sábado, 2 de fevereiro de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo VIII)




Carpinteiro entre os carpinteiros, José acabara de comer o seu farnel, ainda lhes ficava um tempo, a ele e aos companheiros, antes que o manajeiro desse sinal de repegar o trabalho, podia continuar sentado, ou mesmo deitar-se, fechar os olhos e entregar-se à comprazida contemplação de pensamentos bons, imaginar que ia estrada fora, no interior profundo dos montes de Samaria, ou melhor ainda, olhando de uma altura a sua aldeia de Nazaré, por que tanto suspirara. Rejubilava em sua alma, e a si mesmo dizia que este era, finalmente chegado, o derradeiro dia da longa separação, que amanhã, logo à primeira hora, quando, apagadas as últimas cintilações dos astros, apenas brilhar no céu a estrela Boieira, porá pés ao caminho, cantando louvores ao Senhor que nos guarda a casa e guia os passos. Abriu de repente os olhos, sobressaltado, crendo que se deixara adormecer e não ouvira o sinal, mas fora apenas uma breve sonolência, os companheiros estavam ali todos, uns conversando, dormitando outros, e o manajeiro tranquilo, como se tivesse resolvido dar feriado aos seus operários e não pensasse arrepender-se da generosidade. O sol está no zênite, um vento forte, de rajadas curtas, empurra para o outro lado a fumarada dos sacrifícios, e a este lugar, um rebaixo que dá para as obras do hipódromo, nem sequer chega o aranzel das vozes dos mercadores do Templo, é como se a máquina do tempo tivesse parado e ficado, também ela, à espera da ordem do grande manajeiro das eras e dos espaços universais. De súbito, José sentiu-se inquieto, ele que tão feliz estava um momento antes. Passeou os olhos em redor, e era a mesma e conhecida vista do estaleiro a que se tinha habituado nestas semanas, as pedras e as madeiras, a moinha branca e áspera das cantarias, a serradura que mesmo ao sol nunca chegava a secar por completo, e, imerso na confusão duma repentina e opressiva angústia, querendo encontrar uma explicação para tão decaído estado de ânimo, pensou que podia tratar-se do natural sentimento de quem vai ser obrigado a deixar obra em meio, mesmo não sendo ela sua e tendo para partir tão bons motivos. Levantou-se, deitando contas ao tempo de que poderia dispor, o manajeiro nem sequer virou a cabeça para ele, e decidiu dar uma rápida volta pela parte da construção em que tinha trabalhado, a despedir-se, por assim dizer, das tábuas que alisara, das traves que regulara, se tal identificação era possível, qual é a abelha que pode dizer, Este mel fi-lo eu.
No fim do breve passeio, quando já estava voltando ao dever, parou um momento a contemplar a cidade que se levantava na encosta fronteira, toda construída em degraus, com a sua cor de pedra tostada que era como a cor do pão, de certeza que o manajeiro já chamara, mas José agora não tinha pressa, olhava a cidade e esperava não sabia o quê. Passou tempo e nada aconteceu, José murmurou, no tom de quem desiste de algo, Bom, tenho de ir, e nesse momento ouviu vozes que vinham de um caminho abaixo do local onde se encontrava, e, inclinando-se sobre o muro de pedra que o separava dele, viu que eram três soldados. Decerto tinham vindo andando por aquele caminho, mas agora estavam parados, dois deles, com o coto da lança no chão, escutavam o terceiro, que era mais velho e provavelmente superior hierárquico deles, embora perceber a diferença não fosse fácil a quem não tivesse informação sobre o desenho, número e disposição das divisas, na sua forma habitual de estrelas, barras ou cantoneiras. As palavras cujo som chegara aos ouvidos de José de uma maneira confusa deviam ter sido qualquer pergunta, por exemplo, E a que horas vai ser isso, uma vez que o subalterno dizia, agora muito claramente e no tom de quem responde, Ao princípio da hora terça, quando já toda a gente está recolhida, e um dos dois perguntou, Quantos vamos, Ainda não sei, mas seremos os suficientes para cercar a aldeia, E então a ordem é matá-los a todos, A todos não, só aqueles que tiverem menos de três anos, Entre dois e quatro anos vai ser difícil saber à justa que idade têm, E isso vai dar quantos, quis saber o segundo soldado, Pelo censo, disse o chefe que devem ser aí uns vinte e cinco. José arregalava os olhos, como se a completa compreensão do que ouvia pudesse entrar por eles, mais do que pelos ouvidos, o corpo arrepiava-se-lhe todo, pelo menos era patente e claro que aqueles soldados falavam de ir matar pessoas, Pessoas, que pessoas, interrogava-se a si mesmo, desorientado, aflito, não, não eram pessoas, ou sim, pessoas eram, mas crianças, Os que tiverem menos de três anos, tinha dito o cabo, ou talvez fosse sargento ou furriel, e onde, onde vai isto ser, José não podia debruçar-se do muro e perguntar, A guerra é onde ó rapazes, agora estava banhado em suor, tremiam-lhe as pernas, foi então que se tornou a ouvir a voz do subalterno e o tom era ao mesmo tempo sério e de alívio, Sorte dos nossos filhos e nossa, que não vivemos em Belém, E já se sabe por que nos mandam matar os meninos de Belém, perguntou um soldado, O chefe não me disse, cuido que ele próprio não sabe, é ordem do rei, e basta. O outro soldado, riscando o chão com o coto da lança, como o destino que parte e reparte, disse, Muito desgraçados somos nós, que não nos chega praticarmos a parte de mal que nos coube por natureza, e ainda temos de ser braço da maldade de outros e do seu poder. Estas palavras já não foram ouvidas por José, que se afastara do seu providencial palanque, primeiro de mansinho, pé ante pé, logo numa louca corrida, saltando as pedras como um cabrito, em ânsias, razão por que, faltando o seu testemunho, seja lícito duvidar da autenticidade da filosófica reflexão, quer quanto ao fundo quer quanto à forma, tendo em conta a mais do que óbvia contradição entre a notável propriedade dos conceitos e a ínfima condição social de quem os teria produzido.
Desvairado, atropelando agora quem lhe aparecesse por diante, derrubando tabuleiros de grutas e gaiolas de pássaros, até a mesa de um cambista, quase sem ouvir os gritos furiosos dos vendilhões do Templo, José não tem outro pensamento que irem matar-lhe o filho, e nem sabe porquê, dramática situação, este homem deu a vida a uma criança, outro lha quer tirar, e tanto vale uma vontade como a outra, fazer e desfazer, atar e desatar, criar e suprimir. De súbito pára, apercebe-se do perigo se continuar nesta correria desabalada, aparecem por aí os guardas do Templo e prendem-no, sorte inexplicável foi ainda não terem dado pelo tumulto. Então, disfarçando o melhor que podia, como piolho que se acolhe à protecção da costura, insinuou-se pelo meio da multidão, e num instante tornou-se anônimo, a diferença era apenas que caminhava um pouco mais depressa, mas isso, no meio do labirinto de gente, mal se notava. Sabe que não deve correr enquanto não chegar à porta da cidade, mas angustia-o o pensamento de que os soldados poderão ir já a caminho, armados terrivelmente de lança, punhal e ódio sem causa, e se por desgraça é a cavalo que vão, trotando estrada abaixo como de passeio, então não há quem os alcance, quando chegar estará o meu filho morto, infeliz menino, Jesus da minha alma, ora é neste momento da mais sentida aflição que um pensamento estúpido entra como um insulto na cabeça de José, o salário, o salário da semana que vai ser obrigado a perder, e é tanto o poder destas vis coisas materiais que o acelerado passo, não indo ao ponto de deter-se, um tudo-nada se lhe retarda, como a dar tempo ao espírito de ponderar as probabilidades de reunir ambos os proveitos, por assim dizer, a bolsa e a vida. Foi tão subtil a mesquinha ideia, como uma luz velocíssima que surgisse e desaparecesse sem deixar memória imperativa duma imagem definida, que José nem vergonha chegou a sentir, esse sentimento que é, quantas vezes, porém não as suficientes, nosso mais eficaz anjo-da-guarda.
José sai finalmente da cidade, a estrada em frente está livre de soldados até ao mais longe que a vista alcança, e não se notam sinais de agitação popular nesta saída, como certamente aconteceria se tivesse havido ali parada militar, mas o indício mais seguro ainda é o que lhe dão as crianças, jogando os seus jogos inocentes, sem mostra da excitação bélica que delas se apodera quando bandeira, tambor e clarim desfilam, e aquele ancestral costume de irem com a tropa, se os soldados tivessem passado não se veria aqui um só garoto, pelo menos escoltariam o destacamento até à primeira curva, acaso um deles, de mais forte vocação castrense, os decidiria acompanhar até ao objectivo da missão, e assim ficaria a conhecer o que o espera no futuro, matar e ser morto. Agora José já pode correr, e corre, corre, aproveita o declive tanto quanto lho permite a travação da túnica, apesar de a levar levantada até aos joelhos, mas, como num sonho, tem a sensação angustiante de que as pernas não são capazes de acompanhar o impulso da parte superior do corpo, coração, cabeça e olhos, mãos que querem proteger e tanto tardam. Há quem pare na estrada para olhar, escandalizado, a alucinada corrida, na verdade chocante, pois este povo cultiva, em geral, a dignidade da expressão e a compostura do porte, a única justificação que José tem não é ir a salvar o filho, mas ser galileu, dessa gente grosseira, sem educação, como por mais de uma vez foi dito. Já passa em frente do túmulo de Raquel, nunca esta mulher pensou vir a ter tantas razões para chorar os filhos, cobrir de gritos e clamores as pardas colinas ao redor, arranhar-se a cara, ou os ossos dela, arrancar-se os cabelos, ou ferir o desnudo crânio. Agora, José, antes mesmo das primeiras casas de Belém, deixa a estrada e mete-se campo adentro, a corta-mato, Vou pelo caminho mais curto, eis o que responderá se quisermos saber o motivo desta novidade, e realmente talvez o seja, mas não é de certeza o mais cômodo. Evitando encontros com gente que trabalhava no campo, cosendo-se com as pedras para que não o vissem os pastores, José teve de fazer um largo rodeio para chegar à cova onde a mulher o não espera a esta hora e o filho nem a esta nem a outra, porque está dormindo. A meio da encosta da última colina, tendo já diante de si a negra fenda da gruta, José é assaltado por um terrível pensamento, o de que a mulher está na aldeia e tem o filho consigo, é o mais natural, sendo as mulheres como são, aproveitou estar só para despedir-se com vagar da escrava Zelomi e de algumas mães de família com quem se dera mais durante estas semanas, a José competiria agradecer formalmente aos donos da cova. Por um instante, viu-se correr pelas ruas da aldeia, batendo às portas, Está cá a minha mulher, seria ridículo dizer, Está cá o meu filho, e perante a sua aflição alguém lhe perguntaria, por exemplo, uma mulher com o filho ao colo, Há alguma novidade, e ele, Que não, novidade nenhuma, é que partimos amanhã cedo e temos de fazer as malas. Vista daqui, a aldeia, com as suas casas iguais, as açoteias rasas, lembra o estaleiro do Templo, pedras dispersas à espera de que venham os operários colocá-las umas sobre as outras e com elas erguer uma torre para a vigia, um obelisco para o triunfo, um muro para as lamentações. Um cão ladrou longe, outros lhe responderam, mas o cálido silêncio da última hora da tarde ainda paira sobre a aldeia como uma bênção esquecida, quase a perder a sua virtude, o mesmo que um fiapo de nuvem que se esvai.
A paragem mal durou o tempo de dizê-la. Numa última corrida o carpinteiro chegou à entrada da gruta, chamou, Maria, estás aí, e ela respondeu-lhe de dentro, foi neste momento que José percebeu quanto lhe tremiam as pernas, do esforço feito, sem dúvida, mas também, agora, do choque de saber que o filho estava a salvo. Dentro, Maria cortava verduras para a ceia, o menino dormia na manjedoura. Sem forças, José ainda se deixou cair no chão, mas levantou-se logo, dizendo, Vamo-nos embora, vamo-nos embora, e Maria olhou-o sem perceber, Que nos vamos embora, perguntou, e ele, Sim, agora mesmo, Mas tu tinhas dito, Cala-te e enrola as coisas, enquanto arreio o burro, Não ceamos primeiro, Cearemos no caminho, Não tarda que seja noite, vamo-nos perder, então José deu um grito, Cala-te, já disse, e faz o que te mando. Saltaram as lágrimas a Maria, era a primeira vez que o marido lhe levantava a voz, e sem mais palavra começou a arrumar e embalar os poucos haveres, Depressa, depressa, repetia ele, ao tempo que punha a albarda no burro e apertava a cilha, depois, ao acaso, enchia os seirões com o que apanhava à mão, misturando tudo, perante o assombro de Maria, que não reconhecia o seu marido. Já estavam em pé de marcha, não faltava mais que cobrir de terra o lume e sair, quando José, tendo feito sinal à mulher para que não viesse com ele, se aproximou da entrada da gruta e espreitou para fora. Um crepúsculo cinzento confundia o céu com a terra. O sol ainda não se pusera, mas a névoa espessa, se estava bastante alta para não prejudicar a visão dos campos em redor  impedia que a luz se espalhasse. José apurou o ouvido, deu alguns passos, e de repente eriçaram-se-lhe de pavor os cabelos, alguém gritara na aldeia, um grito agudíssimo que nem parecera de uma voz humana, e logo depois, ainda os ecos pareciam ressoar de colina a colina, um clamor de novos gritos e prantos encheu a atmosfera, não eram os anjos chorando sobre a desgraça dos homens, eram os homens enlouquecendo debaixo de um céu vazio. Devagar, como se temesse que o ouvissem, José recuou para a entrada da cova, esbarrando com Maria que não acatara a ordem. Toda ela tremia, Que gritos são aqueles, perguntou, mas o marido não lhe respondeu, empurrou-a para dentro e, em movimentos rápidos, começou a lançar terra sobre a fogueira. Que gritos eram aqueles, tornou a perguntar Maria, invisível na escuridão, e José respondeu, depois de um silêncio, Estão a matar gente. Fez uma pausa e acrescentou, como em segredo, Crianças, por ordem de Herodes, a voz quebrou-se num soluço seco, Por isso quis que partíssemos. Ouviu-se um rumor de panos e de palha mexida, Maria levantava o filho da manjedoura e apertava-o ao peito, Jesus, que te querem matar, a última palavra afogaram-na as lágrimas, Cala-te, disse José, não faças rumor, pode ser que os soldados não venham aqui, a ordem é para matar as crianças de Belém com menos de três anos, Como soubeste, Ouvi dizer no Templo, por isso vim a correr para aqui, E agora, que fazemos, Estamos fora da aldeia, não é natural que os soldados venham passar revista a todas estas covas, a ordem deve ter sido só para ir às casas, que ninguém nos denuncie e salvamo-nos. Saiu outra vez a espreitar, assomando apenas, os gritos tinham cessado, não se ouvia mais que um coro choroso que ia diminuindo pouco a pouco, a matança dos inocentes terminara. O céu continuava tapado, a noite principiada e a névoa alta tinham feito desaparecer Belém do horizonte dos habitantes celestes. José disse para dentro, Não saias daqui, vou até à estrada ver se os soldados já se foram embora, Tem cuidado, disse Maria, e não se lembrou de que o marido não corria qualquer perigo, a morte era para crianças com menos de três anos, a não ser que alguém que tivesse ido à estrada com o mesmo fim o denunciasse, dizendo, Esse é o carpinteiro José, pai dum rapaz que ainda não tem dois meses, e chama-se Jesus, talvez seja ele o da profecia, que dos nossos filhos nunca lemos ou ouvimos que estivessem destinados a realezas, e agora ainda menos, que estão mortos.
No interior da cova o negrume podia-se palpar. Maria tinha medo da escuridão, habituara-se desde criança à presença contínua duma luz na casa, da fogueira ou da candeia, ou ambas, e a sensação, agora mais ameaçadora, por se encontrar no interior da terra, de que uns dedos de treva lhe vinham tocar a boca, apavorava-a. Não queria desobedecer ao marido nem expor o filho à possível morte, saindo da caverna, mas, segundo a segundo, o medo crescia dentro de si e não tardaria a rebentar as precárias defesas do bom senso, não servia de nada pensar, Se não havia coisas no ar antes de se apagar a fogueira, agora também não há, enfim, de algo serviu tê-lo pensado, às apalpadelas pousou o filho na manjedoura, e depois, rastejando com mil cuidados, procurou o sítio da fogueira, com uma acha afastou a terra que a cobria até fazer aparecer algumas brasas que ainda não tinham sido apagadas, e nesse momento todo o medo lhe desapareceu do espírito, viera-lhe à memória a terra luminosa, a mesma luz trémula e palpitante percorrida por rápidas fulgurações como um archote correndo sobre a crista de um monte. A imagem do mendigo surgiu e desapareceu logo, afastada pela urgência maior de fazer luz suficiente na cova aterradora. Maria, tenteando, foi à manjedoura buscar um punhado de palha, voltou guiada pelo pálido luzeiro do chão, e daí a um momento, resguardada num recanto que a escondia de quem de fora olhasse, a candeia iluminava as paredes próximas da caverna com uma desmaiada aura, evanescente, mas tranquilizadora. Maria chegou-se ao filho que continuava a dormir, indiferente a medos, agitações e mortes violentas, e, com ele ao colo, foi sentar-se ao pé da candeia, à espera. Decorreu algum tempo, o filho acordou, porém sem abrir de todo os olhos, fez uma súbita cara de choro que Maria, já madre sabedora, deteve com o simples gesto de abrir a túnica e oferecer o peito à boca sôfrega da criança. Assim estavam os dois quando se ouviram passos fora. No primeiro instante, pareceu a Maria que o coração se lhe parava, Serão os soldados, mas eram passos de uma só pessoa, se fossem soldados viriam juntos, pelo menos dois, como é táctica e costume, e sendo caso de buscas com mais razão ainda, umm cobrindo o outro por causa de surpresas inesperadas, É José, pensou, e temeu que ele lhe ralhasse por ter acendido a candeia. Os passos, lentos, aproximaram-se mais, José já vinha entrando mas de súbito um arrepio percorreu o corpo de Maria, estes não eram, pesados, duros, os passos de José, acaso será um maltês à procura de abrigo por uma noite, tinha acontecido antes duas vezes, e se nessas ocasiões Maria não sentira medo, por não ser imaginável que um homem, por mais amargo e infame de coração que fosse, pudesse atrever-se a fazer mal a uma mulher com o filho nos braços, não se lembrou Maria de que mesmo agora mataram os meninos de Belém, alguns, quem sabe, no próprio colo das mães, como no da sua se encontra Jesus, ainda os inocentes sugavam o leite da vida e já a lâmina do punhal lhes feria a delicada pele e penetrava na carne tenra, porém haviam sido os soldados esses assassinos, não uns vagabundos quaisquer, faz a sua diferença, e nada pequena. Não era José, não era soldado à procura de um feito de guerra que não tivesse de partilhar, não era maltês sem pouso nem trabalho, era, sim, novamente em figura de pastor, aquele que em figura de mendigo aparecera uma vez e outra, aquele que falando de si mesmo anunciara ser um anjo, contudo sem dizer de que céu ou inferno. Maria não pensara, primeiro, que pudesse ser ele, agora compreendia que não poderia ser outro.
Disse o anjo, A paz seja contigo, mulher de José, seja também a paz com o teu filho, ele e tu afortunados por nesta cova terdes casa, que, não sendo assim, agora estaria um de vós despedaçado e morto, enquanto o outro se acharia a si mesmo vivo mas despedaçado. Disse Maria, Ouvi os gritos. Disse o anjo, Sim, apenas os ouviste, mas um dia os gritos que não deste hão-de gritar por ti, e ainda antes desse dia ouvirás gritar mil vezes a teu lado. Disse Maria, Meu marido foi à estrada ver se os soldados já se foram, não seria bom que ele aqui te encontrasse. Disse o anjo, Que isso não te dê cuidado, ir-me-ei antes que ele chegue, vim só para dizer-te que não voltarás a ver-me tão cedo, tudo o que era necessário que acontecesse aconteceu, faltavam estas mortes, faltava, antes delas, o crime de José. Disse Maria, O crime de José, meu marido não cometeu nenhum crime, é um homem bom. Disse o anjo, Um homem bom que cometeu um crime, não imaginas quantos antes dele os cometeram também, é que os crimes dos homens bons não têm conta, e, ao contrário do que se pensa, são os únicos que não podem ser perdoados. Disse Maria, Que crime cometeu meu marido. Disse o anjo, Tu o sabes, não queiras ser tão criminosa como ele. Disse Maria, Juro. Disse o anjo, Não jures, ou então jura, se quiseres, que um juramento feito diante de mim é como um sopro de vento que não sabe aonde vai. Disse Maria, Que fizemos nós. Disse o anjo, Foi a crueldade de Herodes que fez desembainhar os punhais, mas o vosso egoísmo e cobardia foram as cordas que ataram os pés e as mãos das vítimas. Disse Maria, Que podia eu ter feito. Disse o anjo, Tu, nada, que o soubeste tarde de mais, mas o carpinteiro podia ter feito tudo, avisar a aldeia de que vinham aí os soldados a matar as crianças, ainda havia tempo para que os pais delas as levassem e fugissem, podiam, por exemplo, ir esconder-se no deserto, fugir para o Egipto, à espera de que morresse Herodes, que está por pouco. Disse Maria, Não pensou. Disse o anjo, Não, não pensou, e isso não o desculpa. Disse Maria, chorando, Tu, que és um anjo, perdoa-lhe. Disse o anjo, Não sou anjo de perdões. Disse Maria, Perdoa-lhe. Disse o anjo, Já te disse que não há perdão para este crime, mais depressa seria perdoado Herodes que o teu marido, mais depressa se perdoará a um traidor que a um renegado. Disse Maria, Que vamos fazer. Disse o anjo, Vivereis e sofrereis como toda a gente. Disse Maria, E o meu filho. Disse o anjo, Sobre a cabeça dos filhos há-de sempre cair a culpa dos pais, a sombra da culpa de José já escurece a fronte do teu filho. Disse Maria, Infelizes de nós. Disse o anjo, Assim é, e não tereis remédio. Maria curvou a cabeça, apertou mais o filho contra si como para defendê-lo das prometidas desventuras, e quando tornou a olhar já o anjo ali não estava. Mas desta vez, e ao contrário do que antes tinha sucedido, quando ele se aproximara, não se ouviram passos, Foi-se embora voando, pensou Maria. Depois, levantou-se, foi até à entrada da caverna, se ainda haveria rasto aéreo do anjo, ou já vinha perto José. O nevoeiro dissipara-se, luziam metálicas as primeiras estrelas, da aldeia continuavam a ouvir-se os lamentos. E foi então que um pensamento de presunção desmedida, de talvez pecaminoso orgulho, sobrepondo-se às negras advertências do anjo, fez girar a cabeça de Maria, se a salvação de seu filho não teria sido um gesto de Deus, por força tem um significado escapar alguém à dura morte quando ali ao lado outros que tiveram de morrer já nada mais podem fazer que esperar uma ocasião para ao mesmo Deus perguntarem, Por que foi que nos mataste, e contentarem-se com a resposta, qualquer que seja. Não durou muito o delírio de Maria, no instante seguinte já imaginava que poderia estar embalando um filho morto, como agora certamente as mães de Belém, e, para benefício do seu espírito e salvação da sua alma, as lágrimas voltaram-lhe aos olhos, correndo como fontes. Ali estava quando José chegou, ouviu-o vir, mas deixou-se ficar, de nada se lhe dava que ele ralhasse, Maria estava agora chorando com as outras mulheres, todas sentadas em círculo, com os filhos no regaço, à espera da ressurreição. José viu-a chorar, compreendeu e calou-se.
Dentro da caverna, José não fez reparo na candeia acesa. As brasas, no chão, tinham-se coberto de uma fina camada de cinza, mas, no interior do lume, entre elas, palpitava ainda, buscando forças, a raiz duma chama. Enquanto ia descarregando o burro, José disse, Já não corremos perigo, foram-se embora os soldados, e nós o melhor que temos a fazer é passar a noite aqui, amanhã partimos antes de o sol nascer, iremos por um atalho, e, onde atalho não haja, por onde calhe. Maria murmurou, Tantos meninos mortos, e José, bruscamente, Como o sabes, foste contá-los, perguntou, e ela, Lembro-me deles, de alguns, Dá antes graças a Deus por teres o teu filho vivo, Darei, E não olhes para mim como se eu tivesse feito algum mal, Não estava a olhar-te, Nem me fales nesse tom que parece de juiz, Ficarei calada, se quiseres, Sim, é melhor que te cales. José atou o burro à manjedoura, ainda havia no fundo alguma palha, a fome do bicho não deve ser grande, de facto este burro tem vivido à tripa-forra, malga cheia e banhos de sol, mas vá-se preparando, que já pouco lhe falta para regressar às duras penas de carga e trabalho. Maria deitou o filho e disse, Vou espevitar o lume, Para quê, A ceia, Não quero aqui lumes que chamem gente, pode passar alguém da aldeia, comemos do que houver e como estiver. Assim fizeram. A candeia de azeite alumiava como um espectro os quatro habitantes da cova, o burro, imóvel como uma estátua, com os beiços sobre a palha mas sem lhe tocar, o menino apenas dormindo, enquanto o homem e a mulher enganavam a fome com uns poucos figos secos. Maria dispôs as esteiras no chão arenoso, lançou sobre elas o lençol e, como todos os dias, esperou que o marido se deitasse. Antes, José foi espreitar novamente a noite, tudo estava em paz na terra e no céu, e da aldeia não vinham outros gritos nem lamentos, agora as sucumbidas forças de Raquel não chegavam para mais que gemer e suspirar, dentro da  casas, com a porta e a alma fechadas. José estendeu-se na sua esteira, de repente exausto como nunca estivera em sua vida, de tanto correr, de temer tanto, e nem podia dizer que graças ao seu esforço salvara a vida do filho, os soldados tinham cumprido rigorosamente as ordens recebidas, Matar os meninos de Belém, sem porem, contudo, de sua lavra, acréscimos de diligência na acção militar, como teria sido procurar nas covas ao redor se alguns fugidos aí se teriam escondido, ou então, falha que constituiu gravíssimo erro táctico, se nelas viveriam habitualmente famílias completas. Em geral, a José não o incomodava o hábito de Maria de se deitar só quando ele já tinha adormecido, mas hoje não podia suportar a ideia de estar mergulhado no sono, de rosto nu, sabendo que a mulher velava e o olharia sem piedade. Disse, Não quero que fiques aí, deita-te. Maria obedeceu, foi primeiro verificar, como sempre fazia, se o burro estava bem preso, e depois, suspirando, deitou-se na esteira, fechou os olhos com força, viesse o sono quando pudesse, ela já renunciara a ver. A meio da noite, José teve um sonho. Cavalgava por uma estrada que descia em direcção a uma aldeia de que já se avistavam as primeiras casas, ia de uniforme e com todos os petrechos militares em cima, armado de espada, lança e punhal,  soldado entre soldados, e o comandante perguntava-lhe, Tu aonde vais, ó carpinteiro, ao que ele respondia, orgulhoso de conhecer tão bem a missão de que fora incumbido, Vou a Belém matar o meu filho, e quando o disse despertou com um ronco abominável, o corpo crispado, torcido de terror, Maria perguntando-lhe, Que tens, que aconteceu, e ele, tremendo todo, só sabia repetir, Não, não, não, de repente a aflição desatou-se em choro convulsivo, em arrancos que lhe despedaçavam o peito. Maria levantou-se, foi buscar a candeia, iluminou-lhe o rosto, Estás doente, perguntou, mas ele tapava a cara com as mãos, Leva-me isso daqui, mulher, no mesmo instante, ainda soluçando, levantou-se da esteira e correu à manjedoura a ver como estava o filho, Está bem, senhor José, não se preocupe, de facto é uma criança que não dá nenhum trabalho, um bom-serás, um paz-de-alma, um come-e-dorme, aqui repousa, tão tranquilamente como se não tivesse acabado de escapar por milagre à horrível morte, imagine-se, acabar às mãos do próprio pai que lhe deu o ser, já sabemos que esse é o tal destino de que ninguém se livra, mas há maneiras e maneiras. Com o pavor de que o sonho se repetisse, José não tornou à esteira, enrolou-se numa manta e foi sentar-se à entrada da cova, ao abrigo de um pendente rochoso que fazia uma espécie de alpendre natural e, indo agora alta a lua, lançava sobre a abertura uma sombra negríssima que a pálida luz da candeia, dentro, não tocava sequer. O próprio rei Herodes, se por ali passasse, às costas dos escravos, rodeado das suas legiões de bárbaros sedentos de sangue, diria tranquilamente, Não vos incomodeis a procurar, segui para diante, aquilo é pedra e sombra de pedra, nós buscamos carne fresca e vida apenas principiada. José estremeceu ao pensar no sonho, perguntou-se que sentido poderia ele ter, se a verdade, patente à face dos céus que tudo veem, é que viera correndo como um louco por essa estrada abaixo, via dolorosa só ele sabia quanto, saltando depois pedras e muros, como bom pai acudira a defender seu filho, e eis que o sonho o mostrara com figura e apetites de verdugo, é bem certo o provérbio que avisa não haver nos sonhos firmeza, Isto foi coisa do demônio, pensou, e fez um gesto de esconjuro. Como vindo da garganta duma ave invisível, um assobio passou no ar, também poderia ter sido um sinal de pastor, não fosse a hora ser esta, quando todos os gados estão dormindo e só os cães velam. Porém, a noite, calma e distante, alheada dos seres e das coisas, com essa suprema indiferença que imaginamos ser do universo, ou a outra, absoluta, do vazio que restar, se algo o vazio pode ser, quando estiver cumprido o último fim de tudo, a noite ignorava o sentido e a ordem razoável que parecem reger este mundo nas horas em que ainda acreditamos ter sido ele feito para receber-nos, e à nossa loucura. Na lembrança de José, aos poucos, o sonho terrível tornava-se irreal, absurdo, desmentiam-no esta noite e este luar, desmentia-o a criança a dormir na manjedoura, sobretudo desmentia-o o homem acordado que ele era, senhor de si e, tanto quanto é possível, dos seus pensamentos, agora caridosos e pacíficos, porém também capazes de engendrar um monstro, como a gratidão a Deus porque os soldados deixaram com vida o seu filho querido, por ignorância e desleixo, é certo, eles que a tantos mataram. A mesma noite cobre o carpinteiro José e as mães das crianças de Belém, dos pais não falamos, nem de Maria, que não são para aqui chamados, se bem que não discirnamos os motivos duma tal exclusão. As horas passaram calmas e quando a madrugada deu o seu primeiro sinal José levantou-se, foi carregar o burro, e em pouco tempo, aproveitando o derradeiro ar de luar antes de aclarar-se o céu, a família completa, Jesus, Maria e José, pôs-se a caminho, de regresso a Galileia.
Deixando por uma hora a casa dos senhores, onde dois meninos haviam sido mortos, a escrava Zelomi foi de manhã à cova, certa de que o mesmo tinha sucedido ao menino que ajudara a nascer. Encontrou-a abandonada, só rastos de passos e de cascos do asno, sob a cinza brasas quase extintas, nenhum vestígio de sangue. Já não está aqui, disse, salvou-se desta primeira morte.

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