segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo XI)


Assim foram passando os meses, as notícias da guerra continuavam a chegar, ora boas, ora más, mas enquanto as notícias boas nunca iam além dumas vagas alusões a vitórias que sempre resultavam pequenas, as más notícias, essas, já começavam a falar de pesadas e sangrentas derrotas do exército guerrilheiro de Judas o Galileu. Um dia trouxeram notícia de que morrera Baldad numa emboscada de guerrilha que os romanos tinham surpreendido, assim se virando o feitiço contra o feiticeiro, tinha havido muitos mortos, mas de Nazaré só aquele. E outro dia alguém veio dizer que ouvira dizer a quem tinha ouvido dizer que Varo, o governador romano da Síria, vinha aí com duas legiões de tropas para acabar de uma vez com a intolerável insurreição, que levava já três anos. Esta mesma maneira vaga de anunciar, Vem aí, pela sua imprecisão, difundia entre a gente um sentimento insidioso de temor, como se a qualquer momento fossem aparecer na volta do caminho, alçadas à cabeça da coluna punitiva, as temíveis insígnias da guerra e a sigla com que aqui se homologam e selam todas as acções, SPQR, o senado e o povo de Roma, em nome de coisas tais, letras, livros e bandeiras, é que as pessoas se andam a matar umas às outras, como será também o caso doutra conhecida sigla, INRI, Jesus de Nazaré Rei dos Judeus, e suas sequelas, porém não nos ponhamos já a antecipar, deixemos que o preciso tempo passe, por agora, e causa uma impressão de estranheza sabê-lo e poder dizê-lo, como se doutro mundo estivéssemos a falar, ainda não morreu ninguém por causa dela Por toda a parte se anunciam grandes batalhas, prometendo os de mais robusta fé que não passará este ano sem que os romanos sejam expulsos da santa terra de Israel, mas também não faltam outros que, ouvindo estas abondanças, abanam tristemente a cabeça e começam a deitar contas ao desastre que se aproxima. E assim foi. Durante algumas semanas depois de ter corrido a notícia do avanço das legiões de Varo, nada aconteceu, com o que lucraram os guerrilheiros para redobrar as acções de flagelação da dispersa tropa com que vinham lutando, mas a razão estratégica dessa aparente inactividade não tardou a ser conhecida, quando os esculcas do Galileu passaram palavra de que uma das legiões havia seguido para o sul, em manobra de envolvimento, ao longo do rio Jordão, rodando depois sobre a direita à altura de Jericó, para, tal uma rede lançada à água e puxada por mão sábia, recomeçar o movimento em direcção ao norte, como uma espécie de laçadeira colhendo aqui e além, enquanto a outra legião, seguindo um método semelhante, se movia para o sul. Poderíamos chamar-lhe a táctica da tenaz se não fosse mais o movimento concertado de duas paredes que se vão aproximando e atropelando aqueles que não podem escapar, mas que guardam para o instante final o efeito maior, o esmagamento. Nos caminhos, vales e cabeços da Judeia e da Galileia, o avanço das legiões ia ficando marcado pelas cruzes onde morriam, cravados de pés e mãos, os combatentes de Judas, aos quais, para mais depressa os rematarem, se partiam, a golpes de malho, as tíbias. Os soldados entravam nas aldeias revistavam casa por casa procurando suspeitos, que para levar estes homens ao crucifixo não eram precisas mais certezas do que as que pode oferecer, querendo, a simples suspeita. Esses infelizes, com perdão da triste ironia, ainda tinham sorte, porque, sendo crucificados por assim dizer à porta de casa, logo acudiam os parentes a retirá-los depois de haverem expirado, e então era um espectáculo lastimoso de ver e ouvir, os choros das mães, das esposas e das noivas, os gritos das pobres crianças que ficavam sem pai, enquanto o martirizado homem era descido da cruz com mil cautelas, pois não há nada mais pungente que a queda desamparada dum corpo morto, tanto que até aos próprios vivos parece doer o choque. Depois o crucificado era levado ao túmulo, onde ficava esperando o seu dia de ressurreição. Mas outros havia que, tendo sido apanhados em combate travado nas montanhas ou outros sítios desabitados, eram deixados ainda vivos pelos soldados e, agora sim, no mais absoluto de todos os desertos, o da morte solitária, ali ficavam, cozidos lentamente pelo sol, expostos às aves carniceiras, e, passando o tempo, desgarravam-se-lhes as carnes e os ossos, reduzidos a um mísero despojo sem forma que à própria alma repugna. Pessoas curiosas, senão cépticas, já noutras ocasiões convocadas a contrariar o sentimento de resignação com que em geral são recebidas as informações constantes de evangelhos como este, gostariam de saber como foi possível aos romanos crucificarem tão grande quantidade de judeus, mormente nas enormes áreas desarborizadas e desérticas que por aqui abundam, onde, e é quando é, não se consegue encontrar mais do que umas raquíticas e ralas vegetações, que decididamente não aguentariam nem a crucificação de um espírito. Esquecem essas pessoas que o exército romano é um exército moderno, para o qual logística e intendência não são palavras vãs, o abastecimento de cruzes, ao longo desta campanha, tem sido amplamente assegurado, veja-se a extensa récua de burros e mulas que segue no couce da legião, transportando as peças soltas, a crux e o patibulum, o pau vertical e a travessa, que, chegando ao sítio, é só pregar os braços abertos do condenado à travessa, içá-lo até ao alto do pau espetado no chão, e depois, tendo-o feito primeiro encolher as pernas para um lado, fixar com um único cravo de palmo, à crux, os dois calcanhares sobrepostos. Qualquer carrasco da legião dirá que esta operação, só aparentemente complexa, é afinal mais difícil de explicar que de executar.
A hora é de desastre, tinham razão os pessimistas. Do norte para o sul e do sul para o norte, há gente em pânico que vem fugindo à frente das legiões, alguns sobre quem poderiam recair suspeitas de terem ajudado os guerrilheiros, outros movidos pelo puro medo, já que, como sabemos, não é preciso ter culpa para ser-se culpado. Ora, um desses fugitivos, detendo por instantes a retirada, veio bater à porta do carpinteiro José para lhe dizer que o seu vizinho Ananias se encontrava em Séforis, maltratado de golpes de espada, e que, este era o recado, Está a guerra perdida e eu não escapo, já podes mandar avisar minha mulher para que venha tomar conta do que lhe pertence, Nada mais, perguntou José, Outra palavra não disse, respondeu o mensageiro, E tu, por que não o trouxeste contigo, se por aqui tinhas de passar, No estado em que ele está atrasar-me-ia o passo, e eu tenho a minha própria família, que devo proteger em primeiro lugar, Em primeiro lugar, sim, mas não apenas, Que queres dizer, vejo-te aí rodeado de filhos, se não foges com eles é porque não estás em perigo, Não te demores, vai, e que o Senhor te acompanhe, o perigo é onde o Senhor não estiver, Homem sem fé, o Senhor está em toda a parte, Sim, mas às vezes não olha para nós, e tu não fales de fé, porque a ela faltaste ao abandonares o meu vizinho, Por que não vais tu buscá-lo, então, Irei. Foi isto pelo meio da tarde, o dia estava bonito, de sol, com umas nuvens muito brancas, esparsas, que vogavam pelo céu fora como barcas que não precisassem de governo. José foi desprender o burro, chamou a mulher e disse-lhe, sem outras explicações, Vou a Séforis buscar o vizinho Ananias, que não pode andar por seu pé. Maria apenas fez um gesto de assentimento com a cabeça, mas Jesus foi-se para o pai, Posso ir contigo, perguntou. José olhou o filho, pôs-lhe a mão direita sobre a cabeça e disse, Fica em casa, eu vou e não tardo, andando lesto para lá talvez ainda regresse a casa com luz de dia, e bem poderia ser, pois, como sabemos, a distância de Nazaré a Séforis não vai além de uns oito quilómetros, o mesmo que de Jerusalém a Belém, em verdade, digamo-lo uma vez mais, o mundo está cheio de coincidências. José não montou no burro, queria que o animal estivesse fresco para a volta, rijo de canelas e firme de mãos, suave de lombo, como convém a quem terá de transportar um enfermo, ou, melhor dizendo, um ferido da guerra, que é diferente patologia. Ao passar pelo sopé da colina onde, há quase um ano, Ananias lhe comunicara a sua decisão de juntar-se aos rebeldes de Judas da Galileia, o carpinteiro levantou os olhos para as três grandes pedras que, lá no alto, juntas como gomos de um fruto, pareciam estar esperando que do céu e da terra lhes chegasse a resposta às perguntas que fazem todos os seres e coisas, apenas por existirem, ainda que as não pronunciem, Por que estou aqui, Que razão conhecida ou ignorada me explica, Como será o mundo em que eu não estiver, sendo este o que é. A Ananias, se fosse ele a perguntar, poderíamos responder que as pedras, ao menos, continuam como dantes, se o vento, a chuva e o calor as morderam e desgastaram foi quase nada, e que passados vinte séculos provavelmente ainda lá estarão, e outros vinte séculos depois desses vinte, o mundo transformando-se ao redor, mas para as duas perguntas primeiras é que continua a não haver resposta. Pela estrada vinham bandos de pessoas fugidas, com aquele mesmo ar de susto que tinha o mensageiro de Ananias, olhavam José com surpresa, e um dos homens reteve-o por um braço e disse, Aonde vais, e o carpinteiro respondeu, A Séforis, por um amigo, Se és amigo de ti mesmo, não vás, Porquê, Os romanos estão-se a aproximar, a cidade não tem salvação, Devo ir, o meu vizinho é o meu irmão, não há mais ninguém para ir buscá-lo, Pensa bem, e o prudente conselheiro seguiu o seu caminho, deixando José parado no meio da estrada, às voltas com o pensamento, se de facto seria amigo de si mesmo ou se, de mais havendo razões para tal, se detestava ou desprezava, e, tendo pensado um pouco, concluiu que nem uma coisa nem outra, olhava para si mesmo com um sentimento de indiferença, como se olha o vazio, no vazio não há perto nem longe onde parar os olhos, em verdade, não é possível fixar uma ausência. Depois pensou que a sua obrigação de pai era voltar para trás, afinal ele tinha os seus próprios filhos para proteger, para quê ir-se à procura de alguém que não era mais que um vizinho, e agora nem tanto, pois tinha deixado a casa e mandado a mulher para outra terra. Porém, os filhos estavam seguros, os romanos não lhes iriam fazer mal, andavam, sim, à procura de rebeldes. Quando o fio do pensamento o levou a esta conclusão, José achou-se a dizer em voz alta, como se respondesse a uma preocupação escondida, E eu também não sou rebelde. Acto contínuo, deu uma palmada na anca do animal, exclamou, Xô, burro, e continuou o seu caminho.
Quando entrou em Séforis, a tarde declinava. As longas sombras das casas e das árvores, primeiro estendidas no chão e ainda reconhecíveis, iam-se perdendo aos poucos, como se tivessem chegado ao horizonte e aí se sumissem, iguais a uma água escura caindo em cascata. Havia pouca gente nas ruas da cidade, nenhuma mulher, nenhuma criança, apenas homens cansados que pousavam as frágeis armas e se deitavam, arquejantes, não se sabia se do combate de que vinham ou de terem fugido dele. A um desses homens José perguntou, Os romanos vêm perto. O homem fechou os olhos, depois lentamente abriu-os e disse, Estarão aqui amanhã, e desviando o olhar, Vai-te embora, leva o teu burro e vai-te embora, Ando à procura de um amigo que foi ferido, Se os teus amigos são todos os que se encontram feridos, és o homem mais rico do mundo, Onde é que estão, Por aí, em toda a parte, aqui mesmo, Mas há algum lugar na cidade, Há, sim, por trás dessas casas, um armazém, aí está uma quantidade de feridos, talvez lá encontres o teu amigo, mas depressa, que já são mais os que são tirados mortos do que os que ainda entram vivos. José conhecia a cidade, estivera aqui não poucas vezes, tanto por razões de ofício, quando viera trabalhar em obras vultosas, muito comuns na rica e próspera Séforis, como também por ocasião de certas festas religiosas menos importantes, que em verdade não teria sentido andar sempre a caminho de Jerusalém, com o longe que está e o custoso que é lá chegar. Descobrir o armazém foi portanto fácil, aliás bastava seguir um cheiro de sangue e corpos sofredores que pairava, podia-se até imaginar um jogo como o do Quente, quente, Frio, frio, consoante se aproximasse ou afastasse o buscador, Dói, Não dói, agora as dores já eram insuportáveis. José atou o burro a uma comprida trízia que ali havia e entrou na escura camarata em que o armazém fora transformado. No chão, entre as esteiras, havia umas lamparinas acesas que pouco iluminavam, eram como pequenas estrelas no céu negro, sem mais luz que a suficiente para assinalarem o seu lugar, se de tão longe as vemos. José percorreu devagar as filas de homens deitados, à procura de Ananias, no ar havia outros cheiros fortes, o do azeite e do vinho com que se curavam as feridas, o do suor, o das fezes e da urina, que alguns destes desgraçados nem mover-se podiam e ali mesmo onde estavam deixavam sair o que o corpo, mais forte que a vontade, deixara de querer guardar. Não está aqui, disse consigo mesmo José quando chegou ao final da correnteza. Recomeçou a andar em sentido contrário, mais lentamente, perscrutando, procurando sinais de semelhança, e em verdade eram todos parecidos uns com os outros, as barbas, os rostos cavados, as órbitas fundas, o brilho baço e pegajoso do suor. Alguns dos feridos seguiam-no com um olhar ansioso, tinham querido acreditar que este homem são viera por eles, mas depois extinguia-se o breve clarão que animara os seus olhos, e a espera, de quem, para quê, continuava. Diante de um homem idoso, de barba e cabelo todos brancos, José parou, É ele, disse, e contudo não estava assim quando o vira pela última vez, brancas, sim, tinha-as, e muitas, mas não esta espécie de neve suja, no meio da qual as sobrancelhas, como tições, conservavam o negrume de antes. O homem tinha os olhos fechados e respirava pesadamente. Em voz baixa, José chamou, Ananias, depois mais alto e mais perto, Ananias, e, aos poucos, como se se erguesse já das profundas da terra, o homem foi levantando as pálpebras e quando as abriu de todo viu-se que era mesmo Ananias, o vizinho que deixara a casa e a mulher para ir combater contra os romanos e agora aqui está, com feridas abertas no ventre e um cheiro de carne que começa a apodrecer. Ananias, primeiro, não reconheceu José, a luz da enfermaria não ajuda, a dos seus olhos ainda menos, mas sabe definitivamente que é ele quando o carpinteiro repete, agora num tom diferente, talvez de amor, Ananias, os olhos do velho inundam-se de lágrimas, diz uma vez, diz duas vezes, És tu, és tu, que vieste cá fazer, que vieste cá fazer, e quer levantar-se sobre um cotovelo, estender o braço, mas as forças faltam-lhe, o corpo descai, toda a cara se lhe contorce de dor. Venho buscar-te, disse o carpinteiro, tenho o burro lá fora, estaremos em Nazaré num abrir e fechar de olhos, Não devias ter vindo, os romanos não tardam, e eu não posso sair daqui, esta é a minha última cama de vivo, e com as mãos trémulas abriu a túnica rasgada. Por baixo de uns panos ensopados em vinho e azeite percebiam-se os ferozes lábios de duas feridas longas e fundas, no mesmo instante um odor adocicado e nauseabundo de podridão fez estremecer as narinas de José, que desviou os olhos. O velho tapou-se, deixou cair os braços ao lado como se o esforço o tivesse esgotado, Já vês que não me podes levar, caíam-se-me as tripas da barriga se me levantasses daqui, Com uma faixa apertada à volta do corpo e indo devagar, insistiu José, porém já sem nenhuma convicção, era evidente que o velho, supondo que seria capaz de subir para o burro, iria ficar-se pelo caminho. Ananias fechara outra vez os olhos e foi sem os abrir que disse, Vai-te embora, José, vai para casa, olha que os romanos não tardam aí, Os romanos não virão atacar de noite, descansa, Vai para casa, vai para casa, suspirou Ananias, e José disse, Dorme.
Toda a noite José velou. Alguma vez, com o espírito flutuando nas primeiras névoas de um sono que temia e a que por esta razão de agora igualmente resistia, José perguntou a si mesmo por que viera a este sítio, se era verdade que nunca tinha havido entre ele e o vizinho verdadeira amizade, pela diferença das idades, em primeiro lugar, mas também por uma certa maneira mesquinha de ser de Ananias e da mulher, curiosos, metediços, por um lado prestáveis, mas logo dando a ideia de ficarem à espera duma compensação cujo valor só a eles competiria fixar. É o meu vizinho, pensou José, e não encontrava melhor resposta para as suas dúvidas, é o meu próximo, um homem que está a morrer, fechou os olhos, não é que não queira ver-me, o que não quer é perder nenhum movimento da morte que se aproxima, e eu não posso deixá-lo sozinho. Tinha-se sentado no estreito espaço entre a esteira onde jazia Ananias e outra onde estava um rapaz novo, pouco mais velho que seu filho Jesus, o pobre moço gemia baixinho, murmurava palavras incompreensíveis, a febre rebentara-lhe os lábios. José segurou-lhe na mão para acalmá-lo, no mesmo momento em que também a mão de Ananias, tacteando cega, parecia procurar algo, uma arma para se defender, outra mão para apertar, e foi assim que ficaram os três, um vivo entre dois moribundos, uma vida entre duas mortes, enquanto o tranquilo céu nocturno ia fazendo rodar as estrelas e os planetas, lá para diante trazendo do outro lado do mundo uma lua branca, refulgente, que boiava no espaço e cobria de inocência toda a terra de Galileia. Muito tarde, José saiu do torpor em que, sem querer, caíra, despertou com um sentimento de alívio porque desta vez não tinha sonhado com a estrada de Belém, abriu os olhos e viu, Ananias estava morto, de olhos abertos também, no último instante não suportara a visão da morte, a mão dele apertava a sua com tanta força que lhe comprimia os ossos, então, para poder libertar-se da angustiadora sensação, soltou a mão que segurava a do rapaz, e, ainda num estado de meia consciência, percebeu que a febre deste baixara. José olhou para fora, pela porta aberta, a lua já se pusera, agora a luz era a da madrugada, imprecisa e pardacenta. No armazém moviam-se vagos vultos, eram os feridos que podiam levantar-se, iam olhar o primeiro anúncio do dia, podiam ter perguntado uns aos outros ou directamente ao céu, Que verá este sol que vai nascer, alguma vez aprenderemos a não fazer perguntas inúteis, mas enquanto esse tempo não chega aproveitemos para perguntar-nos, Que verá este sol que vai nascer. José pensou, Vou-me embora, aqui já não posso nada, havia também nas suas palavras um tom interrogativo, tanto assim que prosseguiu, Posso levá-lo para Nazaré, e a lembrança pareceu-lhe de tal maneira óbvia que acreditou que para isso mesmo é que viera, encontrar Ananias vivo e transportá-lo morto. O rapaz pediu água. José chegou-lhe um púcaro de barro à boca, Como te sentes, perguntou, Menos mal, Pelo menos, parece que se te baixou a febre, Vou ver se consigo levantar-me, disse o rapaz, Tem cuidado, e José reteve-o, ocorrera-lhe de súbito outra ideia, a Ananias não podia fazer-lhe nada mais que o enterro em Nazaré, mas, ao rapaz, donde quer que ele fosse, ainda podia salvar-lhe a vida, tirá-lo do fúnebre depósito, um vizinho, por assim dizer, tomava o lugar doutro vizinho. Já não sentia pena de Ananias, apenas um corpo vazio, a alma mais e mais distante de cada vez que o olhava. O rapaz parecia perceber que algo bom para si estaria talvez a acontecer, os olhos brilharam-lhe, mas não chegou a fazer nenhuma pergunta porque José já saíra, ia buscar o burro, trazê-lo para dentro, abençoado seja o Senhor que sabe pôr na cabeça dos homens tão excelentes ideias. O burro não estava lá. Da sua presença não ficara mais que uma ponta de corda atada ao barrote, o ladrão não perdera tempo a desatar o simples nó, uma faca afiada fez o trabalho mais depressa.
As forças de José cederam de golpe diante do desastre. Como um vitelo fulminado, daqueles que vira sacrificar no Templo, caiu de joelhos e, com as mãos contra o rosto, soltaram-se-lhe de uma vez as lágrimas, todas aquelas lágrimas que há treze anos vinha acumulando, à espera do dia em que pudesse perdoar-se a si mesmo ou tivesse de enfrentar a sua definitiva condenação. Deus não perdoa os pecados que manda cometer. José não voltou ao armazém, compreendera que o sentido das suas acções se perdera para sempre, nem o mundo, o próprio mundo, tinha já sentido, o sol estava a nascer, e para quê, Senhor, no céu havia mil pequenas nuvens, espalhadas em todas as direcções como as pedras do deserto. Vendo-o ali, a enxugar as lágrimas na manga da túnica, qualquer pessoa pensaria que lhe tinha morrido um parente entre os feridos recolhidos no armazém, quando o certo era que José acabara de chorar as suas últimas lágrimas naturais, as da dor da vida. Quando, depois de ter vagueado pela cidade durante mais de uma hora, ainda com uma última esperança de encontrar o animal roubado, se dispunha a regressar a Nazaré, prenderam-no os soldados romanos que tinham cercado Séforis. Perguntaram-lhe quem era, Sou José filho de Heli, donde vinha, De Nazaré, ia para onde, Para Nazaré, que fazia em Séforis neste dia, Alguém me disse que um vizinho meu estava aqui, quem era esse vizinho, Ananias, se o tinha encontrado, Sim, onde o encontrara, Num armazém com outros, outros quê, Feridos, em que parte da cidade, Além. Levaram-no para uma praça onde já estavam uns quantos homens, doze, quinze, sentados no chão, alguns deles com ferimentos visíveis, e disseram-lhe, Senta-te com esses. José, percebendo que os homens que ali estavam eram rebeldes, protestou, Sou carpinteiro e gente de paz, e um dos que estavam sentados disse, Não conhecemos este homem, mas o sargento que comandava a guarda dos prisioneiros não quis saber, com um empurrão fez cair José no meio dos outros, Daí só sais para ires morrer. No primeiro instante, o duplo choque, da queda e da sentença, deixou José sem pensamentos. Depois, quando se recompôs, viu que dentro de si havia uma grande tranquilidade, como se tudo isto fosse um sonho mau do qual tivesse a certeza de que viria a acordar e portanto não valia a pena atormentar-se com as ameaças, pois elas se dissipariam assim que abrisse os olhos. Então lembrou-se de que quando sonhava com a estrada de Belém também tinha a certeza de acordar, e no entanto, de repente começou a tremer, a brutal evidência do seu destino tornara-se-lhe enfim clara, Vou morrer, e vou morrer inocente. Sentiu que uma mão se pousava no seu ombro, era o vizinho, Quando vier o comandante da coorte dizemos-lhe que não tens nada que ver connosco, e ele manda-te em paz, E vocês, Os romanos têm-nos crucificado a todos, quando nos apanham, com certeza não será diferente desta vez, Deus vos salvará, Deus salva as almas, não salva os corpos. Trouxeram mais homens, dois, três, a seguir um grupo numeroso, de uns vinte. À volta da praça tinham-se juntado habitantes de Séforis, mulheres e crianças de mistura com os varões, ouvia-se-lhes o murmúrio inquieto, mas dali não podiam sair enquanto os romanos não autorizassem, já muita sorte tinham por não serem suspeitos de andar com os rebeldes. Ao cabo de algum tempo foi trazido outro homem, os soldados que o traziam disseram, Não há mais por agora, e o sargento gritou, De pé, todos. Julgaram os presos que era o comandante da coorte que se aproximava, o vizinho de José disse, Prepara-te, queria ele dizer, Prepara-te para ficares livre, como se para a liberdade fosse preciso preparação, mas se alguém vinha não era o comandante da coorte, nem chegou a saber-se quem fosse, pois que o sargento, sem pausa, dera em latim uma ordem aos soldados, faltou dizer que tudo quanto até agora tem sido dito por romanos em latim o foi sempre, que não se rebaixam os filhos da Loba a aprender línguas bárbaras, para isso lá estão os intérpretes, porém, neste caso, sendo a conversa dos militares uns com os outros, não se necessitava tradução, rapidamente os soldados rodearam os prisioneiros, Marche, e o cortejo, levando os condenados à frente, seguidos pela população, encaminhou-se para fora da cidade. Ao ver-se levado assim, sem ter a quem pedir mercê, José ergueu os braços e deu um grito, Salvai-me que eu não sou destes, salvai-me que estou inocente, mas veio um soldado e com o coto da lança deu-lhe uma estocada nas costas que quase o atirou ao chão. Estava perdido. Desesperado, odiou Ananias, por culpa de quem ia morrer, mas este mesmo sentimento, depois de o ter queimado todo por dentro, desapareceu como viera, deixando o seu ser como um deserto, agora era como se pensasse, Não há mais para onde ir, engano seu, que já falta pouco para lá chegar. Ainda que custe a crer, a certeza da morte próxima acalmou-o. Olhou à sua volta os companheiros de martírio, caminhavam serenos, alguns, sim, sucumbidos, mas os outros de cabeça levantada. Eram, na sua maioria, fariseus. Então, pela primeira vez, José lembrou-se dos filhos, também teve um pensamento, fugaz, para a mulher, mas eram tantos aqueles rostos e nomes que a sua esvaída cabeça, sem dormir, sem comer, foi deixando pelo caminho uns atrás de outros, até não lhe restar mais que Jesus, seu filho primeiro nascido, seu castigo derradeiro. Lembrou-se de como tinham conversado sobre o seu sonho, de como lhe tinha dito, Nem tu podes fazer-me todas as perguntas, nem eu posso dar-te todas as respostas, agora chegava ao fim o tempo de responder e perguntar.
Fora da cidade, numa pequena elevação de terreno que a dominava, estavam cravados verticalmente, em filas de oito, quarenta grossos paus, robustos quanto bastava para aguentar um homem. Ao pé de cada um deles, no chão, havia um barrote comprido, o suficiente para receber um homem de braços abertos. À vista dos instrumentos do suplício, alguns dos condenados tentaram escapar-se, mas os soldados sabiam do seu ofício, de gládio em punho cortaram-lhes a fuga, um dos rebeldes tentou espetar-se na arma, porém sem resultado, que logo foi arrastado para a primeira crux. Começou então o vagaroso trabalho de cravar os condenados cada um ao seu barrote e içá-los sobre a grande estaca vertical. Ouviam-se por todo o campo gritos e gemidos, a gente de Séforis chorava perante o triste espectáculo a que, para escarmento, era obrigada a assistir. Aos poucos foram-se formando as cruzes, cada uma com seu homem pendurado, de pernas encolhidas, como antes já foi dito, perguntamo-nos porquê, talvez por uma ordem de Roma visando a racionalização do trabalho e a economia do material, qualquer pessoa pode observar, mesmo sem experiência de crucificações, que a crux, sendo para homem completo, não reduzido, teria de ser alta, logo maior dispêndio de madeira, maior peso a transportar, maiores dificuldades de manejo, ainda se acrescentando a circunstância, proveitosa aos condenados, de que, ficando-lhes os pés mesmo ao rasinho do chão, facilmente podiam ser despregados, sem necessidade de escadas de mão, passando por assim dizer directamente dos braços da cruz para os braços da família, se a tinham, ou dos coveiros de ofício, que os não deixariam ali ao abandono. José foi o último a ser crucificado, calhou assim, por isso teve de assistir, um por um, ao tormento dos seus trinta e nove companheiros desconhecidos, e, quando a sua vez chegou, perdida já de todo a esperança, não teve força nem para repetir os protestos da sua inocência, falhou talvez a oportunidade de salvar-se quando o soldado que tinha o martelo disse ao sargento, Este é o que se dizia sem culpa, o sargento hesitou um instante, exactamente o instante em que José deveria ter gritado, Estou inocente, mas não, calou-se, desistiu, então o sargento olhou, terá pensado que a precisão simétrica sofreria se a última crux não fosse usada, que quarenta é uma conta redonda e perfeita, fez um gesto, os cravos foram espetados, José gritou e continuou a gritar, depois levantaram-no em peso, suspenso dos pulsos atravessados pelos ferros, e depois mais gritos, o prego comprido que lhe furava os calcanhares, oh meu Deus, este é o homem que criaste, louvado sejas, já que não é lícito maldizer-te. De repente, como se alguém tivesse dado sinal, os habitantes de Séforis romperam num clamor aflito, mas não foi o dó dos condenados, por toda a cidade estavam a rebentar incêndios, as chamas, rugindo, como um rastilho de fogo grego, devoravam as casas dos moradores, os edifícios públicos, as árvores dos pátios interiores. Indiferentes ao fogo que outros soldados andavam ateando, quatro soldados do pelotão de execução percorriam as filas dos supliciados, partindo-lhes metodicamente as tíbias, estes usavam barras de ferro. Séforis ardeu toda, de ponta a ponta, enquanto, um após outro, os crucificados iam morrendo. O carpinteiro, chamado José filho de Heli, era um homem novo, na flor da vida, fizera há poucos dias trinta e três anos.


Nenhum comentário:

Postar um comentário