segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo XVI)





Atrás de tempo, tempo vem, é sentença conhecida e de muita aplicação, porém não tão óbvia quanto pode parecer a quem se satisfaça com o significado próximo das palavras, quer soltas, uma por uma, quer juntas e articuladas, pois tudo vai é da maneira de dizer, e esta varia com o sentimento de quem as expresse, não é o mesmo pronunciá-las alguém que, correndo-lhe mal a vida, espere dias melhores, ou atirá-las como ameaça, como prometida vingança que o futuro haverá de cumprir. O caso mais extremo seria o de uma pessoa que, sem fortes e objectivas razões de queixa quanto à sua saúde e bem-estar, suspirasse melancolicamente, Atrás de tempo, tempo vem, só por ser de natureza pessimista e atreita a prever o pior. Não seria de todo crível que Jesus, na sua idade, andasse com estas palavras na boca, qualquer que fosse o sentido em que as usasse, mas nós, sim, que, como Deus, tudo sabemos do tempo que foi, é e há-de ser, nós podemos pronunciá-las, murmurá-las ou suspirá-las enquanto o vamos vendo entregue à sua faina de pastor, por essas montanhas de Judá, ou descendo, no tempo próprio, ao vale do Jordão. E não tanto por de Jesus se tratar, mas porque todo o ser humano tem por diante, em cada momento da sua vida, coisas boas e coisas más, atrás de umas, outras, atrás de tempo, tempo. Sendo Jesus o evidente herói deste evangelho, que nunca teve o propósito desconsiderado de contrariar o que escreveram outros e portanto não ousará dizer que não aconteceu o que aconteceu, pondo no lugar de um Sim um Não, sendo Jesus esse herói e conhecidas as suas façanhas, ser-nos-ia muito fácil chegar ao pé dele e anunciar-lhe o futuro, o bom e maravilhoso que será a sua vida, milagres que darão de comer, outros que restituirão a saúde, um que vencerá a morte, mas não seria sensato fazê-lo, porque o moço, ainda que dotado para a religião e entendido em patriarcas e profetas, goza do robusto cepticismo próprio da sua idade e mandar-nos-ia passear. Mudará de ideias, claro está, quando se encontrar com Deus, mas esse decisivo acontecimento não é para amanhã, daqui até lá ainda Jesus vai ter de subir e descer muito monte, mungir muita cabra e muita ovelha, ajudar a fabricar o queijo, ir à troca de produtos às aldeias. Também matará animais doentes ou estropiados, e chorará por eles. Mas o que nunca lhe irá acontecer, sosseguem os espíritos sensíveis, é cair na horrível tentação de usar, como lhe propôs o malicioso e pervertido Pastor, uma cabra ou uma ovelha, ou as duas, para descarga e satisfação do sujo corpo com que a límpida alma tem de viver. Esqueçamo-nos, por não ser aqui lugar de análises íntimas, só possíveis em tempos futuros a este, de que, quantas e quantas vezes, para poder exibir e gabar-se de um corpo limpo, a alma a si mesma se carregou de tristeza, inveja e imundície.
Pastor e Jesus, passados aqueles enfrentamentos éticos e teológicos dos primeiros dias, contudo ainda por algum tempo recidivantes, levaram sempre, enquanto juntos, uma boa vida, o homem ensinando sem impaciências demais velho as artes da pastorícia, o rapaz aprendendo-as como se a sua vida fosse depender maximamente delas. Jesus aprendeu a lançar o cajado, rodopiando e zumbindo pelo ar até ir cair nos lombos dumas ovelhas que, por distracção ou atrevimento, se afastavam do rebanho, mas essa foi uma dorida aprendizagem, porque um dia, não estando ainda seguro da técnica, atirou o pau demasiado por baixo, com o trágico resultado de, na trajectória, apanhar em cheio o tenro pescocinho de um cabrito de poucos dias, que no mesmo instante ali morreu. Acidentes destes podem ocorrer a qualquer pessoa, até um pastor veterano e diplomado não está livre de lhe acontecer um azar, mas o pobre Jesus, que já tantas dores transporta consigo, parecia uma estátua da amargura quando levantou do chão, ainda quente, o cabritinho. Não havia nada a fazer, a própria cabra mãe, depois de farejar por um momento o filho, afastou-se e continuou a pastar, rapando a erva rasa e dura, que repuxava com secos movimentos da cabeça, aqui devemos citar o conhecido refrão, Cabra que berra, bocada que erra, que é outra maneira de dizer o mesmo, Chorar e comer não faz bom viver. Pastor veio ver o que sucedera, O mal é dele, que morreu, tu não fiques triste, Matei-o, lamentou-se Jesus, e era tão pequeno, Sim, se fosse um bode feio e fedorento não terias pena, ou não terias tanta, põe-no no chão, que eu trato dele, e tu vai-te além, está lá uma ovelha em jeito de parir, Que vais fazer, Esfolá-lo, que é que julgas, vida não posso dar-lha, não sou competente em obras milagrosas, Faço jura de não comer dessa carne, Comer o animal que matamos é a única maneira de respeitá-lo, mau é comerem uns o que outros tiveram de matar, Não o comerei, Pois não comas, mais fica para mim, Pastor tirou a faca da cinta, olhou Jesus e disse, Mais tarde ou mais cedo, também isto terás de aprender, ver como são feitos por dentro aqueles que foram criados para nos servir e alimentar. Jesus virou a cara para o lado e deu um passo para retirar-se, mas Pastor, que detivera o movimento da faca, ainda disse, Os escravos vivem para servir-nos, talvez devêssemos abri-los para sabermos se levam escravos dentro, e depois abrir um rei para ver se tem outro rei na barriga, e olha que se encontrássemos o Diabo e ele deixasse que o abríssemos, talvez tivéssemos a surpresa de ver saltar Deus lá de dentro. Falamos, antes, de recidivas dos choques de ideias e convicções entre Jesus e Pastor, e este é um exemplo. Mas Jesus, com o tempo, aprendera que a melhor resposta seria calar, não se dar por achado perante as provocações, mesmo brutais, como esta, e ainda assim vai com sorte, podia ter sido bem pior, imagine-se o escândalo se Pastor se lembrava de abrir Deus para ver se o Diabo lá estava dentro. Jesus foi à procura da ovelha que estava a parir, ao menos ali não o esperavam surpresas, apareceria um cordeiro igual a todos, verdadeiramente à imagem e semelhança da mãe, por sua vez retrato fiel das suas irmãs, há seres assim, não levam dentro de si senão isso, a certeza de uma pacífica e não interrogativa continuidade. A ovelha já parira, no chão o anho parecia feito só de pernas, e a mãe tentava ajudá-lo a erguer-se dando-lhe leves empurrões com o focinho, mas o pobre, estonteado, apenas sabia fazer movimentos bruscos com a cabeça como se procurasse o melhor ângulo de visão para entender o mundo em que nascera. Jesus ajudou-o a firmar-se nas patas, ficaram-lhe as mãos úmidas dos humores da matriz da ovelha, mas ele não se importou nada, é o que faz viver no campo com animais, cuspo e baba é tudo o mesmo, este cordeiro vem em boa altura, tão bonito, com o pêlo frisado, já a sua boca rósea e frenética buscava o leite onde o havia, naquelas tetas que ele nunca vira antes, com as quais não podia ter sonhado no útero da mãe, em verdade nenhuma criatura pode queixar-se de Deus, se logo ao nascer já vem a saber tantas coisas úteis. Lá adiante Pastor levantava a pele do cabrito esticada numa armação de paus em forma de estrela, o corpo esfolado, agora dentro do alforje, embrulhado num pano, será salgado quando o rebanho parar para passar a noite, menos a parte de que Pastor entender fazer a sua ceia, que Jesus já disse que não comerá duma carne a que, sem querer, tirou a vida. Para a religião que cultiva e os costumes a que obedece, estes escrúpulos de Jesus são subversivos, haja vista a matança desses outros inocentes todos os dias sacrificados nos altares do Senhor, maiormente em Jerusalém, onde as vítimas se contam por hecatombes. No fundo, talvez que o caso de Jesus, à primeira vista incompreensível nas circunstâncias de tempo e de lugar, seja apenas uma questão de sensibilidade, por assim dizer, em carne viva, recordemos quão próxima está ainda a trágica morte de José, quão próximas as revelações insuportáveis do que aconteceu em Belém vai fazer quinze anos, caso para admirar é que este rapaz mantenha o seu juízo inteiro, que não tenha sido tocado nas polias e roldanas do miolo, apesar daqueles sonhos que não o largam, ultimamente não temos falado deles, mas continuam. Quando o sofrimento passa a mais, indo ao ponto de transmitir-se ao próprio rebanho que acorda, noite alta, julgando que o vêm matar, Pastor acorda-o suavemente, Que é isso, que é isso, diz, e Jesus sai do pesadelo para os braços dele, como se do seu desgraçado pai se tratasse. Um dia, logo ao princípio, Jesus contou a Pastor o que sonhava, tentando, porém, disfarçar as raízes e as causas da sua nocturna e quotidiana agonia, mas Pastor disse, Deixa, não vale a pena contares-mo, sei tudo, até aquilo que estás a tentar esconder-me. Foi isto naqueles dias em que Jesus recriminava Pastor pela sua falta de fé e pelos defeitos e maldades que se deduziam e reconheciam no seu comportamento, incluindo, perdoe-se-nos que voltemos ao assunto, o sexual. Mas Jesus, vendo bem, não tinha ninguém no mundo, se exceptuarmos a família, de que se afastou e de que quase anda esquecido, salvo a mãe, que sempre é a mãe, aquela que nos deu o ser, e a quem algumas vezes na vida apeteceu dizer, Antes não tivesses dado, além da mãe, só a irmã Lísia, não se sabe porquê, a memória tem destas coisas, razões suas próprias para lembrar-se e esquecer-se. Sendo estas coisas o que são, Jesus acabou por sentir-se bem na companhia de Pastor, imaginemo-lo por nós, a consolação que será não vivermos sozinhos com a nossa culpa, ter ao lado alguém que a conhecesse e que, não tendo de fingir perdoar o que perdão não possa ter, supondo que estaria em seu poder fazê-lo, procedesse connosco com rectidão, usando de bondade e de severidade segundo a justiça de que seja merecedora aquela parte de nós que, cercada de culpas, conservou uma inocência. Isto nos ocorreu explicar agora, aproveitando o a propósito, para que com mais facilidade se pudessem entender as razões, e recebê-las por boas, por que Jesus, em tudo tão diferente e contrário ao seu rude hospedeiro, virá afinal a ficar com ele até ao anunciado encontro com Deus, de que tanto há a esperar, pois Deus não iria aparecer a um simples mortal sem ter para isso fortes razões.
Antes, porém, vão querer as circunstâncias, os acasos e as coincidências de que tanto se tem falado, que Jesus encontre sua mãe e alguns dos seus irmãos em Jerusalém, por ocasião desta primeira Páscoa que ele julgava ir viver longe da família. Que Jesus quisesse celebrar a Páscoa em Jerusalém, poderia ter sido, para o pastor, causa de estranheza e motivo de liminar recusa, estando eles no deserto e precisando o rebanho de tanta cópia de assistência e cuidados, sem contar, claro está, que não sendo Pastor judeu nem tendo outro deus para honrar, podia, que mais não fosse por antipática embirração, dizer, Pois não vai, não senhor, aqui é que é o seu lugar, patrão sou eu e não vou de férias. Ora, há que reconhecer que não foi assim, Pastor apenas perguntou, Voltas, se bem que, pelo tom de voz, parecia estar seguro de que Jesus voltaria, e foi o que o rapaz respondeu, sem hesitação, mas surpreendido, ele sim, por lhe ter saído tão pronta a palavra, Volto, Escolhe então aí um cordeiro limpo e são e leva-o para o sacrifício, já que vocês são dados a esses usos e costumes, mas isto disse-o Pastor a experimentar, queria ver se Jesus era capaz de conduzir à morte um cordeiro daquele rebanho que tanto trabalho lhes dava a guardar e defender. A Jesus ninguém o avisou, não se lhe chegou de mansinho um anjo, dos outros pequenos e quase invisíveis, a sussurrar-lhe ao ouvido, Cuidado, olha que é uma armadilha, não te fies, esse sujeito é capaz de tudo. A sua simples sensibilidade é que lhe encontrou a boa resposta, ou teria sido, quem sabe, a lembrança do cabrito morto e do anho nascido, Não quero cordeiro deste rebanho, disse, Porquê, Não levaria à morte o que ajudei a criar, A mim parece-me isso muito bem, mas já pensaste, creio, que em outro rebanho o haverás de buscar, Não posso evitá-lo, os cordeiros não descem do céu, Quando queres partir, Amanhã cedo, E voltas, Volto. Sobre este assunto não disseram mais palavra, apesar de nos ficarem dúvidas de como irá Jesus, que não é rico e trabalha pela comida, comprar o cordeiro pascal. Estando ele tão livre de tentações que custem dinheiro, é de presumir que ainda traga consigo aquelas poucas moedas que o fariseu lhe deu há quase um ano, mas esse pouco é pouco mesmo, sabido, como foi dito já, que nesta época do ano os preços do gado em geral, e especialmente dos cordeiros, disparam para alturas tão especulativas que é, verdadeiramente, um Deus nos acuda. Apesar do que de mau lhe tem sucedido, apeteceria dizer que a este rapaz uma boa estrela o cuida e defende, se não fosse suspeitosíssima debilidade, sobretudo em boca de evangelista, este ou outro qualquer, acreditar que corpos celestes tão afastados do nosso planeta possam produzir efeitos decisivos na existência de um ser humano, por muito que a esses astros tenham invocado, estudado e relacionado os solenes magos que, se é verdade o que se diz, teriam andado por estes paramos aqui há uns anos, sem mais consequência que ver o que viram e ir à vida. O que este discurso longo e trabalhoso pretende afinal dizer é que o nosso Jesus há-de encontrar, de certeza, maneira de apresentar-se dignamente no Templo com o seu borreguito, cumprindo o que se espera do bom judeu que tem provado ser, em tão difíceis condições como foram os valentes enfrentamentos que sustentou com Pastor.
Por este tempo gozava o rebanho dos abundantes pastos do vale de Ayalon, que está entre as cidades de Gezer e Emaús. Em Emaús tentou Jesus ganhar algum dinheiro com que pudesse comprar o cordeiro de que precisava, mas rapidamente chegou à conclusão de que um ano de pastor o especializara de tal maneira que o tornara inapto para outros ofícios, incluindo o de carpinteiro, em que, aliás, não chegara a progredir coisa que se visse, por falta de tempo. Meteu-se por isso ao caminho que sobe de Emaús para Jerusalém, deitando contas à sua difícil vida, comprar já sabemos que não pode, roubar já sabíamos que não quer, e mais milagre seria do que sorte achar ele um cordeiro que na estrada de Emaús se tivesse perdido. Não faltam aqui os inocentes, vão com uma corda ao pescoço atrás das famílias, ou ao colo se lhes calhou o conforto de um dono piedoso, mas, como meteram nas suas juvenis cabeças que saíram a passeio, vão excitados, nervosos, querem saber tudo, e, porque não podem fazer perguntas, usam os olhos, como se eles bastassem para entender um mundo feito de palavras. Jesus sentou-se numa pedra, à beira do caminho, a pensar na maneira de resolver o problema material que o está impedindo de cumprir um dever espiritual, vã esperança, por exemplo, seria aparecer-lhe aí outro fariseu, ou o mesmo, se de tais actos faz prática quotidiana, a perguntar, ele sim, com palavras, Precisas de um cordeiro, como antes lhe tinha perguntado, Tens fome. Da primeira vez, Jesus não precisou esmolar para que lhe fosse dado, agora, sem a certeza de que lhe darão, vai ser obrigado a pedir. Já tem a mão estendida, postura que de tão eloquente dispensa explicações, e tão forte em expressão que o mais comum é desviarmos dela os olhos como os desviamos duma chaga ou duma obscenidade. Algumas moedas foram deixadas cair por viandantes menos distraídos na concha da mão de Jesus, mas tão poucas que não vai ser por este andar que o caminho de Emaús chegará às portas de Jerusalém. Somados o dinheiro que já tinha e o que lhe deram, não dá nem para metade de um cordeiro, e é por de mais sabido que o Senhor não aceita nos seus altares nada que não esteja perfeito e completo, por isso é que rejeita o animal cego, aleijado ou mutilado, sarnento ou com verrugas, imagine-se o escândalo no Templo se nos apresentássemos ao sacrifício com os quartos traseiros de um animal, e ainda assim sob condição de que os testículos dele não estivessem pisados, esmagados, quebrantados ou cortados, caso em que a exclusão estaria igualmente certa. Ninguém se lembra de perguntar a este rapaz para que quer ele o dinheiro, isto se começou a escrever no exacto instante em que um homem de muita idade, com uma comprida barba branca, se aproximava de Jesus, deixando a sua numerosa família, que, por deferência para com o patriarca, parou no meio da estrada, à espera. Pensou Jesus que vinha ali outra moeda, mas enganou-se. O velho perguntou-lhe, Quem és tu, e o rapaz levantou-se para responder, Sou Jesus de Nazaré, Não tens família, Tenho, Por que não estás então com ela, Vim trabalhar de pastor para a Judeia, e esta foi uma maneira mentirosa de dizer a verdade ou de pôr a verdade a servir a mentira. O velho olhou-o com uma expressão de curiosidade insatisfeita e perguntou, enfim, Por que pedes tu esmola, se tens um ofício, Trabalho pela comida, e não tenho dinheiro que chegue para comprar o cordeiro da Páscoa, Por isso pedes, Sim. O velho fez sinal a um dos homens do grupo, Dá um cordeiro a este rapaz, compramos outro em chegando ao Templo. Os anhos eram seis, atados a uma mesma corda, o homem soltou o último e foi levá-lo ao velho, que disse, Aqui tens o teu cordeiro, assim não achará o Senhor falta nos sacrifícios desta Páscoa, e sem esperar pelos agradecimentos foi juntar-se à família que o recebeu sorridente e com aplauso. Jesus deu-lhes as graças quando já não podiam ouvi-las, e não se sabe como nem porquê a estrada ficou deserta nesse instante, entre uma curva e outra curva não havia mais que estes dois, o rapaz e o cordeiro, encontrados finalmente no caminho de Emaús por obra da bondade de um judeu velho. Jesus segura a ponta do baraço que prendera o anho à corda, o animal olhou o seu novo dono e baliu, fez mé-é-é-é naquele jeito tímido e trêmulo dos cordeiros que vão morrer jovens por os amarem tanto os deuses. Este som, quantas mil vezes ouvido durante a sua novel actividade de pastor, tocou o coração de Jesus em ponto de sentir que se lhe dissolviam de pena os membros, ali estava, como nunca antes desta maneira absoluta, senhor da vida e da morte de outro ser, este cordeiro branco, imaculado, sem vontade nem desejos, que levantava para ele um focinho interrogativo e confiante, via-se-lhe a língua rósea quando balia, e era róseo, por baixo da penugem, o interior das orelhas, e róseas ainda as unhas, que nunca hão-de vir a endurecer e a mudar para cascos um nome por enquanto comum aos homens. Jesus acariciou a cabeça do cordeiro, que correspondeu levantando-a e roçando-lhe a palma da mão com o nariz úmido, fazendo-o estremecer. O encantamento desfez-se como principiara, ao fundo da estrada, do lado de Emaús, apareciam já outros peregrinos num tropel esvoaçante de túnicas, alforjes e bordões, com outros cordeiros e outros louvores ao Senhor. Jesus pegou no seu anho ao colo, como uma criança, e começou a caminhar.
Não voltara a Jerusalém desde aquele distante dia em que aqui o trouxera a necessidade de saber quanto valem culpas e remorsos, e como se hão-de eles suportar na vida, se partilhados, como os bens da herança, ou por inteiro guardados, como cada um a sua própria morte. A multidão nas ruas parecia um rio de lama pardacenta que ia desaguar na grande esplanada fronteira à escadaria do Templo. Com o cordeiro nos braços, Jesus assistia ao desfilar da gente, uns que iam, outros que vinham, aqueles levando os animais ao sacrifício, estes já sem eles, de rosto alegre, gritando Aleluia, Hosana, Ámen, ou não o dizendo por não ser o próprio da ocasião, como próprio também não seria sair-se alguém a exclamar Evoé ou berrando Rip hip hurrah, ainda que, no fundo, as diferenças entre estas expressões não sejam tão grandes quanto parecem, empregamo-las como se fossem quintessências do sublime, e depois, com a continuação do tempo e do uso, ao repeti-las, perguntamo-nos, Para que serve isto, afinal, e já não sabemos responder. Por cima do Templo, a alta coluna de fumo, enovelada, contínua, mostrava a toda a terra em redor que quantos ali tinham ido a sacrificar eram directos e legítimos descendentes de Abel, aquele filho de Adão e Eva que ao Senhor, naquele tempo, oferecera primogênitos do seu rebanho e as gorduras deles, favoravelmente recebidos, enquanto seu irmão Caim, não tendo para apresentar mais do que simples frutos da terra, viu que o Senhor, sem que se soubesse até hoje porquê, deles desviou os olhos e para ele não olhou. Se esta foi a causa de matar Caim a Abel, hoje podemos viver descansados, que não se matarão estes homens uns aos outros, pois todos sacrificam, por igual, o mesmo, é ver como as gorduras crepitam, como as carnes rechinam, Deus, nas empíreas alturas, respira, comprazido, os odores da carnagem. Jesus apertou o cordeiro contra o peito, não compreende por que não aceita Deus que no seu altar se derrame uma concha de leite, sumo da existência que passa de um ser a outro ser, ou nele se espalhe, com um gesto de semeador, um punhado de trigo, matéria entre todas substantiva do pão imortal. O seu cordeiro, que ainda há pouco foi oferta admirável de um velho a um rapaz, não verá pôr-se o sol deste dia, é tempo de subir a escada do Templo, tempo de levá-lo ao cutelo e ao fogo, como se não fosse merecedor de viver ou tivesse cometido, contra o eterno guardião dos pastos e das fábulas, o crime de beber do rio da vida. Então Jesus, como se uma luz houvesse nascido dentro dele, decidiu, contra o respeito e a obediência, contra a lei da sinagoga e a palavra de Deus, que este cordeiro não morrerá, que o que lhe tinha sido dado para morrer continuará vivo, e que, tendo vindo a Jerusalém para sacrificar, de Jerusalém partirá mais pecador do que quando cá entrou, já não lhe bastavam as faltas antigas, agora caiu em mais esta, o dia chegará, porque Deus não esquece, em que terá de pagar por todas elas. Durante um momento, o temor do castigo fê-lo hesitar, mas a mente, numa rapidíssima imagem, representou-lhe a visão aterradora de um mar de sangue infinito, o sangue dos inumeráveis cordeiros e outros animais sacrificados desde a criação do homem, que para isso mesmo é que a humanidade foi posta neste mundo, para adorar e sacrificar. A tal ponto o perturbaram estas imaginações que lhe pareceu ver a escadaria do Templo alagada de vermelho, escorrendo em toalhas de degrau em degrau, e ele próprio ali, com os pés no sangue, levantando ao céu, degolado, morto, o seu cordeiro. Abstraído, Jesus era como se estivesse no interior duma bolha de silêncio, mas de repente a bolha estalou, rompeu-se em pedaços, e ele achou-se outra vez mergulhado no meio da algazarra das palavras, das bênçãos, dos apelos, dos gritos, dos cânticos, das vozes patéticas dos cordeiros, e, num instante que fez calar tudo isto, o mugido profundo, três vezes repetido, do chofar, o longo e espiralado chifre do carneiro, feito trombeta. Envolvendo o anho no alforje, como para defendê-lo duma ameaça agora iminente, Jesus correu para fora da esplanada, perdeu-se nas ruas mais estreitas, sem se preocupar com a direcção em que ia. Quando deu por si, estava no campo, saíra da cidade pela porta do norte, a de Ramalá, a mesma por onde entrara quando viera de Nazaré. Sentou-se debaixo duma oliveira, à beira da estrada, e retirou o cordeiro do alforje, ninguém se estranharia de o ver ali, pensariam, Está a descansar da caminhada, a ganhar forças para ir ao Templo levar o cordeiro, bonito é ele, não saberemos, nós, se, na ideia de quem o pensou, o bonito é o anho, ou é Jesus. Temos cá a nossa opinião, que os dois o são, mas, se tivéssemos de votar, assim à primeira vista, daríamos a maçã ao cordeiro, porém com uma condição, não crescer. Jesus está deitado de costas, segura a ponta do baraço para que o cordeiro não fuja, mas nem seria precisa a precaução, que as forças do pobrezinho estão por um fio, não é só a pouca idade, é também a agitação, esta correria, este contínuo levar e trazer, sem falar do pouco alimento que lhe foi deixado hoje pela manhã, que não convém nem é decente ir-se alguém, borrego seja ou mártir, a morrer de barriga cheia. Deitado está pois Jesus, aos poucos calmou-se-lhe a respiração, e olha o céu por entre as ramagens da oliveira que o vento move suavemente, fazendo dançar sobre os seus olhos os raios de sol que passam pelos interstícios das folhas, deve ser mais ou menos a hora sexta, a luz zenital reduz as sombras, ninguém diria que a noite virá apagar, com o seu lento sopro, este deslumbramento de agora. Jesus já descansou, agora fala ao cordeiro, Vou-te levar para o rebanho, diz, e começa a levantar-se. Na estrada passam algumas pessoas, outras vêm atrás, e quando Jesus põe os olhos nestas leva um sobressalto, o seu primeiro movimento é para fugir, mas claro que não o fará, como se atreveria, se quem ali vem é sua mãe com alguns dos seus irmãos, os mais velhos, Tiago, José e Judas, também vem Lísia, mas essa é mulher, leva menção à parte, não a que lhe caberia naturalmente se seguíssemos a ordem dos nascimentos, entre Tiago e José. Ainda não o viram. Jesus desce à estrada, tem outra vez o cordeiro ao colo, mas agora suspeita-se que o faz para ter os braços ocupados. O primeiro que dá por ele é Tiago, levanta um braço, depois fala precipitadamente para a mãe, e Maria olha, agora apressam todos o passo, por isso Jesus sente-se obrigado a fazer também a sua parte de caminho, porém, tendo o cordeiro ao colo, não pode correr, tanto tempo isto leva a explicar que parece que não queremos que estes se encontrem, mas não é isso, o amor maternal, fraternal e filial dar-lhes-ia asas, mas há reservas, certos constrangimentos, sabemos como se separaram, não sabemos que efeitos causaram tantos meses de afastamento e falta de notícias. Andando, sempre se acaba por chegar, aí estão eles, frente a frente, Jesus diz, A tua bênção, mãe, e a mãe diz, O Senhor te abençoe, meu filho. Abraçaram-se, depois foi a vez dos irmãos, Lísia veio no fim, posto o que, bem o tínhamos previsto, ninguém soube o que havia de dizer, Maria não ia perguntar ao filho, Que surpresa, por aqui, nem ele à mãe, Estava longe de te encontrar, por que vieste à cidade, o cordeiro de um e o cordeiro dos outros, que o traziam, falavam por si, é a Páscoa do Senhor, a diferença é que um vai morrer e o outro já se salvou. Nunca mais deste notícia de ti, disse Maria enfim, e neste momento soltaram-se-lhe as fontes dos olhos, era o seu primogênito que ali estava, tão alto, a cara já de homem, com uns começos de barba, e a pele escura de quem leva a vida debaixo do sol, de frente para o vento e a poeira do deserto. Não chores, mãe, tenho o meu trabalho, sou pastor, Pastor, Sim, Cuidava eu que terias seguido o ofício que teu pai te ensinou, Calhou ser pastor, é o que sou, Quando voltas para casa, Ah, isso não sei, um dia, Ao menos, vem com a tua mãe e os teus irmãos, vamos juntos ao Templo, Não vou ao Templo, mãe, Porquê, ainda tens aí o teu cordeiro, Este cordeiro não vai ao Templo, Tem defeito, Nenhum defeito, este cordeiro só morrerá quando chegar a sua hora natural, Não te compreendo, Não precisas compreender, se salvo este cordeiro é para que alguém me salve a mim, Então, não vens com a tua família, Já ia de partida, Para onde vais, Vou para onde pertenço, para o rebanho, E onde anda ele, Agora está no vale de Ayalon, Onde fica esse vale de Ayalon, Do outro lado, Do outro lado de quê, De Belém. Maria recuou um passo, tornou-se pálida, podia-se ver como envelhecera, apesar de ter apenas trinta anos, Por que falas de Belém, perguntou, Porque foi lá que encontrei o pastor que me governa, Quem é ele, e antes que o filho tivesse tempo de responder disse para os outros, Sigam, esperem por mim na porta, depois agarrou Jesus pela mão, puxou-o para a beira da estrada, Quem é ele, repetiu, Não sei, respondeu Jesus, Tem nome, Se o tem, não mo disse, chamo-lhe Pastor, nada mais, Como é, Grande, Onde estavas quando o encontraste, Na cova onde nasci, Quem te lá levou, Uma escrava chamada Zelomi que esteve no meu nascimento, E ele, Ele, quê, Que te disse, Nada que tu não saibas. Maria deixou-se cair no chão como se uma mão poderosa a tivesse empurrado, Esse homem é um demônio, Como sabes, disse-to ele, Não, a primeira vez que o vi disse-me que era um anjo, mas que o não dissesse eu a ninguém, Quando foi que o viste, No dia em que teu pai soube que eu estava grávida de ti, apareceu-nos à porta como um mendigo e disse que era um anjo, Viste-o outras vezes, Na estrada, quando fomos, teu pai e eu, a Belém, para o recenseamento, na cova onde nasceste, e na noite depois do dia em que te foste de casa, entrou no pátio, eu pensei que fosses tu, mas era ele, vi-o pela frincha da porta arrancar a árvore que estava ao lado da entrada, lembras-te, a árvore que tinha nascido no sítio onde se enterrou a tigela com a terra que brilhava, Que tigela, que terra, Nunca soubeste, foi o que o mendigo me deu antes de se ir embora, uma terra que brilhava dentro da tigela onde tinha comido o que lhe dei, Para da terra ter feito luz, seria realmente um anjo, Ao princípio acreditei que o fosse, mas o diabo também tem as suas artes. Jesus tinha-se sentado ao lado da mãe e deixara o cordeiro à vontade, Sim, já compreendi que, quando um e outro estão de acordo, não se pode distinguir um anjo do Senhor de um anjo de Satã, disse, Fica connosco, não voltes para esse homem, pede-to a tua mãe, Prometi que voltaria, cumprirei a minha palavra, Promessas ao diabo, só se for para enganá-lo, Este homem, que não é homem, bem o sei, este anjo ou este demônio acompanha-me desde que nasci e eu quero saber porquê, Jesus, meu filho, vem ao Templo com a tua mãe e com os teus irmãos, leva esse cordeiro ao altar como é teu dever e destino dele, e pede ao Senhor que te livre de possessões e maus pensamentos, Este cordeiro morrerá no seu dia, Este é o seu dia de morrer, Mãe, os cordeiros que de ti nasceram terão de morrer, mas tu não hás-de querer que morram antes do seu tempo, Cordeiros não são homens, muito menos se esses homens são filhos, Quando o Senhor mandou a Abraão que matasse seu filho Isaac, não se percebia então a diferença, Sou uma simples mulher, não te sei responder, só te peço que abandones esses maus pensamentos, Ó minha mãe, os pensamentos são o que são, sombras que passam, e não são bons nem maus em si mesmos, só as acções é que contam, Louvado seja o Senhor que me deu um filho sábio, a mim que sou uma pobre ignorante, mas sempre te digo que essa não é ciência de Deus, Também se aprende com o Diabo, E tu estás em poder dele, Se foi pelo poder dele que este cordeiro teve a sua vida salva, alguma coisa se ganhou hoje no mundo. Maria não respondeu. Vindo da porta da cidade, Tiago aproximava-se. Então Maria levantou-se, Encontrei o meu filho e tornei a perdê-lo, disse, e Jesus respondeu, Se não o tinhas perdido já, não foi agora que o perdeste. Meteu a mão no alforje, tirou o dinheiro que juntara, de esmolas todo, É quanto tenho, Tantos meses para tão pouco, Trabalho pela comida, Muito deves tu querer a esse homem que te governa, para que com tão pouco te contentes, O Senhor é o meu pastor, Não ofendas a Deus, tu que vives com um demônio, Quem sabe, minha mãe, quem sabe, pode ser que ele seja um anjo servidor doutro deus e morando noutro céu, O Senhor disse Eu sou o Senhor, não terás outro deus além de mim, Ámen, rematou Jesus. Tomou o anho nos braços e disse, Já aí vem Tiago, adeus, minha mãe, e Maria disse, Parece até que tens mais amor a esse cordeiro que à tua família, Neste momento, sim, respondeu Jesus. Sufocada de dor e indignação, Maria deixou-o e correu ao encontro do outro filho. Não se voltou nunca para trás.
Pelo lado de fora das muralhas, agora por outro caminho, atravessando os campos, Jesus começou a longa descida para o vale de Ayalon. Parou numa aldeia, comprou, com o dinheiro que a mãe não tinha querido aceitar, algum alimento, pão e figos, leite para si e para o cordeiro, era leite de ovelha, diferenças, se as havia, não se notavam, ao menos neste caso é possível aceitar que uma mãe valha a outra. A quem estranhasse vê-lo por ali àquela hora, gastando dinheiro com um cordeiro que já devia estar morto, poderíamos responder que este rapaz, antes, fora dono de dois cordeiros, que um deles foi sacrificado e está na glória do Senhor, e que a este o rejeitou o mesmo Senhor por sofrer de defeito, uma orelha rasgada, Veja, Mas a orelha está inteira, disseram, Pois se está, eu mesmo a rasgo, diria Jesus, e, pondo o cordeiro sobre os ombros, seguiu o seu caminho. Avistou o rebanho quando já a última luz da tarde declinava, mais depressa ainda porque o céu se ensombrecera de escuras nuvens baixas. Respirava-se na atmosfera a tensão que prenuncia as trovoadas, e, para confirmá-lo, o primeiro relâmpago rasgou os ares no momento preciso em que o rebanho apareceu aos olhos de Jesus. Não choveu, era uma daquelas trovoadas que denominamos secas, que assustam mais do que as outras, porque perante elas nos sentimos realmente sem defesa, sem a cortina, para lhe chamarmos assim, e que nunca imaginaríamos protectora, da chuva e do vento, em verdade esta batalha é um enfrentamento directo, entre um céu que se rasga e atroa e uma terra que estremece e se crispa, impotente para responder aos golpes. A cem passos de Jesus, uma luz deslumbrante, insuportável, fendeu de alto a baixo uma oliveira, que acto contínuo pegou fogo, ardendo com força, tal um archote de nafta. O choque e o estrondo do trovão, como se o céu se tivesse rasgado, de uma vez, entre horizonte e horizonte, atiraram Jesus ao chão, sem conhecimento. Outros dois raios caíram, um aqui, outro além, como duas decisivas palavras, e depois, aos poucos, os trovões começaram a ouvir-se mais distantes, até se perderem num murmúrio amável, uma conversa de amigos entre o céu e a terra. O cordeiro, que saíra ileso da queda, aproximou-se, passado o susto, e veio tocar com a boca a boca de Jesus, não fungou, não farejou, foi apenas um toque, e foi, quem somos nós para duvidar, o suficiente. Jesus abriu os olhos, viu o cordeiro, depois o céu escuríssimo, como uma mão negra que sufocasse o que restava do dia. A oliveira ardia ainda. Ao mover-se, Jesus sentiu dores, mas percebeu que era senhor do seu corpo, se tal se pode dizer do que, com tanta facilidade, pode ser destruído e lançado por terra. Dificilmente, conseguiu sentar-se, e, mais pelo pressentimento do tacto do que pela certificação dos olhos, comprovou que não estava queimado nem tolhido, que não tinha qualquer membro partido, e que, exceptuando uma fortíssima zoeira na cabeça, que parecia, porém, interminável, um ronco de chofar, estava vivo e são. Puxou o cordeiro para si e, indo buscar as palavras aonde não sabia que as tinha, disse, Não tenhas medo, ele só quis mostrar-te que te poderia ter morto, se quisesse, e a mim veio dizer-me que não fui eu quem te salvou a vida, mas ele. Um lento e último trovão alastrou no espaço como um suspiro, lá em baixo a mancha alvacenta do rebanho era um oásis à espera. Lutando ainda contra os membros entorpecidos, Jesus começou a descer a encosta. O cordeiro, só por cautela preso pelo baraço, trotava ao seu lado como um cãozito. Atrás deles, a oliveira ardia. E foi à luz que ela projectava, mais que à do crepúsculo que se extinguia, que Jesus viu levantar-se na sua frente, como uma aparição, a alta figura de Pastor, envolto naquele manto que parecia não ter fim, segurando o cajado com que poderia, se o levantasse, tocar as nuvens. Disse Pastor, Sabia que a trovoada estava à tua espera, E eu devia sabê-lo, disse Jesus, Que cordeiro é esse, O dinheiro que tinha não chegava para comprar o cordeiro da Páscoa, por isso pus-me à beira da estrada a pedir, mas veio um velho e deu-me este que aqui vês, Por que não o sacrificaste, Não pude, não fui capaz. Pastor sorriu, Percebo melhor agora, esperou por ti, deixou-te vir em paz até ao rebanho para mostrar, à minha vista, a sua força. Jesus não respondeu, tinha dito ao cordeiro mais ou menos o mesmo, mas não queria, ainda mal chegara, alimentar uma conversa mais sobre as razões de Deus e os seus actos. E agora, esse cordeiro, que queres fazer com ele, Nada, trouxe-o para que ficasse com o rebanho, Os cordeiros brancos são todos iguais, amanhã já não o reconhecerás no meio dos outros, Ele conhece-me, Chegará o dia em que começará a esquecer-te, além disso vai-se cansar de ser ele sempre a procurar-te, o remédio seria marcá-lo, dar-lhe um golpe numa orelha, por exemplo, Pobre bichinho, Não sei porquê, tu também estás marcado, cortaram-te o prepúcio para se saber a quem pertences, Não é o mesmo, Não devia ser, mas é. Enquanto falavam, Pastor tinha juntado alguma lenha e agora ocupava-se a acender uma fogueira, petiscando lume. Disse Jesus, Era mais fácil ir buscar ali um ramo à oliveira que está a arder, e Pastor respondeu, Ao fogo do céu há que deixá-lo consumir-se por si mesmo. O tronco da oliveira era agora uma inteira brasa, refulgindo na escuridão, o vento arrancava-lhe faúlhas, pedaços incandescentes da casca, gravetos que voavam ardendo e logo se apagavam. O céu mantinha-se pesado, insolitamente presente. Do que era seu habitual passadio fizeram Pastor e Jesus ceia, o que levou Pastor a comentar, irônico, Este ano não comes o cordeiro pascal. Jesus ouviu e calou, mas no seu íntimo não ficou contente, o seu problema, a partir de agora, iria ser a insolúvel contradição entre comer os cordeiros e não matar os cordeiros. Então, que lhe fazemos, perguntou Pastor, e continuou, O cordeiro, marca-se, ou não se marca, Não sou capaz, disse Jesus, Dá-mo cá, eu trato disso. Com um movimento rápido e firme da faca, Pastor seccionou a ponta de uma das orelhas, depois, segurando o pequeno pedaço cortado, perguntou, Que queres que lhe faça, enterro-o, deito-o fora, e Jesus, sem pensar, respondeu, Dá-mo, e deixou-o cair no fogo. Como fizeram ao teu prepúcio, disse Pastor. Da orelha do cordeiro gotejava um sangue lento, pálido, que em pouco tempo se estancaria. Das chamas, com o fumo, espalhava-se o cheiro inebriante da tenra carne queimada. Assim, ao cabo do longo dia, depois de tantas horas passadas em demonstrações pueris e presunçosas de um querer contrário, o Senhor recebia, finalmente, o que lhe era devido, quem sabe se graças àquele majestoso e atroador aviso dos trovões e coriscos, que, pela via irresistível das causalidades profundas, teria encontrado o caminho para fazer-se obedecer pelos renitentes pastores. Caiu a última gota de sangue do cordeiro, e a terra logo a bebeu, porque não estaria bem, de tão disputado sacrifício, perder-se o mais precioso.
Ora, foi este, precisamente, o animal, já transformado pelo tempo numa vulgaríssima ovelha, apenas distinta das outras em faltar-lhe a ponta duma orelha, que, passados uns três anos, veio a perder-se em umas agrestes paragens ao sul de Jericó, lindando com o deserto. Num tão grande rebanho como este, uma ovelha a mais ou a menos parece que tanto faz, mas este gado, se ainda precisamos lembrá-lo, não é como os outros, tão-pouco os pastores têm semelhanças com os que conhecemos de ver ou ouvir dizer, pelo que não se deve estranhar que Pastor, olhando de um cômoro sobranceiro, desse pela falta duma cabeça de gado sem que, para isso, tivesse tido que contá-las todas. Chamou Jesus e disse-lhe, A tua ovelha não está no rebanho, vai procurá-la, e como Jesus, em resposta, não perguntou, E como sabes tu que a ovelha é a minha, não o perguntaremos nós também. O que, sim, agora importa é vermos como, apenas entregue à sua pouca ciência dos lugares e à falível intuição de caminhos onde ninguém os tinha traçado antes, vai Jesus orientar-se neste redondo completo do horizonte. Vindo eles das bandas férteis de Jericó, onde não quiseram demorar-se por mais estimarem a tranquilidade de um contínuo vaguear do que o fácil comércio das gentes, o mais provável seria perder-se a pessoa, ou a ovelha, sobretudo se de caso pensado o tinham feito, em sítios onde a canseira de buscar alimento, por excessiva, não fosse agravante da procurada solidão. Por esta lógica, estava claro que a ovelha de Jesus, de modo dissimulado, como quem não quer a coisa, se tinha deixado ficar para trás, devendo estar agora a retouçar nos verdes da fresca margem do Jordão, à vista de Jericó, por maior segurança. Porém, a lógica não é tudo na vida, e não é raro que justamente o previsível, que o é por ser o remate mais plausível duma sequência, ou porque, simplesmente, havia sido já anunciado antes, não é raro, dizíamos, que o previsível, levado por razões que só ele conhece, acabe por escolher, para enfim revelar-se, uma conclusão por assim dizer aberrante, quer quanto ao lugar, quer quanto à circunstância. Se este é o caso, então deverá o nosso Jesus procurar a sua extraviada ovelha, não naqueles viçosos prados da retaguarda, mas na árida e requeimada secura do deserto que tem pela frente, de nada servindo aqui a fácil objecção de que a ovelha não teria decidido perder-se para ir morrer de fome e de sede, primeiro, porque ninguém sabe o que se passa realmente no cérebro duma ovelha, segundo, considerando a já referida imprevisibilidade a que o previsível recorre algumas vezes. Ao deserto irá pois Jesus, para lá se encaminha já, sem que Pastor se tenha surpreendido com a resolução, antes, calado, a aprovou, num lento e solene movimento da cabeça que, estranha ideia, podia ser também tomado como um aceno de despedida.
Este deserto de aqui não é uma daquelas largas, longas e conhecidas extensões de areia que o mesmo nome usam. Este deserto de aqui é mais um mar de secas e duras colinas arenosas, encavaladas umas nas outras, criando um labirinto inextricável de vales, no fundo dos quais mal sobrevivem umas raras plantas que parecem só feitas de espinhos e cerdas, e a que talvez pudessem atrever-se as sólidas gengivas duma cabra, mas que rasgariam, ao primeiro contacto, os beiços sensíveis duma ovelha. Este deserto de aqui é mais assustador do que os formados apenas de lisas areias ou daquelas dunas instáveis que mudam constantemente de forma e de feitio, neste deserto cada colina oculta e anuncia a ameaça que nos espera na colina seguinte, e, quando a esta chegamos, tremendo, logo sentimos que a ameaça, a mesma, passou para trás das nossas costas. Aqui, o grito que dermos não responderá, pelo eco, à voz que o atirou, o que ouviremos, sim, em resposta, é as próprias colinas gritando, ou o desconhecido, o não sabido, que nelas teima em esconder-se. Eis que, pois, munido somente do seu cajado e do alforje, Jesus entrou no deserto. Poucos passos adiante, mal acabara de cruzar o limiar do mundo, percebeu, subitamente, que as velhas sandálias que haviam sido de seu pai se lhe estavam desfazendo debaixo dos pés. Muito tinham durado, ainda assim, pela virtude remendeira das tombas nelas lançadas assiduamente, às vezes in extremis, mas agora as artes cordoeiras e sapateiras de Jesus já não podiam acudir a sandálias que tantos e tantos caminhos tinham andado e tanto suor amassado em pó. Como se estivessem obedecendo a uma ordem, esgarçavam-se os últimos fios, soltavam-se, frouxas, as tiras, partiam-se sem remédio os atilhos, em menos tempo do que o que levou a contar ficaram descalços os pés de Jesus, sobre os restos. Lembrou-se o rapaz, chamamos-lhe assim por hábito adquirido, que aos dezoito anos, sendo judeu, mais é homem feito e refeito do que mocinho adolescente, lembrou-se Jesus das suas antigas sandálias, transportadas todo este tempo no alforje como uma relíquia sentimental do passado, e, movido por uma vã esperança, tentou calçá-las. Razão tivera Pastor quando lhe disse, Pés que crescem não voltam a encolher, a Jesus custava-lhe a entender que alguma vez os seus pés tivessem podido caber nestas sandálias minúsculas. Estava descalço frente ao deserto, como Adão quando o expulsaram do paraíso, e, tal como ele, hesitou antes de dar o primeiro doloroso passo sobre o torturado chão que o chamava. Mas depois, sem ter-se perguntado por que o ia fazer, talvez só porque de Adão se lembrara, deixou cair o alforje e o cajado, e, levantando a túnica pela fímbria, fê-la sair por cima da cabeça num só gesto, ficando, como Adão, nu. Aqui, onde está, já não o vê Pastor, nenhum borrego curioso o seguiu, do ar veem-no apenas os poucos pássaros que por esta fronteira ainda se atrevem, e os bichos da terra, que são formigas, alguma escolopendra, um lacrau que, de susto, levanta o aguilhão venenoso, estes não têm memória de homem nu nestes sítios, nem sabem para que serve. Se o perguntassem a Jesus, Por que te desnudaste, talvez ele respondesse de uma maneira incompreensível para o entendimento de heminópteros, miriápodes e aracnídeos, Ao deserto só é possível ir nu. Nu, dizemos nós, apesar dos espinhos que rasgam a pele e arrepelam os pelos do púbis, nu apesar das arestas que cortam e das areias que esfolam, nu apesar do sol que queima, reverbera e deslumbra, nu, enfim, para procurar a ovelha perdida, aquela que nos pertence porque com a nossa marca a marcamos. O deserto abre-se aos passos de Jesus, para logo se fechar, como se lhe cortasse o caminho de retirada. O silêncio ressoa nos ouvidos com o som de um búzio, daqueles que vêm mortos e vazios à praia e ali se deixam ficar, a encherem-se do vasto rumor das ondas, até que alguém passa e os encontra e, levando-os devagar ao ouvido, põe-se à escuta e diz, O deserto. Os pés de Jesus sangram, o sol afasta as nuvens para feri-lo de espada nos ombros, os espinhos cortam-lhe a pele das pernas como unhas sôfregas, as cerdas chicoteiam-no, Ovelha, onde estás, grita ele, e as colinas passam palavra, Onde estás, onde estás, dissessem elas isto apenas e saberíamos, enfim, o que é o eco perfeito, mas o longo e remoto som do búzio sobrepõe-se, murmurando, Deeeeeeuuus, Deeeeeeuuus, Deeeeeeuuus. Então, como se de súbito as colinas se tivessem arredado do seu caminho, Jesus saiu do labirinto dos vales para um espaço circular liso e arenoso onde, no centro exacto, viu a ovelha. Correu para ela, tanto quanto lho permitiam os pés feridos, mas uma voz deteve-o, Espera. Uma nuvem da altura de dois homens, que era como uma coluna de fumo girando lentamente sobre si mesma, estava diante dele, e a voz viera da nuvem. Quem me fala, perguntou Jesus, arrepiado, mas adivinhando já a resposta. A voz disse, Eu sou o Senhor, e Jesus soube por que tivera de despir-se no limiar do deserto. Trouxeste-me aqui, que queres de mim, perguntou, Por enquanto nada, mas um dia hei-de querer tudo, Que é tudo, A vida, Tu és o Senhor, sempre vais levando de nós as vidas que nos dás, Não tenho outro remédio, não podia deixar atravancar-se o mundo, E a minha vida, querê-la para quê, Não é ainda tempo de o saberes, ainda tens muito que viver, mas venho anunciar-te, para que vás bem dispondo o espírito e o corpo, que é de ventura suprema o destino que estou a preparar para ti, Senhor, meu Senhor, não compreendo nem o que dizes nem o que queres de mim, Terás o poder e a glória, Que poder, que glória, Sabê-lo-ás quando chegar a hora de te chamar outra vez, Quando será, Não tenhas pressa, vive a tua vida como puderes, Senhor, eis-me aqui, se nu me trouxeste diante de ti, não demores, dá-me hoje o que tens guardado para dar-me amanhã, Quem te disse que tenciono dar-te alguma coisa, Prometeste, Uma troca, nada mais que uma troca, A minha vida por não sei que pago, O poder, E a glória, não me esqueci, mas se não me dizes que poder, e sobre quê, que glória, e perante quem, será como uma promessa que veio cedo de mais, Tornarás a encontrar-me quando estiveres preparado, mas os meus sinais acompanhar-te-ão desde agora, Senhor, diz-me, Cala-te, não perguntes mais, a hora chegará, nem antes nem depois, e então saberás o que quero de ti, Ouvir-te, meu Senhor, é obedecer, mas tenho de fazer-te ainda uma pergunta, Não me aborreças, Senhor, é preciso, Fala, Posso levar a minha ovelha, Ah, era isso, Sim, era só isso, posso, Não, Porquê, Porque ma vais sacrificar como penhor da aliança que acabo de celebrar contigo, Esta ovelha, Sim, Sacrifico-te outra, vou ali ao rebanho e volto já, Não me contraries, quero esta, Mas repara, Senhor, que tem defeito, a orelha cortada, Enganas-te, a orelha está intacta, repara, Como é possível, Eu sou o Senhor, e ao Senhor nada é impossível, Mas esta é a minha ovelha, Outra vez te enganas, o cordeiro era meu e tu tiraste-mo, agora a ovelha paga a dívida, Seja como queres, o mundo todo pertence-te e eu sou o teu servo, Sacrifica então, ou não haverá aliança, Mas vê, Senhor, que estou nu, não tenho cutelo nem faca, estas palavras disse-as Jesus cheio de esperança de poder ainda salvar a vida da ovelha, e Deus respondeu-lhe, Não seria eu o Senhor se não pudesse resolver-te essa dificuldade, aí tens. Palavras não eram ditas, apareceu aos pés de Jesus um cutelo novo, Vá, despacha-te, tenho mais que fazer, disse Deus, não posso ficar aqui eternamente. Jesus empunhou o cutelo, avançou para a ovelha que levantava a cabeça, hesitante em reconhecê-lo, pois nunca o tinha visto nu, e, como é por de mais sabido, o olfacto destes animais não vale grande coisa. Estás a chorar, perguntou Deus, Tenho os olhos sempre assim, disse Jesus. O cutelo subiu, tomou o ângulo do golpe, e caiu velozmente como o machado das execuções ou a guilhotina que ainda falta inventar. A ovelha não soltou um som, apenas se ouviu, Aaaah, era Deus suspirando de satisfação. Jesus perguntou, E agora, posso-me ir embora, Podes, e não te esqueças, a partir de hoje pertences-me, pelo sangue, Como devo ir-me de ti, Em princípio, tanto faz, para mim não há frente nem costas, mas o costume é ir recuando e fazendo vênias, Senhor, Que enfadonho és, homem, que temos mais agora, O pastor do rebanho, Que pastor, O que anda comigo, Quê, É um anjo, ou um demônio, alguém que eu conheço, Mas diz-me, é anjo, é demônio, Já to disse, para Deus não há frente nem costas, passa bem. A coluna de fumo estava e deixou de estar, a ovelha desaparecera, só o sangue ainda se percebia, e esse procurava esconder-se na terra.
Quando Jesus chegou ao campo, Pastor olhou-o fixamente e perguntou, A ovelha, e ele respondeu, Encontrei Deus, Não te perguntei se encontraste Deus, perguntei-te se achaste a ovelha, Sacrifiquei-a, Porquê, Deus estava lá, teve de ser. Com a ponta do cajado, Pastor fez um risco no chão, fundo como rego de arado, intransponível como uma vala de fogo, depois disse, Não aprendeste nada, vai.

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