quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo XIV)



Havia já muita gente na esplanada que entestava com a íngreme escadaria de acesso. Dos dois lados, ao longo dos muros, encontravam-se as tendas dos bufarinheiros, outras onde se vendiam os animais para o sacrifício, aqui e além, dispersos, os cambistas com as suas bancas, grupos que conversavam, gesticulantes mercadores, guardas romanos a pé e a cavalo vigiando, liteiras a ombros de escravos, e também os dromedários, os jumentos ajoujados de carga, por toda a parte um vozear frenético, agora logo débeis balidos de cordeiros e cabritos, alguns que iam transportados ao colo ou às costas, como crianças cansadas, outros, arrastados, de corda ao pescoço, mas todos a caminho da morte no cutelo e da consumição do fogo. Jesus passou pelo balneário para purificar-se, depois subiu a escadaria e, sem parar, atravessou o Átrio dos Gentios. Entrou no Átrio das Mulheres pela porta entre a Sala dos Óleos e a Sala dos Nazarenos, e encontrou o que tinha vindo buscar, os anciãos e os escribas que, segundo o antigo costume, ali dissertavam sobre a Lei, respondiam a questões e davam conselhos. Havia alguns grupos, o rapaz aproximou-se do menos numeroso no preciso momento em que um homem levantava a mão para fazer uma pergunta. O escriba assentiu com um sinal e o homem disse, Explica-me, peço-te, se devemos entender, palavra por palavra, sentido por sentido, como está escrito, as leis que o Senhor deu a Moisés no Monte Sinai, quando prometeu fazer reinar a paz na nossa terra e que ninguém perturbaria o nosso sono, quando anunciou que faria desaparecer de entre nós os animais nocivos e que a espada não passaria pela nossa terra, e também que, perseguindo nós os nossos inimigos eles cairiam sob a nossa espada, cinco dos vossos perseguirão um cento, e cem dos vossos perseguirão dez mil, disse o Senhor, e os vossos inimigos cairão diante da vossa espada. O escriba olhou com expressão desconfiada o perguntador, se seria um intrometido rebelde aqui mandado por Judas Galileu para alvoroçar os espíritos com malévolas insinuações sobre a passividade do Templo perante o poder de Roma, e respondeu, brusco e breve, Essa palavra disse-a o Senhor quando os nossos pais estavam no deserto e eram perseguidos pelos egípcios. O homem tornou a levantar a mão, sinal doutra pergunta, Devo entender que as palavras do Senhor ditas no Monte Sinai só valeram para aqueles tempos, quando os nossos pais buscavam a terra da promissão, Se assim o entendeste, não és um bom israelita, a palavra do Senhor valeu, vale e valerá por todos os tempos passados e futuros, a palavra do Senhor estava na mente do Senhor antes que ele falasse e nela continua depois que ele se calou, Tu foste quem disse o que a mim me proíbes de pensar, Que pensas tu, Que o Senhor consente que as nossas espadas não se levantem contra a força que nos está oprimindo, que cem dos nossos não ousem atrever-se contra cinco dos deles, que dez mil judeus tenham de encolher-se diante de cem romanos, Estás no Templo do Senhor e não num campo de batalha, O Senhor é o deus dos exércitos, Mas, lembra-te, o Senhor impôs as suas condições, Quais, Se cumprirdes as minhas leis, se guardardes os meus preceitos, disse o Senhor, Que leis não cumprimos e que preceitos não guardamos para que tenhamos de aceitar por justa e necessária, como castigo de pecados, a dominação de Roma, O Senhor o saberá, Sim, o Senhor o saberá, quantas vezes o homem peca sem saber, mas explica-me por que se serve o Senhor do poder de Roma para castigar-nos, em vez de o fazer directamente, cara a cara com aqueles a quem elegeu para seu povo, O Senhor conhece os seus fins, o Senhor escolhe os seus meios, Queres então dizer que é vontade do Senhor que os romanos mandem em Israel, Sim, Se é como dizes, temos de concluir que os rebeldes que andam a lutar contra os romanos estão também a lutar contra o Senhor e a sua vontade, Concluis mal, E tu contradizes-te, escriba, O querer de Deus pode ser um não querer, o seu não querer a sua vontade, Só o querer do homem é verdadeiro querer, e não tem importância perante Deus, Assim é, Então, o homem é livre, Sim, para poder ser castigado. Correu um murmúrio entre os circunstantes, alguns olharam o que fizera as perguntas, sem dúvida pertinentes à pura luz dos textos, mas politicamente inconvenientes, olharam-no como se ele, justamente, é que devesse assumir os pecados todos de Israel e por eles pagar, aliviados os suspeitosos, de qualquer modo, pelo triunfo do escriba, que recebia, com um sorriso complacente, os cumprimentos e os louvores. Seguro de si, o mestre olhou em redor, solicitando outra interpelação, como o gladiador que, tendo-lhe calhado um adversário fraco, reclama outro de maior porte que lhe dê maior glória. Mais um homem levantou a mão, outra pergunta se apresentava, O Senhor falou a Moisés e disse-lhe, O estrangeiro que reside convosco será tratado como um dos vossos compatriotas e amá-lo-ás como a ti mesmo, porque fostes estrangeiros nas terras do Egipto, isto disse o Senhor a Moisés. Não acabou, porque o escriba, quente ainda da primeira vitória, interrompeu com ironia, Presumo que não é tua ideia perguntar-me por que não tratamos nós os romanos como nossos compatriotas, uma vez que são estrangeiros, Perguntar-to-ia se os romanos nos tratassem a nós como compatriotas seus, sem cuidarmos, nós e eles, doutras leis e outros deuses, Também tu vens aqui provocar a ira do Senhor com interpretações diabólicas da sua palavra, interrompeu o escriba, Não, quero apenas que me digas se em verdade pensas que cumprimos a palavra santa quando os estrangeiros o forem, não à terra onde vivemos, mas à religião que professamos, A quem te referes, em particular, A alguns hoje, a muitos no passado, talvez a muitos mais amanhã, Sê claro, por favor, que não posso perder tempo com enigmas nem parábolas, Quando viemos do Egipto, viviam na terra a que chamamos de Israel outras nações que tivemos de combater, naqueles dias os estrangeiros éramos nós e o Senhor deu-nos ordem para que matássemos e aniquilássemos os que se opunham à sua vontade, A terra foi-nos prometida, mas tinha de ser conquistada, não a compramos nem nos foi oferecida, E hoje é sob um domínio estrangeiro que estamos vivendo, a terra que havíamos tornado nossa deixou de o ser, A ideia de Israel mora eternamente no espírito do Senhor, por isso, onde quer que esteja o seu povo, reunido ou disperso, aí estará o Israel terrestre, Daí se deduz, suponho, que em toda a parte onde nós, judeus, estivermos, sempre os outros homens serão estrangeiros, Aos olhos do Senhor, sem dúvida, Mas o estrangeiro que viva connosco será, segundo a palavra do Senhor, nosso compatriota e a ele devemos amar como a nós mesmos porque fomos estrangeiros no Egipto, O Senhor o disse, Concluo, então, que o estrangeiro que devemos amar é aquele que, vivendo connosco, não seja tão poderoso que nos oprima, como é, nos tempos de hoje, o caso dos romanos, Concluis bem, Agora vais dizer-me, segundo o que te aconselhem as tuas luzes, se, chegando nós um dia a ser poderosos, permitirá o Senhor que oprimamos os estrangeiros que o mesmo Senhor mandou amar, Israel não poderá querer senão o que o Senhor quer, e o Senhor, porque escolheu este povo, quererá tudo quanto for bom para Israel, Mesmo que seja não amar a quem se devia, Sim, se essa for, finalmente, a sua vontade, De Israel ou do Senhor, De ambos, porque são um, Não violarás o direito do estrangeiro, palavra do Senhor, Quando o estrangeiro o tiver e lho reconheçamos, disse o escriba. Novamente se ouviram murmúrios de aprovação que fizeram brilhar os olhos do escriba como os de um vencedor de pancrácio, um discóbolo, um retiário, um condutor de carros. A mão de Jesus levantou-se. Nenhum dos presentes estranhou que um rapaz desta idade se apresentasse a interrogar um escriba ou um doutor do Templo, adolescente com dúvidas sempre os houve, desde Caim e Abel, em geral fazem perguntas que os adultos recebem com um sorriso de condescendência e uma palmadinha nas costas, Cresce, cresce, e vais ver como isso não tem importância, os mais compreensivos dirão, Quando eu tinha a tua idade também pensava assim. Uns tantos dos presentes afastaram-se, outros preparavam-se já para o fazer também, perante a mal encoberta contrariedade do escriba que via escapar-se lhe um público até aí atento, mas a pergunta de Jesus fez voltar atrás alguns que ainda a ouviram, O que quero saber é sobre a culpa, Falas de uma culpa tua, Falo de culpa em geral, mas também da culpa que eu tenha mesmo não tendo pecado directamente, Explica-te melhor, Disse o Senhor que os pais não morrerão pelos filhos nem os filhos pelos pais, e que cada um será condenado à morte pelo seu próprio delito, Assim é, mas deves saber que se tratava de um preceito para aqueles antigos tempos em que a culpa de um membro duma família era paga pela família toda, incluindo os inocentes, Porém, sendo a palavra do Senhor eterna e não estando à vista o fim das culpas, lembra-te do que tu próprio disseste há pouco, que o homem é livre para poder ser castigado, creio ser legítimo pensar que o delito do pai, mesmo tendo sido punido, não fica extinto com a punição e faz parte da herança que lega ao filho, como os viventes de hoje herdaram a culpa de Adão e Eva, nossos primeiros pais, Assombrado estou que um rapaz da tua idade e da tua condição pareça saber tanto das Escrituras e seja capaz de discorrer sobre elas com tanta fluência, Sei apenas o que aprendi, Donde vens, De Nazaré de Galileia, Já me parecia, pela maneira como falas, Responde ao que te perguntei, por favor, Podemos admitir que a principal culpa de Adão e Eva, quando ao Senhor desobedeceram, não tenha sido tanto haverem provado do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, mas a consequência que daí fatalmente teria de resultar, impedirem, com o seu pecado, que o Senhor viesse a cumprir o plano que tinha em mente ao criar o homem e depois a mulher, Queres tu dizer que todo o acto humano, a desobediência no paraíso ou qualquer outro, sempre interfere com a vontade de Deus, e que, finalmente, poderíamos comparar a vontade de Deus a uma ilha no mar, cercada e assaltada pelas revoltas águas das vontades dos homens, esta pergunta lançou-a o segundo dos questionadores, a tal ousadia não se atreveria o filho do carpinteiro, Não será tanto assim, respondeu cautelosamente o escriba, a vontade do Senhor não se contenta com prevalecer sobre todas as coisas, ela é o que faz que tudo seja o que é, Mas tu próprio disseste que a desobediência de Adão é causa de que não conheçamos o projecto que Deus tinha concebido para ele, Assim é, segundo a razão, mas na vontade de Deus, criador e regedor do universo, estão contidas todas as vontades possíveis, a sua, mas também a de todos os homens nascidos e por nascer, Se isso fosse como dizes, interveio Jesus, numa súbita iluminação, cada um dos homens seria uma parte de Deus, Provavelmente, mas a parte representada por todos os homens juntos seria como um grão de areia no deserto infinito que Deus é. O homem presunçoso que até aí o escriba havia sido desapareceu. Está sentado no chão, como antes, na sua frente, em redor, os assistentes olham-no com um sentimento em que há tanto de respeito quanto de temor, como diante de um mago que, involuntariamente, tivesse convocado e feito aparecer forças de que, a partir deste momento, só poderia ser súbdito. Descaídos os ombros, estiradas as feições, as mãos abandonadas sobre os joelhos, todo o corpo dele parecia pedir que o deixassem entregue à sua angústia. Os circunstantes começaram a levantar-se, alguns encaminharam-se para o Átrio dos Israelitas, outros chegavam-se aos grupos onde prosseguiam debates. Jesus disse, Não respondeste à minha pergunta. O escriba endireitou lentamente a cabeça, olhou-o com a expressão de quem acabasse de sair de um sonho, e, após um longo, quase insuportável silêncio, disse, A culpa é um lobo que come o filho depois de ter devorado o pai, Esse lobo de que falas já comeu o meu pai, Então só falta que te devore a ti, E tu, na tua vida, foste comido ou devorado, Não apenas comido e devorado, mas vomitado.
Jesus ergueu-se e saiu. A caminho da porta por onde tinha entrado, parou e olhou para trás. A coluna de fumo dos sacrifícios subia a direito para o céu e ia dissipar-se e desaparecer nas alturas, como se a aspirassem os gigantescos foles do pulmão de Deus. A manhã estava em meio, a multidão crescia, e no interior do Templo ficava um homem roto e dilacerado pelo vazio, à espera de sentir que se lhe reconstituía o osso do costume, a pele do hábito, para poder responder, daqui a pouco ou amanhã, tranquilamente, a alguém que venha com a ideia de querer saber, por exemplo, se o sal em que a mulher de Lot se transformou tinha sido o sal-gema ou o sal marinho, ou se a embriaguez de Noé foi de vinho branco ou de vinho tinto. Já fora do Templo, Jesus perguntou qual era o caminho para Belém, seu segundo destino, por duas vezes se perdeu na confusão das ruas e da gente, até que encontrou a porta por onde, transportado na barriga da mãe, tinha saído treze anos antes, já prestes a vir ao mundo. Não se suponha, porém, que Jesus pensa este pensamento, é por de mais conhecido que as evidências da obviedade cortam as asas ao pássaro inquieto da imaginação, um exemplo daremos, e basta, olhe o leitor deste evangelho um retrato da sua mãe, que a represente grávida dele, e diga-nos se é capaz de se imaginar ali dentro. Jesus desce em direcção a Belém, poderia agora reflectir nas respostas dadas pelo escriba, não apenas à sua pergunta, às outras antes da sua também, mas o que o perturba é a embaraçosa impressão de que todas as perguntas eram, afinal, uma só, e que a resposta dada a cada uma a todas servia, principalmente a última, que resumia tudo, a fome eterna do lobo da culpa, que eternamente come, devora e vomita. Muitas vezes, graças às debilidades da memória, não sabemos, ou sabemos como quem desejasse esquecê-lo, a causa, o motivo, a raiz da culpa, ou, para falar figuradamente, à maneira do escriba, o fojo donde o lobo saiu para caçar-nos. Jesus sabe-o e é para lá que caminha. Não tem nenhuma ideia do que cá vem fazer, mas ter vindo é como ir avisando para um lado e outro da estrada, Aqui estou, à espera que alguém lhe saia ao caminho, que queres, castigo, perdão, esquecimento. Como o pai e a mãe haviam feito em seu tempo, parou diante do túmulo de Raquel para orar. Depois, sentindo que se lhe aceleravam as pancadas do coração, seguiu para diante. As primeiras casas de Belém estavam ali, esta era a entrada da aldeia por onde todas as noites irrompiam, no sonho, o pai assassino e os soldados da companhia, em verdade não parece sítio para tais horrores, já não é apenas o céu que o nega, este céu onde passam nuvens brancas e tranquilas como benévolos acenos de Deus, a própria terra parece dormir ao sol, talvez o melhor fosse dizer, Deixemos as coisas como estão, não removamos os ossos do passado, e, antes que uma mulher, com uma criança ao colo, aparecesse num destes postigos perguntando, A quem procuras, tornar atrás, apagar o rasto dos passos que aqui nos trouxeram e rogar que o movimento perpétuo da peneira do tempo cubra de uma rápida e insondável poeira até a mais tênue memória destes acontecimentos. Demasiado tarde. Há um momento, quase a roçar a teia, em que a mosca ainda estaria a tempo de escapar à armadilha, mas, se chegou a tocar-lhe, se o visco filou a asa doravante inútil, qualquer movimento apenas servirá para que o insecto mais se enrede e paralise, irremediavelmente condenado, mesmo que a aranha desprezasse, por insignificante, esta peça de caça. Para Jesus, o momento já passou. No centro de um largo, onde, a um canto, há uma figueira ramalhuda, vê-se uma pequena construção cúbica que não precisa ser olhada segunda vez para se perceber que é um túmulo. Aproximou-se dela Jesus, deu-lhe uma vagarosa volta, deteve-se a ler as inscrições meio apagadas que havia numa das faces, e, feito tudo isto, compreendeu que tinha encontrado o que viera procurar. Uma mulher que atravessava o largo, trazendo uma criança de uns cinco anos pela mão, parou, olhou com curiosidade o forasteiro e perguntou, Donde vens, e como se achasse necessário justificar a pergunta, Não és daqui, Sou de Nazaré de Galileia, Tens família nestes lugares, Não, vim a Jerusalém e, como estava perto, decidi ver como é Belém, Estás de passagem, Sim, volto para Jerusalém quando a tarde principiar a refrescar. A mulher levantou a criança, sentou-a no braço esquerdo, disse, Que o Senhor fique contigo, e fez um movimento para retirar-se, mas Jesus reteve-a perguntando, Este túmulo, de quem é. A mulher apertou a criança contra o peito, como se a quisesse proteger de alguma ameaça, e respondeu, São vinte e cinco meninos que foram mortos há muitos anos, Quantos, Vinte e cinco, já te disse, Falo dos anos, Ah, vai para catorze, São muitos, Devem ser, calculo, mais ou menos os que tu tens, Assim é, mas eu estava a falar dos meninos, Ah, um deles era meu irmão, Um irmão teu está ali dentro, Sim, E esse que levas ao colo, é teu filho, É o meu primogênito, Por que é que os meninos foram mortos, Não se sabe, nessa altura eu tinha só sete anos, Mas com certeza ouviste contar aos teus pais e às outras pessoas crescidas, Não era preciso, eu mesma vi serem mortos alguns, O teu irmão, também, Também o meu irmão, E quem foi que os matou, Apareceram uns soldados do rei à procura de meninos varões até aos três anos e mataram-nos a todos, E dizes que não se sabe porquê, Nunca se soube, até hoje, E depois da morte de Herodes, não tentaram averiguar, não foram ao Templo pedir aos sacerdotes que indagassem, Isso não sei, Se os soldados fossem romanos, ainda se percebia, mas assim, o nosso próprio rei a mandar matar os seus súbditos, meninos de três anos, alguma razão há-de ter havido, A vontade dos reis não é para o nosso entendimento, fique o Senhor contigo e te proteja, Já não tenho três anos, À hora da morte os homens têm sempre três anos, disse a mulher, e afastou-se. Quando ficou sozinho, Jesus ajoelhou-se no chão, ao lado da pedra que fechava a entrada do túmulo, tirou do alforje um resto de pão que lhe ficara, já endurecido, esfarelou um bocado nas palmas das mãos e espalhou-o ao longo da porta, como uma oferenda às invisíveis bocas dos inocentes. No instante em que o fazia, apareceu, saída da esquina mais próxima, outra mulher, mas esta era muito velha, curvada, que caminhava ajudando-se com um bastão. Confusamente, porque a vista não lhe dava maiores alcances, percebera o gesto do rapaz. Parou, atenta, depois viu-o levantar-se, inclinar a cabeça, como se recitasse uma prece pelo descanso dos infortunados infantes, que, embora seja esse o costume, não nos atreveremos a desejar eterno, por ter-nos falhado a imaginação quando, uma única vez, tentamos representar-nos o que poderia ser isso de descansar eternamente. Jesus acabou o seu responsório e olhou em redor, muros cegos, portas fechadas, apenas, ali parada, uma velha muito velha, vestida com uma túnica de escrava, e demonstração viva, apoiada ao seu bastão, da terceira parte do famoso enigma da esfinge, qual é o animal que anda sobre quatro patas de manhã, duas à tarde e três ao anoitecer, é o homem, respondeu o espertíssimo Édipo, não se lembrou, então, que alguns nem ao meio-dia conseguem chegar, só em Belém, de uma assentada, foram vinte e cinco. A velha veio vindo, veio vindo, e agora está diante de Jesus, torce o pescoço para poder olhá-lo melhor, e pergunta, Procuras alguém. O rapaz não respondeu logo, em boa verdade não andava à procura de pessoas, as que tinha encontrado estão mortas, aqui a dois passos, e nem se podia dizer delas que eram pessoas, uns tantos putos de fraldas e chupeta, chorões e ranhosos, subitamente a morte viera e tornara-os em gigantescas presenças que não cabem em ossários e gavetas, e todas as noites, se há justiça, saem para o mundo a mostrar as feridas mortais, as portas por onde lhes saiu a vida, abertas à ponta de espada, Não, disse Jesus, não ando à procura de ninguém. A velha não se retirou, parecia esperar que ele continuasse, e essa atitude foi o que tirou da boca de Jesus palavras que não tinha pensado dizer, Nasci nesta aldeia, numa cova, e gostava de ver o sítio. A velha recuou um difícil passo, afirmou o olhar tanto quanto podia, e, tremendo-lhe a voz, perguntou, Tu, como te chamas, donde vens, quem são os teus pais. A uma escrava só terá de responder quem quiser, mas o prestígio da última idade, mesmo em inferior condição, tem muita força, aos velhos, todos eles, deve-se responder-lhes sempre, porque, sendo já tão pouco o tempo que têm para fazer perguntas, extrema crueldade seria deixá-los privados de respostas, lembremo-nos de que uma delas bem pode ser a que esperavam. Chamo-me Jesus e venho de Nazaré de Galileia, disse o rapaz, e outra coisa não anda dizendo desde que saiu de casa. A velha avançou o passo que recuara, E os teus pais, como se chamam, Meu pai chamava-se José, minha mãe é Maria, Quantos anos tens, Vou aos catorze. A mulher olhou em redor, como se buscasse onde sentar-se, mas uma praça em Belém de Judeia não é o mesmo que o jardim de São Pedro de Alcântara, com bancos e vista aprazível para o castelo, aqui sentamo-nos na poeira do chão, quando muito nas soleiras das portas, ou, se há um túmulo, na pedra que se deixa ao lado da entrada para repouso e desafogo dos vivos que vêm chorar os entes queridos, ou ainda, sabe-se lá, dos fantasmas que dos seus próprios túmulos saem para chorar as lágrimas que sobejaram da vida, como é o caso de Raquel, aqui tão perto, em verdade está escrito, É Raquel que chora os seus filhos e não quer ser consolada, porque já não existem, não é preciso ter a argúcia de Édipo para ver que o sítio condiz com a situação e o choro com a causa. A velha sentou-se custosamente na pedra, o rapaz ainda fez um gesto para ajudá-la, mas não foi a tempo, os gestos não totalmente sinceros vão sempre atrasados. Eu conheço-te, disse a velha, Deves estar enganada, respondeu Jesus, eu nunca estive aqui e a ti nunca te vi em Nazaré, As primeiras mãos que te tocaram não foram as de tua mãe, mas as minhas, Como pode isso ser, mulher, O meu nome é Zelomi e fui a tua parteira. No impulso de um instante, assim se demonstrando a autenticidade caracterológica dos movimentos feitos a tempo, Jesus foi ajoelhar-se aos pés da escrava, inconscientemente hesitando entre uma curiosidade que parecia à beira de receber satisfação e um simples dever de polidez social, o dever de manifestar reconhecimento a alguém que, sem mais responsabilidade que ter estado presente na ocasião, nos extraiu de um limbo sem memória para largar-nos numa vida que seria nada sem ela. Minha mãe nunca me falou de ti, disse Jesus, Não tinha de falar, teus pais apareceram em casa de meu amo a pedir ajuda, e como eu tinha experiência, Foi no tempo da matança dos inocentes que estão neste túmulo, Foi, tu tiveste sorte, não te encontraram, Porque morávamos na cova, Sim, ou então porque havíeis partido antes, isso não o cheguei a saber, quando fui para ver o que vos teria sucedido, achei a cova vazia, Lembras-te do meu pai, Sim, lembro-me, nessa altura era um homem novo, boa figura, e uma boa pessoa, Já morreu, Pobre dele, que curta lhe saiu a vida, e tu, sendo o primogênito, por que deixaste a tua mãe, suponho que ainda estará viva, Vim para conhecer este lugar onde nasci, e também para saber dos meninos que foram mortos, Só Deus saberá por que morreram, o anjo da morte, tomando a figura de uns soldados de Herodes, desceu em Belém e condenou-os, Crês então que foi vontade de Deus, Não sou mais do que uma escrava velha, mas, desde que nasci, ouço dizer que tudo quanto tem acontecido no mundo, mesmo o sofrimento e a morte, só pôde acontecer porque Deus, antes, o quis, Assim é que está escrito, Compreendo que Deus queira, um destes dias, a minha morte, mas não a de crianças inocentes, A tua morte decidi-la-á Deus, a seu tempo, a morte dos meninos decidiu-a a vontade de um homem, Pode bem pouco, afinal, a mão de Deus, se não chega para interpor-se entre o cutelo e o sentenciado, Não ofendas ao Senhor, mulher, Quem, como eu, nada sabe, não pode ofender, Hoje, no Templo, ouvi dizer que todo o acto humano, por mais insignificante que seja, interfere com a vontade de Deus, e que o homem só é livre para poder ser castigado, Não é de ser livre que o meu castigo vem, mas de ser escrava, disse a mulher. Jesus calou-se. Mal tinha ouvido as palavras de Zelomi porque o pensamento, como uma súbita fresta, abriu-se para a ofuscante evidência de ser o homem um simples joguete nas mãos de Deus, eternamente sujeito a só fazer o que a Deus aprouver, quer quando julga obedecer-lhe em tudo, quer quando em tudo supõe contrariá-lo.
O sol descaía, a sombra maléfica da figueira aproximava-se. Jesus recuou um pouco e chamou a mulher, Zelomi, ela ergueu a custo a cabeça, Que queres, perguntou, Leva-me à cova onde nasci, ou diz-me onde é, se não podes andar, Custa-me caminhar, sim, mas tu não a encontrarias se eu não te levasse lá, É longe, Não, há outras covas, parecem todas iguais, Vamos, Pois sim, vamos, disse a mulher. Em Belém, as pessoas que neste dia viram passar Zelomi e o rapaz desconhecido perguntavam-se umas às outras donde se conheceriam eles. Nunca chegariam a sabê-lo porque a escrava guardou silêncio durante os dois anos que ainda teve de vida, e Jesus não mais voltará à terra em que nasceu. No dia seguinte Zelomi foi à cova onde deixara ficar o rapaz. Não o encontrou. No seu íntimo, ia a contar que assim fosse. Não teriam nada para dizer um ao outro se ele ainda lá estivesse.


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