as escravas que o vêm limpar e arrumar, Seja quem for, senhora, perguntou caim sem aparente intenção, Vejo que és ágil de cabeça, se estás a pensar no meu marido, sim, também esse não está autorizado a entrar, mas ele já o sabe, não tens que lho dizer, E se mesmo assim quiser alguma vez forçar a entrada, És um homem robusto, saberás como impedi-lo, Não posso enfrentar pela força quem, sendo senhor da cidade, é senhor da minha vida, Podes se eu to ordenar, Mais tarde ou mais cedo as consequências cairão sobre a minha cabeça, A isso, meu jovem, ninguém escapa neste mundo, mas, se és covarde, se tens dúvida ou medo, o remédio é fácil, voltas para o barro, Nunca pensei que pisar barro fosse o meu destino, Também não sei se serás, para sempre, o porteiro do quarto de lilith, Basta que o vá ser neste momento, senhora, Bem dito, só por essa palavras já merecerias um beijo. Caim não respondeu, estava dando atenção à voz do olheiro dos alvenéis, Tem cuidado, diz-se que é uma bruxa, capaz de endoidecer um homem com seus feitiços. Em que pensas, perguntou lilith, Em nada, senhora, diante de ti não sou capaz de pensar, olho para ti e pasmo, nada mais, Talvez mereças um segundo beijo, Estou aqui, senhora, Mas eu ainda não, porteiro. Levantou-se, ajustou as pregas do vestido fazendo escorregar lentamente as mãos pelo corpo, como se estivesse a acariciar-se a si mesma, primeiro os seios, logo o ventre, depois o princípio das coxas onde se demorou, e tudo isto o fez enquanto olhava o homem fixamente, sem expressão, como uma estátua. As escravas, livres de freios morais, haviam rido de puro contentamento, quase com inocência, enquanto se divertiam a manipular o corpo do homem, haviam participado num jogo erótico de que conheciam todos os preceitos e infracções, ao passo que aqui, nesta antecâmara onde nenhum som exterior penetra, lilith e caim parecem dois esgrimistas que apuram as espadas para um duelo de morte. Lilith já não está, entrou no quarto e fechou a porta, caim olhou em redor e não encontrou outro refúgio que o banco que lhe estava reservado. Ali se foi sentar, de repente assustado com a perspectiva dos dias futuros. Sentia-se prisioneiro, ela mesma dissera, Estarás aqui dia e noite, só não tinha acrescentado, Serás, quando eu assim o decidir, o meu boi de cobrição, palavra esta que parecerá não só grosseira como mal aplicada ao caso, uma vez que, em princípio, cobrição é coisa de animais quadrúpedes, não de seres humanos, mas que muito bem aplicada está porque estes já foram tão quadrúpedes como aqueles, porquanto todos sabemos que o que hoje denominamos braços e pernas foi durante muito tempo tudo pernas, até que alguém se terá lembrado de dizer aos futuros homens, Levantem-se que já é hora. Também caim se pergunta se não será hora de fugir daqui antes que seja demasiado tarde, mas a pergunta é ociosa, de mais sabe ele que não fugirá, dentro daquele quarto há uma mulher que parece desfrutar lançando-lhe sucessivas negaças, mas que um dia destes lhe dirá, Entra, e ele entrará, e, entrando, passará de uma prisão a outra. Não nasci para isto, pensa caim. Também não havia nascido para matar o seu próprio irmão, e apesar disso tinha-o deixado cadáver no meio do campo com os olhos e a boca cobertos de moscas, a ele, abel, que também para isso não nascera. Caim dá voltas à vida na sua cabeça e não lhe encontra explicação, veja-se esta mulher que, não obstante estar enferma de desejo, como é fácil perceber, se compraz em ir adiando o momento da entrega, palavra por outro lado altamente inadequada, porque lilith, quando finalmente abrir as pernas para se deixar penetrar, não estará a entregar-se, mas sim a tratar de devorar o homem a quem disse, Entra.
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