sexta-feira, 16 de novembro de 2012

CAIM (Capítulo VI°)




Apesar da obscuridade cinzenta da antemanhã, via-se que os pássaros, não as amáveis criaturas aladas que já não tardarão muito tempo a soltar ao sol os seus cantos, mas as brutas aves de rapina, essas carnívoras que viajam de patíbulo em patíbulo, tinham começado o seu trabalho de limpeza pública nas partes expostas dos enforcados, as caras, os olhos, as mãos, os pés, a meia perna que a túnica não alcançava cobrir. Duas corujas, alarmadas pelo ruído das patas do jumento, alçaram voo dos ombros do escravo, num tênue rumor de seda só perceptível por ouvidos experientes. Introduziram-se em voo raso por uma viela estreita, ao lado do palácio, e desapareceram. Caim tocou o jumento com os calcanhares, atravessou a praça, pensando se também agora iria encontrar o velho com as duas cabras atadas por um baraço, e, pela primeira vez, perguntou-se quem seria a impertinente personagem, Talvez fosse o senhor, muito capaz disso é ele, com aquele gosto de aparecer de repente em qualquer parte, murmurou. Não queria pensar em lilith. Quando na sua desolada cama de porteiro despertou de um sono sobressaltado, constantemente interrompido, um súbito impulso quase o tinha levado a entrar no quarto para uma última palavra de despedida, para um último beijo, e quem sabe o que poderia suceder mais. Ainda estava a tempo. No palácio dormem, só lilith de certeza estará desperta, ninguém daria pela rápida incursão, ou talvez as duas escravas que lhe haviam entreaberto as portas do paraíso à chegada, e elas diriam, sorrindo, Que bem te entendemos, abel. Depois de virar a próxima esquina deixaria de ver o palácio. O velho das ovelhas não estava ali, o senhor, se era ele, dava-lhe a carta branca, mas nem um mapa de estradas, nem um passaporte, nem recomendações de hotéis e restaurantes, uma viagem como as que se faziam antigamente, à ventura, ou, como já então se dizia, ao deus-dará. Caim tocou outra vez o jumento e em pouco tempo encontrou-se em campo aberto. A cidade tornara-se numa mancha parda que, aos poucos, pela distância que ia aumentando, apesar do passo medido do asno, parecia afundar-se no chão. A paisagem era seca, árida, sem um fio de água à vista. Diante da desolação era inevitável que caim recordasse a dura caminhada feita depois de o senhor o ter expulsado do fatídico vale onde o pobre abel para sempre ficara. Sem nada para comer, sem uma sede de água salvo aquela que, por milagre, veio a cair finalmente do céu quando as forças da alma já de todo minguavam e as pernas ameaçavam ir-se abaixo a cada passo. Ao menos, desta vez não lhe faltará comida, os alforjes vêm cheios até à boca, lembrança amorosa de lilith que, pelo visto, não nos saiu tão má dona de casa como pelos seus dissolutos costumes poderia pensar-se. O mal é que em todo o redor da paisagem não se vê ao menos uma sombra aonde acudir. A meio da manhã o sol já é puro fogo e o ar uma tremulina que nos faz duvidar do que os nossos olhos veem. Caim disse, Melhor, assim não precisarei de desmontar para comer. O caminho subia e subia, e o jumento, que, bem vistas as coisas, de burro não tinha nada, avançava aos ziguezagues, ora para cá, ora para lá, supõe-se que devia ter aprendido o genial truque com as mulas, que nesta matéria de ascensões alpinas a sabem toda. Uns quantos passos mais e a subida acabou. E então, ó surpresa, ó pasmo, ó estupefação, a paisagem que caim tinha agora diante de si era completamente diferente, verde de todos os verdes alguma vez vistos, com árvores frondosas e cultivos, reflexos de água, uma temperatura suave, nuvens brancas boiando no céu. Olhou para trás, a mesma aridez de antes, a mesma secura, ali nada havia mudado. Era como se existisse uma fronteira, um traço a separar dois países, Ou dois tempos, disse caim sem consciência de havê-lo dito, o mesmo que se alguém o estivesse pensando em seu lugar. Levantou a cabeça para olhar o céu e viu que as nuvens que se moviam na direcção donde viemos se detinham na vertical do chão e logo desapareciam por desconhecidas artes. Há que levar em consideração o facto de caim estar mal informado sobre questões cartográficas, poderia mesmo dizer-se que esta, de certo modo, é a sua primeira viagem ao estrangeiro, porquanto é natural surpreender-se, outra terra, outra gente, outros céus e outros costumes. Bem, tudo isso pode ser certo, mas o que ninguém me explica é a razão de as nuvens não poderem passar de lá para cá. A não ser, diz a voz que fala pela boca de caim, que o tempo seja outro, que esta paisagem cuidada e trabalhada pela mão do homem tivesse sido, em épocas passadas, tão estéril e desolada como a terra de nod. Então estamos no futuro, perguntamos nós, é que temos visto por aí uns filmes que tratam do assunto, e uns livros também. Sim, essa é a fórmula comum para explicar algo como o que aqui parece ter sucedido, o futuro, dizemos nós, e respiramos tranquilos, já lhe pusemos o rótulo, a etiqueta, mas, em nossa opinião, entender-nos-íamos melhor se lhe chamássemos outro presente, porque a terra é a mesma, sim, mas os presentes dela vão variando, uns são presentes passados, outros presentes por vir, é simples, qualquer pessoa perceberá. Quem dá mostras da mais profunda alegria é o jumento. Nascido e criado em terras de sequeiro, alimentado a palha e cardos, com a água racionada ou quase, a visão que se lhe oferecia tocava o sublime. Pena não haver ali alguém que soubesse interpretar os movimentos das suas orelhas, essa espécie de telegrafo de bandeiras com que a natureza o dotara, sem pensar o afortunado bicho que chegaria o dia em que quereria expressar o inefável, e o inefável, como sabemos, é precisamente o que está para lá de qualquer possibilidade de expressão. Feliz vai também caim, já a sonhar com um almoço no campo, entre verduras, fugidios carreirinhos de água e passarinhos a sinfonizar nas ramagens. À mão direita do caminho, além, vê-se uma fila de árvores de bom porte que promete a melhor das sombras e das sestas. Para lá tocou caim o jumento. O sítio parecia ter sido inventado de propósito para refrigério de viajantes fatigados e respectivas bestas de carga. Paralela às árvores havia uma fileira de arbustos tapando o carreiro estreito que subia em direção ao teso da colina. Aliviado do peso dos alforjes, o jumento tinha-se entregado às delicias da erva fresca e de alguma rústica flor tresmalhada, sabores estes que jamais lhe tinham passado pela goela. Caim escolheu tranquilamente a ementa e ali mesmo comeu, sentado no chão, rodeado de inocentes pássaros que debicavam as migalhas, enquanto as recordações dos bons momentos vividos nos braços de lilith voltavam a aquecer-lhe o sangue. Já as pálpebras tinham começado a pesar-lhe quando uma voz juvenil, de rapaz, o fez sobressaltar, Ó pai, chamou o moço, e logo outra voz, de adulto de certa idade, perguntou, Que queres tu, isaac, Levamos aqui o fogo e a lenha, mas onde está a vítima para o sacrifício, e o pai respondeu, O senhor há-de encontrar a vítima para o sacrifício. E continuaram a subir a encosta. Ora, enquanto sobem e não sobem, convém saber como isto começou para comprovar uma vez mais que o senhor não é pessoa em quem se possa confiar. Há uns três dias, não mais tarde, tinha ele dito a abraão, pai do rapazito que carrega às costas o molho de lenha, Leva contigo o teu único filho, isaac, a quem tanto queres, vai à região do monte mória e oferece-o em sacrifício a mim sobre um dos montes que eu te indicar. O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isaac. No terceiro dia da viagem, abraão viu ao longe o lugar referido. Disse então aos criados, Fiquem aqui com o burro que eu vou até lá adiante com o menino, para adorarmos o senhor e depois voltamos juntos para vocês. Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso, pronto para enganar  qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes. Chegando assim ao lugar de que o senhor lhe tinha falado, abraão construiu um altar e acomodou a lenha por cima dele. Depois atou o filho e colocou-o no altar, deitado sobre a lenha. Acto contínuo, empunhou a faca para sacrificar o pobre rapaz e já se dispunha a cortar-lhe a garganta quando sentiu que alguém lhe segurava o braço, ao mesmo tempo que uma voz gritava, Que vai você fazer, velho malvado, matar o próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar, Foi o senhor que o ordenou, foi o senhor que o ordenou, debatia-se abraão, Cala-se, ou quem o mata aqui sou eu, desate já o rapaz, ajoelhe e peça-lhe perdão, Quem é você, Sou caim, sou o anjo que salvou a vida de isaac. Não, não era certo, caim não é nenhum anjo, anjo é este que acabou de pousar com um grande ruído de asas e que começou a declamar como um actor que tivesse ouvido finalmente a sua deixa, Não levantes a mão contra o menino, não lhe faças nenhum mal, pois já vejo que és obediente ao senhor, disposto, por amor dele, a não poupar nem sequer o teu filho único, Chegas tarde, disse caim, se isaac não está morto foi porque eu o impedi. O anjo fez cara de contrição, Sinto muito ter chegado atrasado, mas a culpa não foi minha, quando vinha para cá surgiu-me um problema mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda, o resultado foram contínuas mudanças de rumo que me desorientavam, na verdade vi-me em papos de aranha para chegar aqui, ainda por cima não me tinham explicado bem qual destes montes era o lugar do sacrifício, se cá cheguei foi por um milagre do senhor, Tarde, disse caim, Vale mais tarde que nunca, respondeu o anjo com prosápia, como se tivesse acabado de enunciar uma verdade primeira, Enganas-te, nunca não é o contrário de tarde, o contrário de tarde é demasiado tarde, respondeu-lhe caim. O anjo resmungou, Mais um racionalista, e, como ainda não tinha terminado a missão de que havia sido encarregado, despejou o resto do recado, Eis o que mandou dizer o senhor, Já que foste capaz de fazer isto e não poupaste o teu próprio filho, juro pelo meu bom nome que te hei-de abençoar e hei-de dar-te uma descendência tão numerosa como as estrelas do céu ou como as areias da praia e eles hão de tomar posse das cidades dos seus inimigos, e mais, através dos teus descendentes se hão de sentir abençoados todos os povos do mundo, porque tu obedecestes à minha ordem, palavra do senhor. Estas, para quem não o saiba ou finja ignorá-lo, são as contabilidades duplas do senhor, disse caim, onde uma ganhou, a outra não perdeu, fora isso não compreendo como irão ser abençoados todos os povos do mundo só porque abraão obedeceu a uma ordem estúpida, A isso chamamos nós no céu obediência devida, disse o anjo. Coxeando da asa direita, com um mau sabor de boca pelo fracasso da sua missão, a celestial criatura foi-se embora, abraão e o filho também já lá vão a caminho do lugar onde os esperam os criados, e agora, enquanto caim ajeita os alforjes no lombo do jumento, imaginemos um diálogo entre o frustrado verdugo e a vítima salva in extremis. Perguntou isaac, Pai, que mal te fiz eu para teres querido matar-me, a mim que sou o teu único filho, Mal não me fizeste, isaac, Então por que quiseste cortar-me a garganta como se eu fosse um borrego, perguntou o moço, se não tivesse aparecido aquele homem para segurar-te o braço, que o senhor o cubra de bênçãos, estarias agora a levar um cadáver para casa, A ideia foi do senhor, que queria tirar a prova, A prova de quê, Da minha fé, da minha obediência, E que senhor é esse que ordena a um pai que mate o seu próprio filho, É o senhor que temos, o senhor de nossos antepassados, o senhor que já cá estava quando nascemos, E se esse senhor tivesse um filho, também o mandaria matar, perguntou isaac, O futuro o dirá, Então o senhor é capaz de tudo, do bom, do mal e do pior, Assim é, Se tu tivesses desobedecido à ordem, que sucederia, perguntou isaac, O costume do senhor é mandar a ruína, ou uma doença, a quem lhe falhou, Então o senhor é rancoroso, Acho que sim, respondeu abraão em voz baixa, como se temesse ser ouvido, ao senhor nada é impossível, Nem um erro ou um crime, perguntou isaac, Os erros e os crimes sobretudo, Pai, Mao me entendo com esta religião, Hás-de entender-te,  meu filho, não terás outro remédio, e agora devo fazer-te um pedido, um humilde pedido, Qual, Que esqueçamos o que se passou, Não sei se serei capaz, meu pai, ainda me vejo deitado em cima da lenha, amarrado, e o teu braço levantado, com a faca a luzir, Não era eu quem estava ali, em meu perfeito juízo nunca o faria, Queres dizer que o senhor enlouquece as pessoas, perguntou isaac, Sim, muitas vezes, quase sempre, respondeu abraão, Fosse como fosse, quem tinha a faca nas mãos eras tu, O senhor havia organizado tudo, no último momento interviria, viste o anjo que apareceu, Chegou atrasado, O senhor teria encontrado outra maneira de te salvar, provavelmente até sabia que o anjo se ia atrasar e por isso fez aparecer aquele homem, Caim se chama ele, não esqueças o que lhe deves, Caim, repetiu abraão obediente, conheci-o ainda não eras nascido, O homem que salvou o teu filho de ser degolado e queimado no molho de lenha que ele próprio havia trazido às costas, Não o foste, meu filho, Pai, a questão, embora a mim me importe muito, não é tanto ter eu morrido ou não, a questão é sermos governados por um senhor como este, tão cruel como baal, que devora os seus filhos, Onde foi que ouviste esse nome, A gente sonha, pai. Estou a sonhar, disse também caim quando abriu os olhos. Havia adormecido em cima do jumento e de repente despertou. Estava no meio de uma paisagem diferente, com algumas árvores raquíticas dispersas e tão seca como a terra de nod, porém seca de areia, não de cardos. Outro presente, disse. Pareceu-lhe que este devia ser mais antigo que o anterior, aquele em que havia salvado a vida do rapazito chamado isaac, e isto mostrava que tanto poderia avançar como voltar atrás no tempo, e não por vontade própria, pois, para falar francamente, sentia-se como alguém que mais ou menos, só mais ou menos, sabe onde está, mas não aonde se dirige. Este lugar, apenas para dar um exemplo das dificuldades de orientação que caim vem enfrentando, tinha todo o aspecto de ser um presente há muito passado, como se o mundo ainda se encontrasse nas últimas fases de construção e tudo tivesse um aspecto provisório. Lá longe, vinda mesmo a propósito, na beirinha do horizonte, distinguia-se uma torre altíssima com a forma de um cone truncado, isto é, uma forma cônica a que tivessem cortado a parte superior ou que ainda lá não tivesse sido colocada. A distância era grande, nas a caim, que tinha excelente vista, pareceu-lhe que havia gente movendo-se ao redor do edifício. A curiosidade fê-lo tocar as ilhargas do animal para que acelerasse o passo, mas logo a prudência o obrigou a diminuir o andamento. Não tinha a certeza de que tratasse de gente pacífica, e, mesmo que o fosse, sabe-se lá o que poderia acontecer a um burro carregado com dois alforjes de alimentos da melhor qualidade diante de uma multidão de pessoas por necessidade e tradição dispostas a devorar tudo quanto lhes aparecesse pela frente. Não as conhecia, não sabia quem eram, mas não seria nada difícil imaginar. O que também não poderia era deixar ali o jumento, atado a uma destas árvores como algo sem préstimo, pois se arriscaria a não encontrar à volta nem burro nem comida, a cautela mandava que tomasse outro caminho, que se deixasse de aventuras, enfim, para tudo dizer numa palavra, que não desafiasse o cego destino. A curiosidade, porém, teve mais poder que a cautela. Disfarçou o melhor que foi capaz a boca dos alforjes com ramas de árvores como se de comida para o animal se tratasse e, alea  jacta est, rumou em direcção à torre. À medida que se aproximava, o rumor das vozes, primeiro tênue, ia crescendo e crescendo até se transformar em perfeita algazarra. Parecem malucos, doidos varridos, pensou caim. Sim, estavam doidos de desesperação porque falavam e não conseguiam entender-se, como se estivessem surdos e gritassem cada vez mais alto, inutilmente. Falavam línguas diferentes e em alguns casos riam-se e troçavam uns dos outros como se a língua de cada qual fosse mais harmoniosa e mais bela que as dos demais. O curioso do caso, e isto ainda não o sabia caim, é que nenhuma dessas línguas havia existido antes no mundo, todos os que aqui se encontram falavam de raiz um só idioma lá na sua terra e compreendiam-se sem a menor dificuldade. A sorte foi ter dado logo um homem que falava hebraico, língua que lhe tinha calhado em sorte no meio da confusão criada e que caim já ia conhecendo, com gente a expressar-se, sem dicionários nem interpretes, em inglês, em alemão, em francês, em espanhol, em italiano, em eusquera,  alguns em latim e grego, e mesmo, quem o imaginaria, em português. Que desacordo foi esse, perguntou caim, e o homem respondeu, Quando nós viemos do oriente para assentar-nos aqui falávamos todos a mesma língua, E como se chamava ela, quis saber caim, Como era a única que havia não precisava de nome, era a língua, e mais nada, Que aconteceu depois, Alguém teve a ideia de fazer tijolos e cozê-los ao forno, E como os faziam, perguntou o antigo pisador de barro sentindo que estava com a sua gente, Como sempre os havíamos feito, com barro, areia e pedrinhas miúdas, para argamassa usamos o betume, E depois, Depois decidimos construir uma cidade com uma grande torre, essa que aí está, uma torre que chegasse ao céu, Para quê, perguntou caim, Para ficarmos famosos, E que aconteceu, por que está a construção parada, Porque o senhor veio vê-la e não gostou, Chegar ao céu é o desejo de todo homem justo, o senhor até deveria dar uma ajuda à obra, Era bom, era, mas não foi assim, Então que fez ele, Disse que depois de nos termos posto a fazer a torre ninguém mais nos poderia impedir de fazer o que quiséssemos, por isso confundiu-nos as línguas e a partir daí, como vês, deixamos de entender-nos, E agora, perguntou caim, Agora não haverá a cidade, a torre não será terminada e nós, cada um com a sua língua, não poderemos viver juntos como até agora, À torre, o melhor será deixá-la ficar como recordação, tempo será em que se farão em toda a parte excursões para vir e ver as ruínas, Provavelmente nem ruínas haverá, está aí quem ouviu dizer ao senhor que, quando já cá não estivéssemos, mandaria um grande vento para destruí-la, e o que o senhor diz, faz, O ciúme é o seu grande defeito, em vez de ficar orgulhoso dos filhos que tem, preferiu dar voz à inveja, está claro que o senhor não suporta ver uma pessoa feliz, Tanto trabalho, tanto suor, para nada, Que pena, disse caim, daria uma bonita obra, Pois, disse o homem, agora com os olhos gulosos fitos no burro. Teria sido para ele uma conquista fácil se pedisse o auxílio dos companheiros, mas o egoísmo pôde mais que a inteligência. Quando esboçou um movimento para deitar a mão ao cabresto, o jumento, aquele mesmo que havia saído das cavalariças de noah com reputação de dócil, fez uma espécie de passo de baile com as patas da frente e, virando os quartos traseiros, disparou uma parelha de coices que atirou o pobre diabo de pantanas. Embora tivesse actuado em legítima defesa, o jumento teve imediatamente a consciência de que as suas boas razões não seriam admitidas pela massa que, bradando em todas as línguas havidas e por haver, avançava para saquear os alforjes e transformá-lo a ele em almôndegas. Sem precisar do estimulo dos calcanhares do cavaleiro arrancou num trote vivo e logo num galope em tudo inesperados, vista a sua natureza asinina, de animal seguro mas a quem, em principio, não se podia pedir pressa. Os assaltantes tiveram de resignar-se a vê-lo desaparecer no meio de uma nuvem de pó, a qual viria a ter ainda outra importante consequência, a de fazer passar caim e a sua montada a outro presente futuro neste mesmo lugar, mas limpo dos ousados rivais do senhor, dispersos pelo mundo porque já não tinham uma língua comum que os mantivesse unidos. Imponente, majestosa, a torre lá estava, na beirinha do horizonte, ainda que inacabada parecia capaz de desafiar os séculos e os milênios, mas, de repente, estava e deixou de estar. Cumpriam-se o que o senhor havia anunciado, que enviaria um grande vento que não deixaria pedra sobre pedra nem tijolo sobre tijolo. A distância não permitia a caim perceber a violência do furacão soprado pela boca do senhor nem o estrondo dos muros desabando uns após os outros, os pilares, as arcadas, as abóbadas, os contrafortes, por isso a torre pareceria desmoronar-se em silêncio, como um castelo de cartas, até que tudo acabou numa enorme nuvem de poeira que subia para o céu e não deixava ver o sol. Muitos anos depois se dirá que caiu ali um meteorito, um corpo celeste, dos muitos que vagueiam pelo espaço, mas não é verdade, foi a torre de babel, que o orgulho do senhor não consentiu que terminássemos. A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.
 
XXX

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