Manhã de nevoeiro. O pescador levanta-se da esteira,
olha pela fresta da casa o espaço branco e diz para a mulher, Hoje não vou ao
mar, com uma névoa assim até os peixes se perdem debaixo de água. Disse-o este,
e, por iguais ou parecidas palavras, também o disseram os mais pescadores
todos, duma margem e da outra, perplexos pela extraordinária novidade de um
nevoeiro impróprio da época do ano em que estamos. Só um, que pescador de
ofício não é, ainda que com os pescadores seja o seu viver e trabalhar, assoma
à porta da casa como para certificar-se de que é hoje o seu dia, e, olhando o
céu opaco, diz para dentro, Vou ao mar. Por trás do seu ombro, Maria de Magdala
pergunta, Tens de ir, e Jesus respondeu, Já era tempo, Não comes, Os olhos
estão em jejum quando se abrem de manhã. Abraçou-a e disse, Enfim, vou saber
quem sou e para o que sirvo, depois, com uma incrível segurança, pois o
nevoeiro não deixava ver nem os próprios pés, desceu o declive que levava à
água, entrou numa das barcas que ali se encontravam amarradas e começou a remar
para o invisível que era o centro do mar. O som dos remos roçando e batendo na
borda do barco, o levantar e o espalhar da água que deles escorria, ressoavam
por toda a superfície e obrigavam a estar de olhos abertos os pescadores a quem
as boas mulheres haviam dito, Se não podes ir pescar, aproveita e dorme.
Inquietas, desassossegadas, as pessoas das aldeias olhavam o nevoeiro
impenetrável na direcção onde o mar devia estar e esperavam, sem o saberem, que
o ruído dos remos e da água se interrompesse de repente, para tornarem a entrar
em casa e, com chaves, trancas e cadeados, fecharem todas as portas, ainda
sabendo que um simples sopro as derrubará, se aquele que além está é quem eles
imaginam e para este lado resolver vir soprar. O nevoeiro abre-se para Jesus
passar, mas o mais longe a que os olhos chegam é a ponta dos remos, e a popa,
com a sua travessa simples a servir de banco. O resto é um muro, primeiro baço
e cinzento, depois, à medida que a barca se aproxima do destino, uma claridade
difusa começa a tornar branco e brilhante o nevoeiro, que vibra como se
procurasse, sem o conseguir, no silêncio, um som. Numa roda maior de luz, a
barca pára, é o centro do mar. Sentado no banco da popa, está Deus.
Não é, como da primeira vez, uma nuvem, uma coluna
de fumo, que hoje, estando assim o tempo, poderiam ter-se perdido e confundido
no nevoeiro. É um homem grande e velho, de barbas fluviais espalhadas sobre o
peito, a cabeça descoberta, cabelo solto, a cara larga e forte, a boca espessa,
que falará sem que os lábios pareçam mover-se. Está vestido como um judeu rico,
de túnica comprida, cor de magenta, um manto com mangas, azul, debruado de
tecido de ouro, mas nos pés tem umas sandálias grossas, rústicas, dessas de que
se diz que são para andar, o que mostra que não deve ser pessoa de hábitos sedentários.
Quando se tiver ido embora, perguntar-nos-emos, Como eram os cabelos, e não nos
recordaremos se brancos, pretos ou castanhos, pela idade deveriam ser brancos, mas
há pessoas a quem as cãs vêm tarde, será talvez esse o caso. Jesus meteu os
remos para dentro do barco, como quem calcula que a conversa vá ser demorada, e
disse, simplesmente, Cá estou. Sem pressa, metodicamente, Deus compôs as abas
do manto sobre os joelhos, e disse também, Cá estamos. Pelo tom da voz,
diríamos que tinha sorrido, mas a boca não se moveu, apenas os longos fios do
bigode e do queixo estremeceram, como um sino vibrando. Disse Jesus, Vim saber
quem sou e o que terei de fazer daqui em diante para cumprir, perante ti, a
minha parte do contrato. Disse Deus, São duas questões, portanto temos de ir
por partes, por qual queres começar, Pela primeira, quem sou eu, perguntou
Jesus, Não o sabes, perguntou Deus por sua vez, Julgava saber, julgava que era filho
do meu pai, A que pai te referes, Ao meu pai, ao carpinteiro José filho de
Heli, ou de Jacob, não sei bem, O que morreu crucificado, Não pensava que
houvesse outro, Foi um trágico engano dos romanos, esse pai morreu inocente e
sem culpa, Disseste esse pai, isso significa que há outro, Admiro-te, és um
rapaz esperto, inteligente, Neste caso não foi a inteligência que me serviu,
ouvi-o da boca do Diabo, Andas com o Diabo, Não ando com o Diabo, foi ele quem
veio ao meu encontro, E que foi que ouviste da boca do Diabo, Que sou teu
filho. Deus fez, compassado, um gesto afirmativo com a cabeça e disse, Sim, és meu
filho, Como pode um homem ser filho de Deus, Se és filho de Deus, não és um homem,
Sou um homem, vivo, como, durmo, amo como um homem, portanto sou um homem e
como homem morrerei, No teu lugar, não estaria tão certo disso, Que queres dizer,
Essa é a segunda questão, mas temos tempo, que respondeste tu ao Diabo que
disse que eras meu filho, A esse respeito nada, fiquei à espera do dia em que
te encontrasse, e a ele expulsei-o do possesso que andava atormentando,
chamava-se Legião e era muitos, Onde estão agora, Não sei, Disseste que os
expulsaste, Com certeza sabes melhor do que eu que, quando se expulsam diabos
de um corpo, não se sabe para onde vão, E por que hei-de eu saber dos assuntos
do Diabo, Sendo Deus, tens de saber tudo, Até um certo ponto, só até um certo
ponto, Que ponto, O ponto em que começa a ser interessante fazer de conta que
ignoro, Pelo menos saberás como e porquê sou teu filho e para quê, Observo que
estás muito mais despachado de espírito, e mesmo um tanto impertinente, considerando
a situação, do que quando te vi pela primeira vez, Era um rapaz assustado, agora
sou um homem, Não tens medo, Não, Tê-lo-ás, descansa, o medo chega sempre, até a
um filho de Deus, Tens outros, Outros, quê, Filhos, Só precisava de um, E eu,
como vim eu a ser teu filho, Tua mãe não to disse, Minha mãe sabe, Enviei-lhe
um anjo a explicar-lhe como as coisas se tinham passado, pensei que to tivesse
contado, E quando esteve esse anjo com minha mãe, Deixa-me ver, se não erro
muito os cálculos, foi depois de teres saído de casa pela segunda vez e antes
de fazeres aquela do vinho em Caná, Então, minha mãe soube e não mo disse,
contei-lhe que te vi no deserto e não acreditou, mas tinha de acreditar depois
de aparecer-lhe o anjo, e não o quis reconhecer perante mim, Deves saber como
são as mulheres, vives com uma, que eu sei, têm lá uns melindres, uns
escrúpulos, que só elas, Que melindres, que escrúpulos, Bem vês, eu tinha
misturado a minha semente na semente de teu pai antes de seres concebido, era a
maneira mais fácil, a que menos dava nas vistas, E estando as sementes
misturadas, como podes estar certo de que sou teu filho, É verdade que nestes
assuntos, em geral, não é prudente mostrar certeza, ainda menos absoluta, mas
eu tenho-a, de alguma coisa me serve ser Deus, E por que foi que quiseste ter um
filho, Como não tinha nenhum no céu, tive de arranjá-lo na terra, não é
original, até em religiões com deuses e deusas que podiam fazer filhos uns com
os outros, tem-se visto vir um deles à terra, para variar, suponho, de caminho melhorando
um pouco uma parte do gênero humano pela criação de heróis e outros fenômenos,
E este filho que sou, para que o quiseste, Por gosto de variar, não foi,
escusado seria dizê-lo, Então porquê, Porque estava precisado de quem me
ajudasse aqui na terra, Como Deus que és, não devias precisar de ajudas, Essa é
a segunda questão.
No silêncio que se seguiu começou a ouvir-se de
dentro do nevoeiro, porém de nenhuma direcção precisa que se pudesse apontar,
um ruído de alguém que viesse por aí nadando, e que, a julgar pelos resfolgos
que soltava, ou não pertencia à corporação dos mestres nadadores, ou estava
prestes a chegar ao limite das forças. A Jesus pareceu-lhe ver que Deus sorria
e que de propósito prolongava a pausa para dar tempo a que o nadador se mostrasse
no círculo limpo de névoa de que a barca era o centro. Surgiu por estibordo, inesperadamente,
quando se diria que ia chegar do outro lado, uma mancha escura mal definida em
que, no primeiro instante, a imaginação de Jesus julgou ver um porco com as orelhas
esticadas fora da água, mas que, após umas quantas braçadas mais, se viu ser um
homem ou algo que de homem tinha todas as semelhanças. Deus virou a cabeça para
o lado do nadador, não apenas com curiosidade, mas interessado, como se
quisesse incitá-lo neste esforço derradeiro, e um tal gesto, quiçá por vir de
quem veio, deu resultado imediato, as braçadas finais foram rápidas e
harmoniosas, nem parecia que o recém chegado viera de tão longe, da margem,
queremos dizer. As mãos agarraram-se à borda da barca enquanto a cabeça ainda
estava meio mergulhada na água, e eram umas mãos largas e possantes, com unhas
fortes, as mãos de um corpo que, como o de Deus, devia ser alto, grande e
velho. A barca oscilou com o impulso, a cabeça ascendeu da água, o tronco veio atrás
escorrendo qual catarata, as pernas depois, era o leviatã surgindo das últimas profundidades,
era, como se viu, passados todos estes anos, o pastor, que dizia Cá estou eu também,
enquanto se ia instalando na borda do barco, exactamente a meia distância entre
Jesus e Deus, porém, caso singular, a embarcação desta vez não se inclinou para
o seu lado, como se Pastor tivesse decidido aliviar-se do seu próprio peso ou
levitasse parecendo estar sentado. Cá estou, repetiu, espero ter chegado ainda
a tempo de assistir à conversa, Já íamos bastante avançados nela, mas não
tínhamos entrado no essencial, disse Deus, e, dirigindo-se a Jesus, Este é o
Diabo, de quem falávamos há pouco. Jesus olhou para um, olhou para outro, e viu
que, tirando as barbas de Deus, eram como gémeos, é certo que o Diabo parecia
mais novo, menos enrugado, mas seria uma ilusão dos olhos ou um engano por ele
induzido. Disse Jesus, Sei quem é, vivi quatro anos na sua companhia, quando se
chamava Pastor, e Deus respondeu, Tinhas de viver com alguém, comigo não era
possível, com a tua família não querias, só restava o Diabo, Foi ele que me foi
buscar, ou tu que me enviaste a ele, Em rigor, nem uma coisa nem outra, digamos
que estivemos de acordo em que essa era a melhor solução para o teu caso, Por
isso ele sabia o que dizia quando, pela boca do possesso gadareno, me chamou
teu filho, Tal qual, Quer dizer, fui enganado por ambos, Como sempre sucede aos
homens, Tinhas dito que não sou um homem, E confirmo-o, poderemos é dizer que,
qual é a palavra técnica, podemos dizer que encarnaste, E agora, que quereis de
mim, Quem quer sou eu, não ele, Estais aqui os dois, bem vi que o aparecimento
dele não foi surpresa para ti, portanto esperava-lo, Não precisamente, embora,
por princípio, se deva contar sempre com o Diabo, Mas se a questão que temos
que tratar, tu e eu, apenas nos diz respeito a nós, por que veio ele cá, por
que não o mandas embora, Pode-se despedir a arraia-miúda que o Diabo tem ao seu
serviço, no caso de ela começar a tornar-se inconveniente por actos ou
palavras, mas o Diabo, propriamente dito, não, Portanto, veio porque esta
conversa é também com ele, Meu filho, não esqueças o que te vou dizer, tudo
quanto interessa a Deus, interessa ao Diabo. Pastor, a quem, uma vez por outra,
vamos chamar assim para não estarmos a mencionar a toda a hora o nome do
Inimigo, ouviu o diálogo sem dar mostras de atenção, como se não fosse dele que
se estivesse a falar, deste modo negando, na aparência, a última e fundamental
afirmação de Deus. Mas logo se viu que a desatenção não passava de um fingimento,
foi só Jesus dizer, Falemos agora da segunda questão, e aí o temos alerta. Porém,
não saiu, da sua boca, uma só palavra.
Deus inspirou profundamente, olhou em redor o
nevoeiro e murmurou, no tom de quem acaba de fazer uma descoberta inesperada e
curiosa, Não o tinha pensado, isto aqui é como estar no deserto. Virou os olhos
para Jesus, fez uma longa pausa, e depois, como quem se resigna ao inevitável,
começou, A insatisfação, meu filho, foi posta no coração dos homens pelo Deus
que os criou, falo de mim, claro está, mas essa insatisfação, como todo o mais
que os fez à minha imagem e semelhança, fui eu buscá-la aonde ela estava, ao
meu próprio coração, e o tempo que desde então passou não a fez desvanecer,
pelo contrário, posso dizer-te, até, que o mesmo tempo a tornou mais forte,
mais urgente, mais exigente. Deus fez aqui uma breve pausa como para apreciar o
efeito da introdução, depois prosseguiu, Desde há quatro mil e quatro anos que
venho sendo deus dos judeus, gente de seu natural conflituosa e complicada, mas
com quem, feito um balanço das nossas relações, não me tenho dado mal, uma vez
que me tomam a sério e assim se irão manter até tão longe quanto a minha visão
do futuro pode alcançar, Estás, portanto, satisfeito, disse Jesus, Estou e não
estou, ou melhor, estaria se não fosse este inquieto coração meu que todos os dias
me diz Sim senhor, bonito destino arranjaste, depois de quatro mil anos de
trabalho e preocupações, que os sacrifícios nos altares, por muito abundantes e
variados que sejam, jamais pagarão, continuas a ser o deus de um povo
pequeníssimo que vive numa parte diminuta do mundo que criaste com tudo o que
tem em cima, diz-me tu, meu filho, se eu posso viver satisfeito tendo esta, por
assim dizer, vexatória evidência todos os dias diante dos olhos, Não criei
nenhum mundo, não posso avaliar, disse Jesus, Pois é, não podes avaliar, mas
ajudar, podes, Ajudar a quê, A alargar a minha influência, a ser deus de muito mais
gente, Não percebo, Se cumprires bem o teu papel, isto é, o papel que te
reservei no meu plano, estou certíssimo de que em pouco mais de meia dúzia de
séculos, embora tendo de lutar, eu e tu, com muitas contrariedades, passarei de
deus dos hebreus a deus dos que chamaremos católicos, à grega, E qual foi o
papel que me destinaste no teu plano, O de mártir, meu filho, o de vítima, que
é o que de melhor há para fazer espalhar uma crença e afervorar uma fé. As duas
palavras, mártir, vítima, saíram da boca de Deus como se a língua que dentro
tinha fosse de leite e mel, mas um súbito gelo arrepiou os membros de Jesus,
tal qual se o nevoeiro se tivesse fechado sobre ele, ao mesmo tempo que o Diabo
o olhava com uma expressão enigmática, misto de interesse científico e
involuntária piedade. Disseste-me que me darias poder e glória, balbuciou
Jesus, ainda tremendo de frio, E darei, e darei, mas lembra-te do nosso acordo,
tê-los-ás, mas depois da tua morte, E de que me servem poder e glória, se estou
morto, Bem, não estarás precisamente morto, no sentido absoluto da palavra,
pois, sendo tu meu filho, estarás comigo, ou em mim, ainda não o tenho decidido
em definitivo, Nesse sentido que dizes, que é não estar morto, É, por exemplo,
veres, para todo o sempre, como te venerarão em templos e altares, ao ponto, posso
adiantar-to desde já, de as pessoas no futuro se esquecerem um pouco do Deus inicial
que sou, mas isso não tem importância, o muito pode ser partilhado, o pouco não
o deve. Jesus olhou Pastor, viu-o sorrir, e compreendeu, Percebo agora por que
está aqui o Diabo, se a tua autoridade vier a alargar-se a mais gente e a mais
países, também o poder dele sobre os homens se alargará, pois os teus limites
são os limites dele, nem um passo mais, nem um passo menos, Tens toda a razão,
meu filho, alegro-me com a tua perspicácia, e a prova disso tem-na tu no facto,
em que nunca se repara, de os demônios de uma religião não poderem ter qualquer
acção noutra religião, como um deus, imaginando que tivesse entrado em
confronto directo com outro deus, não o pode vencer nem por ele ser vencido, E
a minha morte, será como, A um mártir convém-lhe uma morte dolorosa, e se
possível infame, para que a atitude dos crentes se torne mais facilmente
sensível, apaixonada, emotiva, Não estejas com rodeios, diz-me que morte será a
minha, Dolorosa, infame, na cruz, Como meu pai, Teu pai sou eu, não te
esqueças, Se ainda posso escolher um pai, escolho-o a ele, mesmo tendo sido
ele, como foi, infame uma hora da sua vida, Foste escolhido, não podes
escolher, Rompo o contrato, desligo-me de ti, quero viver como um homem
qualquer, Palavras inúteis, meu filho, ainda não percebeste que estás em meu
poder e que todos esses documentos selados a que chamamos acordo, pacto,
tratado, contrato, aliança, figurando eu neles como parte, podiam levar uma só
cláusula, com menos gasto de tinta e de papel, uma que prescrevesse sem
floreados Tudo quanto a lei de Deus queira é obrigatório, as excepções também,
ora, meu filho, sendo tu, duma certa e notável maneira, uma excepção, acabas por
ser tão obrigatório como o é a lei, e eu que a fiz, Mas com o poder que só tu
tens, não seria muito mais fácil, e eticamente mais limpo, ires tu próprio à conquista
desses países e dessa gente, Não pode ser, impede-o o pacto que há entre os deuses,
esse, sim, inamovível, nunca interferir directamente nos conflitos, imaginas-me
a mim numa praça pública, rodeado de gentios e pagãos, a tentar convencê-los de
que o deus deles é uma fraude e que o verdadeiro deus sou eu, não são coisas
que um deus faça a outro, além disso nenhum deus gosta que venham fazer na sua
casa aquilo que seria incorrecto ir ele fazer à casa dos outros, Então,
servis-vos dos homens, Sim, meu filho, o homem é pau para toda a colher, desde
que nasce até que morre está sempre disposto a obedecer, mandam-no para ali, e
ele vai, dizem-lhe que pare, e ele pára, ordenam-lhe que volte para trás, e ele
recua, o homem, tanto na paz como na guerra, falando em termos gerais, é a
melhor coisa que podia ter sucedido aos deuses, E o pau de que eu fui feito, sendo
homem, para que colher vai servir, sendo teu filho, Serás a colher que eu
mergulharei na humanidade para a retirar cheia dos homens que acreditarão no
deus novo em que me vou tornar, Cheia de homens, para os devorares, Não precisa
que eu o devore, quem a si mesmo se devorará.
Jesus meteu os remos na água, disse, Adeus, vou para
casa, voltareis pelo caminho por onde viestes, tu, a nado, e tu, que sem mais
nem quê apareceste, desaparece sem mais nem quê. Nem Deus nem o Diabo se
mexeram donde estavam, e Jesus acrescentou, irônico, Ah, preferem ir de barco,
pois é melhor assim, sim senhores, levo-os até à borda para que todos possam,
finalmente, ver Deus e o Diabo em figura própria, o bem que se entendem, o
parecidos que são. Jesus deu meia volta à barca, apontando-a à margem donde tinha
vindo, e, em remadas fortes e largas, entrou no nevoeiro, tão espesso que no
mesmo instante deixou de se ver Deus, e do Diabo nem o vulto. Sentiu-se vivo e
alegre, com um vigor fora do comum, donde estava não podia ver a proa do barco,
mas sentia-a levantar-se a cada impulso dos remos como a cabeça do cavalo na
corrida, que a todo o momento parece querer desligar-se do pesado corpo, mas
tem de resignar-se a puxar por ele até ao fim. Jesus remou, remou, a margem já
deverá estar próxima, qual irá ser, pergunta-se, a atitude das gentes quando
lhes disser, O das barbas é Deus, o outro é o Diabo. Jesus olhou de relance
para trás, onde a costa era, distinguiu uma claridade diferente e anunciou, Cá estamos,
e remou mais. A todo o momento esperava ouvir o deslizar macio do fundo da barca
sobre o lodo espesso da margem, o roçar alegre das pequenas pedras soltas, mas
a proa da barca, que ele não via, estava era apontada ao centro do mar, e,
quanto à luz que percebera, tornara a ser a do brilhante círculo mágico, a da
armadilha fulgurante de que Jesus imaginara ter-se escapado. Exausto, deixou
pender a cabeça para o peito, cruzou os braços sobre os joelhos, postos um
sobre o outro os punhos, como se esperasse que alguém lhos viesse atar, e nem
pensou em meter os remos para dentro do barco, tão imperiosa e exclusiva se lhe
tornara a consciência da inutilidade de qualquer gesto que fizesse. Não seria o
primeiro a falar, não reconheceria em voz alta a derrota, não pediria perdão
por haver desrespeitado a vontade e os decretos de Deus, e, indirectamente, atentado
contra os interesses do Diabo, natural beneficiário dos efeitos segundos, porém
não secundários, do uso da vontade e da realização efectiva dos projectos do
Senhor. O silêncio, depois da tentativa frustrada, foi breve, Deus, lá no seu
banco, após ter composto a fralda da túnica e o cabeção do manto com a falsa
solenidade ritual do juiz que vai produzir uma sentença, disse, Recomecemos,
recomecemos a partir da altura em que te disse que estás em meu poder, porque
tudo quanto não seja uma aceitação tua, humilde e pacífica, desta verdade, é um
tempo que não deverias perder nem obrigar-me a perder a mim, Recomecemos então,
disse Jesus, mas toma já nota de que me recuso a fazer os milagres cuja
oportunidade me apareça, e, sem milagres, o teu projecto é nada, aguaceiro que
caiu do céu e não chegou para matar nenhuma verdadeira sede, Terias razão se
fosse na tua mão que estivesse o poder de fazeres ou não fazeres milagres, E
não é, Que ideia, os milagres, tanto os pequenos como os grandes, quem os faz
sempre sou eu, na tua presença, claro, para que estejas lá a receber os
benefícios que me convêm, no fundo és um supersticioso, crês que é preciso
estar o milagreiro à cabeceira do enfermo para que o milagre aconteça, ora,
querendo eu, um homem que estivesse a morrer sem ter ninguém ao lado, sozinho
na maior solidão, sem médico, nem enfermeira, nem parente querido ao alcance da
mão ou da voz, querendo eu, repito, esse homem salvar-se-ia e continuaria a viver,
como se nada lhe tivesse acontecido, Por que não o fazes, então, Porque ele imaginaria
que a cura lhe tinha vindo pela graça dos seus méritos pessoais, pôr-se-ia a
dizer coisas como esta Uma pessoa como eu não podia morrer, ora, já há presunção
de mais no mundo que criei, não ia agora permitir que a tanto pudessem chegar
os desconcertos de opinião, Portanto, todos os milagres são teus, Os que
fizeste e os que farás, e mesmo admitindo, mas trata-se de uma mera hipótese,
apenas útil à clarificação da questão que aqui nos trouxe, admitindo que
levarias por diante essa obstinação contra a minha vontade, se fosses por esse
mundo, é um exemplo, a clamar que não és o filho de Deus, o que eu faria seria
suscitar à tua passagem tantos e tais milagres que não terias outro remédio
senão renderes-te a quem tos estivesse agradecendo, e, em consequência, a mim,
Logo, não tenho saída, Nenhuma, e não faças como o cordeiro irrequieto que não
quer ir ao sacrifício, ele agita-se, ele geme que corta o coração, mas o seu
destino está escrito, o sacrificador espera-o com o cutelo, Eu sou esse
cordeiro, O que tu és, meu filho, é o cordeiro de Deus, aquele que o próprio
Deus leva ao seu altar, que é o que estamos preparando aqui.
Jesus olhou Pastor como se dele esperasse, não um
auxílio, mas, sendo forçosamente diferente o entendimento que ele terá das
coisas do mundo, pois homem não é nem foi, nem deus foi ou há-de ser, talvez
que um olhar, um sinal de sobrancelhas, pudessem sugerir-lhe ao menos uma
resposta hábil, dilatória, que o libertasse, mesmo só por uns tempos, da
situação de animal acuado em que se encontra. Mas o que Jesus lê nos olhos de Pastor
é as palavras que ele lhe disse quando o mandou embora do rebanho, Não aprendeste
nada, vai-te, agora Jesus compreende que desobedecer a Deus uma vez não basta,
aquele que não lhe sacrificou o cordeiro, não deve sacrificar-lhe a ovelha, que
a Deus não se pode dizer Sim para depois dizer-lhe Não, como se o Sim e o Não
fossem mão esquerda e mão direita, e bom só o trabalho que as duas fizessem.
Deus, apesar das suas habituais exibições de força, ele é o universo e as
estrelas, ele é os raios e os trovões, ele é as vozes e o fogo no alto da
montanha, não tinha poder para obrigar-te a matar a ovelha, e, contudo, tu, por
ambição, mataste-a, o sangue que ela derramou não o absorveu todo a terra do
deserto, vê como chegou até nós, é aquele fio vermelho sobre a água, que,
quando daqui nos formos, nos há-de seguir pelo rasto, a ti, a Deus e a mim.
Jesus disse a Deus, Anunciarei aos homens que sou teu filho, o único filho que
Deus tem, mas não creio que, mesmo nestas terras que são tuas, seja isso
suficiente para que se alargue, quanto tu queres, o teu império, Reconheço-te,
enfim, filho meu, eis que já abandonaste as cansativas veleidades de
resistência com que quase chegaste a irritar-me, e entras, por teu próprio pé, no
modus faciendi, ora, entre as coisas inúmeras que aos homens podem ser ditas,
qualquer que seja a sua raça, cor, credo ou filosofia, uma só é pertinente a
todos, uma só, no sentido de que nenhum desses homens, sábio ou ignorante, novo
ou velho, poderoso ou miserável, ousaria responder-te Isso que me estás dizendo
não é comigo, De que se trata, perguntou Jesus, agora sem disfarçar o
interesse, Todo o homem, respondeu Deus, em tom de quem dá lição, seja ele quem
for, esteja onde estiver, faça o que fizer, é um pecador, o pecado é, por assim
dizer, tão inseparável do homem quanto o homem se tornou inseparável do pecado,
o homem é uma moeda, vira-la, e vês lá o pecado, Não respondeste à minha pergunta,
Respondo, sim, e desta maneira, a única palavra que nenhum homem pode repelir
como coisa não sua é Arrepende-te, porque todos os homens caíram em pecado, nem
que fosse uma só vez, tiveram um mau pensamento, infringiram um costume, cometeram
crime menor ou maior, desprezaram quem deles precisou, faltaram aos deveres, ofenderam
a religião e os seus ministros, renegaram a Deus, a esses homens não terás de dizer
mais do que Arrependei-vos Arrependei-vos, Arrependei-vos, Por tão pouco não precisarias
sacrificar a vida daquele de quem dizes ser pai, bastava que fizesses aparecer
um profeta, O tempo em que lhes davam ouvidos já passou, hoje só lá vamos com
um revulsivo forte, qualquer coisa capaz de chocar as sensibilidades e arrebatar
os sentimentos, Um filho de Deus na cruz, Por exemplo, E que deverei eu dizer
mais a essa gente, além de injungi-los a um duvidoso arrependimento, se, fartos
do teu recado, me virarem as costas, Sim, mandá-los arrependerem-se não creio
que seja suficiente, vais ter de recorrer à imaginação, não digas que não a
tens, ainda hoje admiro a maneira como conseguiste não me sacrificar o
cordeiro, Foi fácil, o animal não tinha nada de que se arrepender, Graciosa resposta,
porém sem sentido, mas até isso é bom, há que deixar as pessoas inquietas, duvidosas,
levá-las a pensar que se não conseguem compreender, a culpa é só delas, Devo-lhes
contar histórias, então, Sim, histórias, parábolas, exemplos morais, mesmo que
tenhas de torcer um bocadinho a lei, não te importes, é uma ousadia que as
pessoas timoratas sempre apreciam nos outros, eu próprio, mas não por ser
timorato, gostei da maneira como livraste da morte a adúltera, e olha que é
muito dizer da minha parte, pois essa justiça pu-la eu na regra que vos dei, Permites
que te subvertam as leis, é um mau sinal, Permito-o quando me serve, e chego a
querê-lo quando me é útil, recorda o que te expliquei sobre lei e excepções, o
que a minha vontade quer torna-se obrigatório no mesmo instante, Morrerei na
cruz, disseste, Essa é a minha vontade. Jesus olhou de relance o pastor, mas o
rosto dele parecia ausente, como se estivesse contemplando um momento do futuro
e lhe custasse acreditar no que os seus olhos viam. Jesus deixou cair os braços
e disse, Faça-se então em mim segundo a tua vontade.
Deus ia congratular-se, levantar-se do banco para
abraçar o filho amado, quando um gesto de Jesus o deteve, Com uma condição, Bem
sabes que não podes pôr condições, respondeu Deus, com uma expressão de
contrariedade, Não lhe chamemos condição, chamemos-lhe pedido, o simples pedido
de um condenado à morte, Diz lá, Tu és Deus, e Deus não pode senão responder
com verdade a qualquer pergunta que se lhe faça, e, sendo Deus, conhece todo o
tempo passado, a vida de hoje, que está no meio, e todo o tempo futuro, Assim
é, eu sou o tempo, a verdade e a vida, Então, diz-me, em nome de tudo o que
dizes ser, como será o futuro depois da minha morte, que haverá nele que não
haveria se eu não tivesse aceitado sacrificar-me à tua insatisfação, a esse
desejo de reinares sobre mais gente e mais países. Deus fez um movimento de
enfado, como quem acaba de ver-se preso na rede armada pelas suas próprias
palavras, e procurou, sem convicção, uma evasiva, Ora, meu filho, o futuro é
enorme, o futuro leva muito tempo a contar, Há quanto tempo estamos nós aqui no
meio do mar, cercados de nevoeiro, perguntou Jesus, um dia, um mês, um ano,
pois bem, continuemos outro ano, outro mês ou outro dia, o Diabo que se vá embora,
se quiser, de qualquer modo já tem garantida a sua parte, e se os benefícios
forem proporcionais, como parece justo, quanto mais Deus crescer, mais crescerá
o Diabo, Fico, disse Pastor, era a sua primeira palavra desde que se tinha
anunciado, Fico, repetiu, e depois, Posso, eu próprio, ver algumas coisas do
futuro, mas o que nem sempre consigo é distinguir se é verdade ou mentira o que
julgo ver, quer dizer, às minhas mentiras vejo-as como o que são, verdades de
mim, porém nunca sei até que ponto são as verdades dos outros mentiras deles. A
labiríntica tirada exigia, para ser bem rematada, que Pastor dissesse que
coisas do futuro via, mas a sua boca fechou-se com a brusquidão de quem acaba
de perceber que já falou demasiado. Jesus, que não desviara de Deus os olhos,
disse, com uma espécie de ironia triste, Para quê fingires que não sabes o que
sabes, sabias que eu te faria este pedido, sabes que me dirás o que quero
saber, portanto não atrases mais o meu tempo de começar a morrer, Começaste a
morrer desde que nasceste, Assim é, mas agora irei mais depressa. Deus olhou
Jesus com uma expressão que, em pessoa, diríamos ter sido de um súbito
respeito, todo o seu modo e ser se humanizou, e, parecendo embora que isto nada
tem que ver com aquilo, mas nós não conheceremos nunca as ligações profundas
que existem entre todas as coisas e actos, o nevoeiro avançou para a barca,
rodeou-a como uma intransponível muralha, para que dali não saíssem e
divulgassem no mundo as palavras de Deus sobre os efeitos, resultados e
consequências do sacrifício deste Jesus, filho seu que diz ser, e de Maria, mas
cujo pai verdadeiro é José, segundo aquela lei não escrita que manda acreditar
só no que se vê, embora, já se sabe, não vejamos sempre, nós, homens, as mesmas
coisas da mesma maneira, o que, aliás, se tem mostrado excelente para a sobrevivência
e relativa sanidade mental da espécie.
Disse Deus, Haverá uma Igreja, que, como sabes, quer
dizer assembleia, uma sociedade religiosa que tu fundarás, ou em teu nome será
fundada, o que é mais ou menos o mesmo se nos ativermos ao que importa, e essa
Igreja espalhar-se-á pelo mundo até a confins que ainda estão por conhecer,
chamar-se-á católica porque será universal, o que, infelizmente, não evitará
desavenças e dissensões entre os que te terão como referência espiritual, mais,
como já te disse, do que a mim próprio, mas isso será apenas por algum tempo,
só uns milhares de anos, porque eu já era antes que tu fosses e sempre o hei-de
ser depois que tu deixes de ser o que és e o que serás, Fala claro, interrompeu
Jesus, Não é possível, disse Deus, as palavras dos homens são como sombras, e
as sombras nunca saberiam explicar a luz, entre elas e a luz está e interpõe-se
o corpo opaco que as faz nascer, Perguntei-te pelo futuro, É do futuro que
estou a falar, O que quero que me digas é como viverão os homens que depois de
mim vierem, Referes-te aos que te seguirem, Sim, se serão mais felizes, Mais
felizes, o que se chama felizes, não direi, mas terão a esperança duma
felicidade lá no céu onde eu eternamente vivo, portanto a esperança de viverem eternamente
comigo, Nada mais, Parece-te pouco, viver com Deus, Pouco, muito ou tudo, só se
virá a saber depois do juízo final, quando julgares os homens pelo bem e mal
que tiverem feito, por enquanto vives sozinho no céu, Tenho os meus anjos e os
meus arcanjos, Faltam-te os homens, Pois faltam, e para que eles venham a mim é
que tu serás crucificado, Quero saber mais, disse Jesus quase com violência,
como se quisesse afastar a imagem que de si mesmo se lhe representara, suspenso
duma cruz, ensanguentado, morto, Quero saber como chegarão as pessoas a crer em
mim e a seguir-me, não me digas que será suficiente o que eu lhes disser, não
me digas que bastará o que em meu nome disserem depois de mim os que em mim já
creiam, dou-te um exemplo, os gentios e os romanos, que têm outros deuses,
quererás tu dizer-me que, sem mais nem menos, os trocarão por mim, Por ti não,
por mim, Por ti ou por mim, tu próprio dizes que é o mesmo, não joguemos com as
palavras, responde à minha pergunta, Quem tiver a fé virá a nós, Assim, sem
mais nada, tão simplesmente como acabas de o dizer, Os outros deuses
resistirão, E tu lutarás contra eles, por certo, Que disparate, tudo quanto
acontece, é na terra que acontece, o céu é eterno e pacífico, o destino dos
homens cumprem-no os homens onde estiverem, Dizendo as coisas por claro, mesmo
sendo as palavras sombras, vão morrer homens por ti e por mim, Os homens sempre
morreram pelos deuses, até por falsos e mentirosos deuses, Podem os deuses
mentir, Eles podem, E tu és, de todos, o único e verdadeiro, Único e verdadeiro,
sim, E, sendo verdadeiro e único, nem assim podes evitar que os homens morram
por ti, eles que deviam ter nascido para viver para ti, na terra, quero dizer,
não no céu, onde não terás, para lhes dar, nenhuma das alegrias da vida,
Alegrias falsas, também elas, porque nasceram com o pecado original, pergunta
aqui ao teu Pastor, ele te explicará como foi, Se há entre ti e o Diabo
segredos não partilhados, espero que um deles seja o que eu aprendi com ele,
mesmo que ele diga que não aprendi nada. Houve um silêncio, Deus e o Diabo
olharam-se de frente pela primeira vez, ambos deram a impressão de ir falar,
mas nada aconteceu. Disse Jesus, Estou à espera, De quê, perguntou Deus, como
se estivesse distraído, De que me digas quanto de morte e de sofrimento vai
custar a tua vitória sobre os outros deuses, com quanto de sofrimento e de
morte se pagarão as lutas que, em teu nome e no meu, os homens que em nós vão
crer travarão uns contra os outros, Insistes em querer sabê-lo, Insisto, Pois
bem, edificar-se-á a assembleia de que te falei, mas os caboucos dela, para
ficarem bem firmes, haverão de ser cavados na carne, e os seus alicerces
compostos de um cimento de renúncias, lágrimas, dores, torturas, de todas as mortes
imagináveis hoje e outras que só no futuro serão conhecidas, Finalmente, estás
a ser claro e directo, continua, Para começar por quem tu conheces e amas, o
pescador Simão, a quem chamarás Pedro, será, como tu, crucificado, mas de
cabeça para baixo, crucificado também há-de ser André, numa cruz em forma de X,
ao filho de Zebedeu, aquele que se chama Tiago, degolá-lo-ão, E João, e Maria
de Magdala, Esses morrerão de sua natural morte, quando se lhes acabarem os
dias naturais, mas outros amigos virás a ter, discípulos e apóstolos como os
outros, que não escaparão aos suplícios, é o caso de um Filipe, amarrado à cruz
e apedrejado até se lhe acabar a vida, um Bartolomeu, que será esfolado vivo,
um Tomé, que matarão à lançada, um Mateus, que não me lembro agora de como morrerá,
um outro Simão, serrado ao meio, um Judas, a golpes de maça, outro Tiago, lapidado,
um Matias, degolado com acha-de-armas, e também Judas de Iscariote, mas desse virás
tu a saber melhor do que eu, salvo a morte, por suas próprias mãos enforcado
numa figueira, Todos eles vão ter de morrer por causa de ti, perguntou Jesus,
Se pões a questão nesses termos, sim, todos morrerão por minha causa, E depois,
Depois, meu filho, já to disse, será uma história interminável de ferro e de
sangue, de fogo e de cinzas, um mar infinito de sofrimento e de lágrimas,
Conta, quero saber tudo. Deus suspirou e, no tom monocórdico de quem preferiu
adormecer a piedade e a misericórdia, começou a ladainha, por ordem alfabética
para evitar melindres de precedências, Adalberto de Praga, morto com um
espontão de sete pontas, Adriano, morto à martelada sobre uma bigorna, Afra de Ausburgo,
morta na fogueira, Agapito de Preneste, morto na fogueira, pendurado pelos pés,
Agrícola de Bolonha, morto crucificado e espetado com cravos, Águeda de
Sicilia, morta com os seios cortados, Alfégio de Cantuária, morto a golpes de
osso de boi, Anastácio de Salona, morto na forca e decapitado, Anastásia de
Sírmio, morta na fogueira e com os seios cortados, Ansano de Sena, morto por
arrancamento das vísceras, Antonino de Pamiers, morto por esquartejamento,
António de Rivoli, morto à pedrada e queimado, Apolinário de Ravena, morto a
golpes de maça, Apolónia de Alexandria, morta na fogueira depois de lhe
arrancarem os dentes, Augusta de Treviso, morta por decapitação e queimada,
Aura de Óstia, morta por afogamento com uma mó ao pescoço, Áurea de Síria, morta
por dessangramento, sentada numa cadeira forrada de cravos, Auta, morta à frechada,
Babilas de Antioquia, morto por decapitação, Bárbara de Nicomedia, morta por decapitação,
Barnabé de Chipre, morto por lapidação e queimado, Beatriz de Roma, morta por
estrangulamento, Benigno de Dijon, morto à lançada, Blandina de Lião, morta a cornadas
de um touro bravo, Brás de Sebaste, morto por cardas de ferro, Calisto, morto com
uma mó ao pescoço, Cassiano de Ímola, morto pelos seus alunos com um estilete, Castulo,
morto por enterramento em vida, Catarina de Alexandria, morta por decapitação, Cecília
de Roma, morta por degolamento, Cipriano de Cartago, morto por decapitação, Ciro
de Tarso, morto, ainda criança, por um juiz que lhe bateu com a cabeça nas
escadas do tribunal, Claro de Nantes, morto por decapitação, Claro de Viena,
morto por decapitação, Clemente, morto por afogamento com uma âncora ao
pescoço, Crispim e Crispiniano de Soissons, mortos por decapitação, Cristina de
Bolsano, morta por tudo quanto se possa fazer com mó, roda, tenazes, flechas e
serpentes, Cucufate de Barcelona, morto por esventramento, chegando ao fim da
letra C, Deus disse, Para diante é tudo igual, ou quase, são já poucas as
variações possíveis, excepto as de pormenor, que, pelo refinamento, levariam
muito tempo a explicar, fiquemo-nos por aqui, Continua, disse Jesus, e Deus
continuou, abreviando no que podia, Donato de Arezzo, decapitado, Elífio de Rampillon,
cortaram-lhe a calote craniana, Emérita, queimada, Emílio de Trevi, decapitado,
Esmerano de Ratisbona, amarraram-no a uma escada e aí o mataram, Engrácia de
Saragoça, decapitada, Erasmo de Gaeta, também. Chamado Telmo, esticado por um cabrestante,
Escubículo, decapitado, Ésquilo da Suécia, lapidado, Estêvão, lapidado, Eufémia
da Calcedónia, enterraram-lhe uma espada, Eulália de Mérida, decapitada,
Eutrópio de Saintes, cabeça cortada por uma acha-de-armas, Fabião, espada e
cardas de ferro, Fé de Agen, degolada, Felicidade e os Sete Filhos, cabeças
cortadas à espada, Félix e seu irmão Adaucto, idem, Ferreolo de Besançon,
decapitado, Fiel de Sigmaringen, maça eriçada de puas, Filomena, flechas e
âncora, Firmin de Pamplona, decapitado, Flávia Domitília, idem, Fortunato de
Évora, talvez idem, Frutuoso de Tarragona, queimado, Gaudêncio de França, decapitado,
Gelásio, idem mais cardas de ferro, Gengoulph de Borgonha, corno, assassinado
pelo amante da mulher, Gerardo Sagredo de Budapeste, lança, Gereão de Colónia,
decapitado, Gervásio e Protásio, gémeos, idem, Godeliva de Ghistelles, estrangulada,
Goretti Maria, idem, Grato de Aosta, decapitado, Hermenegildo, machado, Hierão,
espada, Hipólito, arrastado por um cavalo, Inácio de Azevedo, morto pelos calvinistas,
estes não são católicos, Inês de Roma, esventrada, Januário de Nápoles, decapitado
depois de ter sido lançado às feras e atirado para dentro de um forno, Joana d'Arc,
queimada viva, João de Brito, degolado, João Fisher, decapitado, João Nepomuceno
de Praga, afogado, Juan de Prado, apunhalado na cabeça, Júlia de Córsega,
cortaram-lhe os seios e depois crucificaram-na, Juliana de Nicomedia,
decapitada, Justa e Rufina de Sevilha, uma na roda, outra estrangulada, Justina
de Antioquia, queimada com pez a ferver e decapitada, Justo e Pastor, mas não
este que aqui temos, de Alcalá de Henares, decapitados, Killian de Würzburg,
decapitado, Léger d'Autun, idem depois de lhe arrancarem os olhos e a língua,
Leocádia de Toledo, fraguada do alto de um rochedo, Liévin de Gand, arrancaram-lhe
a língua e decapitaram-no, Longuinhos, decapitado, Lourenço, queimado numa
grelha, Ludmila de Praga, estrangulada, Luzia de Siracusa, degolada depois de
lhe arrancarem os olhos, Magino de Tarragona, decapitado com uma foice
serrilhada, Mamede de Capadócia, estripado, Manuel, Sabel e Ismael, o Manuel
com um cravo de ferro espetado em cada lado do peito e um cravo
atravessando-lhe a cabeça de ouvido a ouvido, todos degolados, Margarida de
Antioquia, tocha e pente de ferro, Mário da Pérsia, espada, amputação das mãos,
Martinha de Roma, decapitada, os mártires de Marrocos, Berardo de Cobio, Pedro
de Gemianino, Otão, Adjuto e Acúrsio, degolados, os do Japão, vinte e seis crucificados,
alanceados e queimados, Maurício de Agaune, espada, Meinrad de Einsiedeln, maça,
Menas de Alexandria, espada, Mercúrio da Capadócia, decapitado, Moro Tomás, idem,
Nicásio de Reims, idem, Odília de Huy, flechas, Pafnúcio, crucificado, Paio, esquartejado,
Pancrácio, decapitado, Pantaleão de Nicomedia, idem, Pátrocles de Troyes e de
Soest, idem, Paulo de Tarso, a quem deverás a tua primeira Igreja, idem, Pedro
de Rates, espada, Pedro de Verona, cutelo na cabeça e punhal no peito, Perpétua
e Felicidade de Cartago, a Felicidade era escrava da Perpétua, escorneadas por
uma vaca furiosa, Piat de Tournai, cortaram-lhe o crânio, Policarpo, apunhalado
e queimado, Prisca de Roma, comida pelos leões, Processo e Martiniano, a mesma
morte, julgo eu, Quintino, pregos na cabeça e outras partes, Quirino de Ruão, crânio
cortado em cima, Quitéria de Coimbra, decapitada pelo próprio pai, um horror,
Renaud de Dortmund, maço de pedreiro, Reine de Alise, gládio, Restituta de
Nápoles, fogueira, Rolando, espada, Romão de Antioquia, língua arrancada,
estrangulamento, ainda não estás farto, perguntou Deus a Jesus, e Jesus respondeu,
Essa pergunta devias fazê-la a ti próprio, continua, e Deus continuou, Sabiniano
de Sens, degolado, Sabino de Assis, lapidado, Saturnino de Toulouse, arrastado por
um touro, Sebastião, flechas, Segismundo rei dos Burgúndios, atirado a um poço,
Segundo de Asti, decapitado, Servácio de Tongres e de Maastricht, morto à
tamancada, Por impossível que pareça, Severo de Barcelona, cravo espetado na
cabeça, Sidwel de Exeter, decapitado, Sinforiano de Autun, idem, Sisto, idem,
Tarcísio, lapidado, Tecla de Icónio, amputada e queimada, Teodoro, fogueira,
Tibúrcio, decapitado, Timóteo de Éfeso, lapidado, Tirso, serrado, Tomás Becket
de Cantuária, espada cravada no crânio, Torcato e os Vinte e Sete, mortos pelo
general Muça às portas de Guimarães, Tropez de Pisa, decapitado, Urbano, idem,
Valéria de Limoges, idem, Valeriano, idem, Venâncio de Camerino, degolado,
Vicente de Saragoça, mó e grelha com puas, Virgílio de Trento, outro morto por
tamancos, Vital de Ravena, lança, Vítor, decapitado, Vítor de Marselha, degolado,
Vitória de Roma, morta depois de ter a língua arrancada, Wilgeforte, ou
Liberata, ou Eutrópia, virgem, barbuda, crucificada, e outros, outros, outros,
idem, idem, idem, basta. Não basta, disse Jesus, a que outros te referes, Achas
que é mesmo indispensável, Acho, Refiro-me àqueles que, não tendo sido
martirizados e morrendo de sua morte própria, sofreram o martírio das tentações
da carne, do mundo e do demônio, e que para as vencerem tiveram de mortificar o
corpo pelo jejum e pela oração, há até um caso interessante, um tal John
Schorn, que passou tanto tempo ajoelhado a rezar que acabou por criar calos,
onde, nos joelhos, evidentemente, e também se diz, isto agora é contigo, que fechou
o diabo numa bota, ah, ah, ah, Eu, numa bota, duvidou Pastor, isso são lendas,
para que eu pudesse ser fechado numa bota, era preciso que ela tivesse o
tamanho do mundo, e, mesmo assim, queria ver quem havia aí capaz de calçá-la e
descalçá-la depois, Só pelo jejum e pela oração, perguntou Jesus, e Deus
respondeu, Também ofenderão o corpo com dor e sangue e porcaria, e outras
muitas penitências, usando cilícios e praticando flagelações, haverá mesmo quem
não se lave durante toda a vida, ou quase, haverá quem se lance para o meio das
silvas e se revolva na neve para domar as importunações da carne suscitadas
pelo Diabo, a quem estas tentações se devem, que o fito dele é desviar as almas
do recto caminho que as levaria ao céu, mulheres nuas e monstros pavorosos,
criaturas da aberração, a luxúria e o medo, são as armas com que o Demônio
atormenta as pobres vidas dos homens, Tudo isto farás, perguntou Jesus a
Pastor, Mais ou menos, respondeu ele, limitei-me a tomar para mim aquilo que
Deus não quis, a carne, com a sua alegria e a sua tristeza, a juventude e a
velhice, a frescura e a podridão, mas não é verdade que o medo seja uma arma
minha, não me lembro de ter sido eu quem inventou o pecado e o seu castigo, e o
medo que neles há sempre, Cala-te, interrompeu Deus, impaciente, o pecado e o
Diabo são os dois nomes duma mesma coisa, Que coisa, perguntou Jesus, A
ausência de mim, E a ausência de ti, a que se deve, a teres-te retirado tu ou a
terem-se retirado de Ti, Eu não me retiro nunca, Mas consentes que te deixem,
Quem me deixa, procura-me, E se não te encontra, a culpa, já se sabe, é do
Diabo, Não, disso não é ele culpado, a culpa tenho-a eu, que não alcanço a
chegar onde me buscam, estas palavras proferiu-as Deus com uma pungente e
inesperada tristeza, como se de repente tivesse descoberto limites ao seu
poder. Jesus disse, Continua, Outros há, recomeçou lentamente Deus, que se
retiram para descampados agrestes e fazem, em grutas e cavernas, na companhia
dos bichos, vida solitária, outros que se deixam emparedar, outros que sobem a
altas colunas e ali vivem anos e anos a fio, outros, a voz diminuiu, esmoreceu,
Deus contemplava agora um desfile interminável de gente, milhares e milhares,
milhares de milhares de homens e mulheres, em todo o orbe, entrando em
conventos e mosteiros, algumas rústicas construções, muitos palácios soberbos,
Ali vão ficar para nos servirem, a mim e a ti, de manhã à noite, com vigílias e
orações, e, tendo todos eles o mesmo propósito e o mesmo destino, adorarem-nos e
morrerem com os nossos nomes na boca, usarão nomes distintos, serão
beneditinos, bernardos, cartuxos, agostinhos, gilbertinos, trinitários,
franciscanos, dominicanos, capuchinhos, carmelitas, jesuítas, e serão muitos,
muitos, muitos, ah como eu gostaria de poder exclamar Meu Deus por que são eles
tantos. Disse o Diabo, nesta altura, a Jesus, Observa como há, no que ele tem
vindo a contar, duas maneiras de perder-se a vida, uma pelo martírio, outra
pela renúncia, não bastava terem de morrer quando lhes chegasse a hora, ainda é
preciso que, de uma maneira ou outra, corram ao encontro dela, crucificados, estripados,
degolados, queimados, lapidados, afogados, esquartejados, estrangulados, esfolados,
alanceados, escorneados, enterrados, serrados, flechados, amputados, escardeados,
ou então, dentro e fora de celas, capítulos e claustros, castigando-se por
terem nascido com o corpo que Deus lhes deu e sem o qual não teriam onde pôr a
alma, tais tormentos não os inventou este Diabo que te fala. É tudo, perguntou
Jesus a Deus, Não, ainda faltam as guerras, Também haverá guerras, E matanças,
De matanças estou informado, podia mesmo ter morrido numa delas, vendo bem, foi
pena, agora não teria à minha espera um crucifixo; Levei o outro teu pai aonde
era preciso que estivesse para poder ouvir o que eu quis que os soldados
dissessem, enfim, poupei-te a vida, Poupaste-me a vida para me fazeres morrer
quando te aprouvesse e aproveitasse, é como se me matasses duas vezes, Os fins
justificam os meios, meu filho, Pelo que tenho ouvido da tua boca desde que
aqui estamos, acredito que sim, renúncia, clausura, sofrimentos, morte, e agora
as guerras e matanças, que guerras são essas, Muitas, um nunca mais acabar
delas, mas sobretudo as que serão feitas contra ti e contra mim em nome de um
deus que ainda está por aparecer, Como é possível estar por aparecer um deus,
um deus, se realmente o é, só pode existir desde sempre e para sempre,
Reconheço que custa a compreender, não menos a explicar, mas vai suceder como
te estou dizendo, um deus virá e lançará contra nós, e os que então nos
seguirem, povos inteiros, não, não tenho palavras bastantes para contar-te das
mortandades, das carnificinas, das chacinas, imagina o meu altar de Jerusalém multiplicado
por mil, põe homens no lugar dos animais, e nem mesmo assim chegarás a saber ao
certo o que foram as cruzadas, Cruzadas, que é isso, e por que dizes tu que
foram se ainda estão para ser, Lembra-te de que eu sou o tempo, e que,
portanto, para mim, tudo quanto está para acontecer, já aconteceu, tudo quanto
aconteceu, está acontecendo todos os dias, Conta-me isso das cruzadas, Bom, meu
filho, estes lugares onde agora estamos, incluindo Jerusalém, e outras terras
para norte e ocidente, hão-de ser conquistados pelos seguidores do tal deus
tardio de que te falei, e os nossos, os que estão do nosso lado, farão tudo
para expulsá-los dos sítios que tu com os teus pés pisaste e que eu com tanta assiduidade
frequento, Para lançar fora de cá os romanos, hoje, não tens feito muito, Estou
a falar-te do futuro, não me distraias, Prossegue, então, Acresce que tu
nasceste aqui, aqui viveste e aqui morreste, Por enquanto, ainda não morri,
Para o caso, tanto faz, mesmo agora te expliquei o que é, do meu ponto de
vista, acontecer e ter acontecido, e, por favor, não estejas sempre a
interromper-me se não queres que me cale de vez, Eu é que me calo, Ora bem, a
estas bandas por aqui darão os vindouros o nome de Santos Lugares, pela razão de
cá teres nascido, vivido e morrido, então não ficava nada bem, à religião que
vais ser, estar o berço dela nas mãos indignas de infiéis, motivo, como vês,
mais do que suficiente para justificar que, durante uns duzentos anos, grandes
exércitos vindos do ocidente tentem conquistar e conservar na nossa religião a
cova onde nasceste e o monte onde irás morrer, para só falar dos principais
lugares, Esses exércitos são as cruzadas, Assim é, E conquistaram o que
queriam, Não, mas mataram muita gente, E os das cruzadas, Morreram outros
tantos, se não mais, E tudo isso, em nome nosso, Irão para a guerra gritando
Deus o quer, E devem ter morrido dizendo Deus o quis, Seria uma bonita maneira
de acabar, Novamente não valeu a pena o sacrifício, A alma, meu filho, para
salvar-se, precisa do sacrifício do corpo, Por essas ou outras palavras, já to
tinha ouvido antes, e tu, Pastor, que nos dizes destes futuros e assombrosos
casos, Digo que ninguém que esteja em seu perfeito juízo poderá vir a afirmar
que o Diabo foi, é, ou será culpado de tal morticínio e tais cemitérios, salvo
se a algum malvado ocorrer a lembrança caluniosa de me atribuir a responsabilidade
de fazer nascer o deus que vai ser inimigo deste, Parece-me claro e óbvio que
não tens culpa, e, quanto ao temor de que te atirem com as responsabilidades, responderás
que o Diabo, sendo mentira, nunca poderia criar a verdade que Deus é, Mas então,
perguntou Pastor, quem vai criar o Deus inimigo. Jesus não sabia responder,
Deus, se calado estava, calado ficou, porém do nevoeiro desceu uma voz que
disse, Talvez este Deus e o que há-de vir não sejam mais do que heterônimos, De
quem, de quê, perguntou, curiosa, outra voz, De Pessoa, foi o que se percebeu,
mas também podia ter sido, Da Pessoa. Jesus, Deus e o Diabo começaram por fazer
de conta que não tinham ouvido, mas logo a seguir entreolharam-se com susto, o
medo comum é assim, une facilmente as diferenças.
Passou tempo, o nevoeiro não tornou a falar, e Jesus
perguntou, agora no tom de quem só espera uma resposta afirmativa, Nada mais.
Deus hesitou, e depois, em tom cansado, disse, Ainda há a Inquisição, mas dela,
se não te importas, podíamos falar noutra altura, Que é a Inquisição, A
Inquisição é outra história interminável, Quero saber, Seria melhor que não
soubesses, Insisto, Vais sofrer na tua vida de hoje remorsos que são do futuro,
E tu, não, Deus é Deus, não tem remorsos, Pois eu, se já levo esta carga de ter
de morrer por ti, também posso aguentar os remorsos que deviam ser teus,
Preferia poupar-te, De facto, não tens feito outra coisa desde que nasci, És um
ingrato, como são todos os filhos, Deixemo-nos de fingimentos, diz-me o que vai
ser a Inquisição, A Inquisição, também chamada Tribunal do Santo Ofício, é o
mal necessário, o instrumento crudelíssimo com que debelaremos a infecção que
um dia, e por longo tempo, se instalará no corpo da tua Igreja por via das
nefandas heresias em geral e seus derivados e consequentes menores, a que se
somam umas quantas perversões do físico e do moral, o que, tudo reunido e posto
no mesmo saco de horrores, sem preocupações de prioridade e ordem, incluirá
luteranos e calvinistas, molinistas e judaizantes, sodomitas e feiticeiros,
mazelas algumas que serão do futuro, outras de todos os tempos, E, sendo a
necessidade que dizes, como procederá a Inquisição para reduzir esses males, A
Inquisição é uma polícia e é um tribunal, por isso haverá de prender, julgar e
condenar como fazem os tribunais e as polícias, Condenará a quê, Ao cárcere, ao
degredo, à fogueira, À fogueira, dizes, Sim, vão morrer queimados, no futuro,
milhares e milhares e milhares de homens e mulheres, De alguns já me tinhas
falado antes, Esses foram lançados à fogueira por crerem em ti, os outros
sê-lo-ão por duvidarem, Não é permitido duvidar de mim, Não, Mas nós podemos
duvidar de que o Júpiter dos romanos seja deus, O único Deus sou eu, eu sou o
Senhor, e tu és o meu Filho, Morrerão milhares, Centenas de milhares, Morrerão
centenas de milhares de homens e mulheres, a terra encher-se-á de gritos de
dor, de uivos e roncos de agonia, o fumo dos queimados cobrirá o sol, a gordura
deles rechinará sobre as brasas, o cheiro agoniará, e tudo isto será por minha
culpa, Não por tua culpa, por tua causa, Pai, afasta de mim este cálice, Que tu
o bebas é a condição do meu poder e da tua glória, Não quero esta glória, Mas
eu quero esse poder. O nevoeiro afastou-se para onde estivera antes, via-se uma
pouca de água ao redor do barco, lisa e baça, sem uma ruga de vento ou uma
agitação de barbatana passando. Então o Diabo disse, É preciso ser-se Deus para
gostar tanto de sangue.
O nevoeiro voltou a avançar, alguma coisa estava
para acontecer ainda, outra revelação, outra dor, outro remorso. Mas foi Pastor
quem falou, Tenho uma proposta a fazer-te, disse, dirigindo-se a Deus, e Deus,
surpreendido, Uma proposta, tu, e que proposta vem a ser essa, o tom era irônico,
superior, capaz de reduzir ao silêncio qualquer que não fosse o Diabo,
conhecido e familiar de longa data. Pastor fez um silêncio, como se procurasse
as melhores palavras, e explicou, Ouvi com grande atenção tudo quanto foi dito nesta
barca, e embora já tivesse, por minha conta, entrevisto uns clarões e umas
sombras no futuro, não cuidei que os clarões fossem de fogueiras e as sombras
de tanta gente morta, E isso incomoda-te, Não devia incomodar-me, uma vez que
sou o Diabo, e o Diabo sempre alguma coisa aproveita da morte, e mesmo mais do
que tu, pois não precisa de demonstração que o inferno sempre será mais povoado
do que o céu, Então de que te queixas, Não me queixo, proponho, Propõe lá, mas
depressa, que não posso ficar aqui eternamente, Tu sabes, ninguém melhor do que
tu o sabe, que o Diabo também tem coração, Sim, mas fazes mau uso dele, Quero
hoje fazer bom uso do coração que tenho, aceito e quero que o teu poder se
alargue a todos os extremos da terra, sem que tenha de morrer tanta gente, e
pois que de tudo aquilo que te desobedece e nega, dizes tu que é fruto do Mal
que eu sou e ando a governar no mundo, a minha proposta é que tornes a receber-me
no teu céu, perdoado dos males passados pelos que no futuro não terei de
cometer, que aceites e guardes a minha obediência, como nos tempos felizes em
que fui um dos teus anjos predilectos, Lúcifer me chamavas, o que a luz levava,
antes que uma ambição de ser igual a ti me devorasse a alma e me fizesse
rebelar contra a tua autoridade, E por que haveria eu de receber-te e
perdoar-te, não me dirás, Porque se o fizeres, se usares comigo, agora, daquele
mesmo perdão que no futuro prometerás tão facilmente à esquerda e à direita,
então acaba-se aqui hoje o Mal, teu filho não precisará morrer, o teu reino
será, não apenas esta terra de hebreus, mas o mundo inteiro, conhecido e por
conhecer, e mais do que o mundo, o universo, por toda a parte o Bem governará,
e eu cantarei, na última e humilde fila dos anjos que te permaneceram fiéis,
mais fiel então do que todos, porque arrependido, eu cantarei os teus louvores,
tudo terminará como se não tivesse sido, tudo começará a ser como se dessa
maneira devesse ser sempre, Lá que tens talento para enredar almas e perdê-las,
isso sabia eu, mas um discurso assim nunca te tinha ouvido, um talento oratório,
uma lábia, não há dúvida, quase me convencias, Não me aceitas, não me perdoas, Não
te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que
és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu
és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que
nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem,
é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus
não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro, É a tua última
palavra, A primeira e a última, a primeira porque foi a primeira vez que a
disse, a última porque não a repetirei. Pastor encolheu os ombros e falou para
Jesus, Que não se diga que o Diabo não tentou um dia a Deus, e, levantando-se, ia
passar uma perna por cima da borda do barco, mas de súbito suspendeu o
movimento e disse, Tens no teu alforge uma coisa que me pertence. Jesus não se
lembrava de ter trazido o alforge para o barco, mas a verdade é que ele ali
estava, enrolado, aos seus pés, Que coisa, perguntou, e, abrindo-o, viu que
dentro não havia mais do que a velha tigela negra que de Nazaré trouxera, Isto,
Isso, respondeu o Diabo, e tomou-lha das mãos, Um dia voltará ao teu poder, mas
tu não chegarás a saber que a tens. Meteu a tigela por dentro da grosseira roupa
de pastor que vestia e desceu para a água. Não olhou Deus, apenas disse, como
se falasse a um auditório de invisíveis, Até sempre, já que ele assim o quis.
Jesus seguiu-o com os olhos, Pastor ia-se afastando a pouco e pouco em direcção
ao nevoeiro, não se lembrara de lhe perguntar por que capricho viera e se
retirava assim, a nado, à distância era outra vez como um porco com as orelhas
espetadas, ouviam-se os resfolgos bestiais, mas um ouvido fino não teria
dificuldade em perceber que havia também ali um som de medo, não de afogar-se,
que ideia, o Diabo, acabamos de sabê-lo mesmo agora, não acaba, mas de ter de existir
para sempre. Já Pastor se perdia na fímbria esgarçada da névoa quando a voz de Deus
de repente soou, rápida, como quem já vai de partida, Mandarei um homem chamado
João para te ajudar, mas terás de convencê-lo de que és quem dirás ser. Jesus
olhou, mas Deus já ali não estava. No mesmo instante o nevoeiro levantou-se e
desfez-se no ar, deixando o mar limpo e liso de uma ponta à outra, entre os
montes e os montes, na água nem um sinal do Diabo, no ar nem um sinal de Deus.
Na margem donde tinha vindo viu Jesus, apesar da
distância, um grande ajuntamento de pessoas, e muitas tendas armadas por trás
da multidão, como se aquele lugar se tivesse transformado em local de
permanência de uma gente que, não sendo dali, e portanto não tendo onde dormir,
fora obrigada a organizar-se por sua conta. Achando o caso curioso, mas nada
mais, Jesus meteu os remos na água e orientou a barca naquela direcção. Ao
olhar por cima do ombro, observou que estavam a ser empurrados alguns barcos
para a água, e, firmando melhor a vista, reconheceu dentro deles Simão e André,
e Tiago e João, de mistura com outros que não se lembrava de ter visto, uns
tantos sim, de andarem por aqui. Em pouco tempo se aproximaram, tanto era o
empenho com que manejavam os remos, e, chegando à fala, gritou Simão, Onde
estiveste, o que queria saber não era isto, claro, mas tinha de começar de alguma
maneira, Aqui no mar, respondeu Jesus, palavras tão desnecessárias umas como
outras, em verdade não parecem principiar bem as comunicações na nova época da
vida do filho de Deus, de Maria e de José. Daí a um nada, enfim, saltava Simão
para a barca de Jesus, e o incompreensível, o impossível, o absurdo foi conhecido,
Sabes quanto tempo estiveste no mar, no meio do nevoeiro, sem que nós pudéssemos
lançar os nossos barcos à água, que uma força invencível de cada vez nos empurrava
para trás, perguntou Simão, O dia todo, foi a resposta de Jesus, um dia e uma noite,
acrescentou, para corresponder à excitação de Simão com uma expectativa semelhante,
Quarenta dias, gritou Simão, e em voz mais baixa, Quarenta dias estiveste ali, quarenta
dias em que o nevoeiro não se levantou nem um bocadinho, como se quisesse esconder
da nossa vista o que dentro dele se passava, que estiveste lá a fazer, que em quarenta
contados dias nem um só peixe nos foi permitido tirar destas águas. Jesus
deixara para Simão um dos remos, agora vinham os dois remando e conversando de
concerto, ombro com ombro, pausados, o melhor que há para uma confidência, por
isso antes que se acercassem outros barcos disse Jesus, Estive com Deus e sei o
meu futuro, o tempo que viverei e a vida depois da minha vida, Como é ele, como
é Deus, quero dizer, Deus não se mostra numa única forma, tanto pode aparecer
numa nuvem, numa coluna de fumo, como vir de judeu rico, conhecemo-lo mais pela
voz, depois de o termos ouvido uma vez, Que te disse ele, Que sou seu Filho,
Confirmou, Sim, confirmou, Então, o Diabo tinha razão quando foi daquele caso
dos porcos, O Diabo também esteve agora no barco, presenciou tudo, parece saber
tanto de mim como Deus, mas há ocasiões em que penso que sabe ainda mais do que
Deus, E onde, Onde, quê, Onde estavam eles, O Diabo na borda do barco, aí mesmo,
entre ti e Deus, que ficou no banquinho da popa, Que te disse Deus, Que sou seu
filho e serei crucificado, Vais para as montanhas lutar ao lado dos bandidos,
se vais, vamos contigo, Ireis comigo, mas não para as montanhas, o que importa
não é vencer César pelas armas, mas fazer triunfar Deus pela palavra, Só, Pelo
exemplo também, e pelo sacrifício das nossas vidas, quando for preciso, São
palavras de teu Pai, A partir de hoje todas as minhas palavras serão palavras
dele, e aqueles que nele crerem, em mim crerão, porque não é possível crer no
Pai e não crer no Filho, se o novo caminho que o Pai escolheu para si, só no
Filho que eu sou poderá começar, Disseste que iríamos contigo, a quem te referes,
A ti, em primeiro lugar, a André, teu irmão, aos dois filhos de Zebedeu, a
Tiago e a João, a propósito, Deus disse-me que me enviaria um homem chamado
João para me ajudar, mas aquele não deve ser, Não precisamos de mais, isto não
é um cortejo de Herodes, Outros hão-de vir, e quem sabe se alguns desses não
estão já ali, à espera de um sinal, um sinal que Deus manifestará em mim, para
que me creiam e me sigam aqueles por quem ele não se deixa ver, Que vais
anunciar às pessoas, Que se arrependam dos seus pecados, que se preparem para o
novo tempo de Deus que aí vem, o tempo em que a sua espada flamejante obrigará
a dobrar o pescoço àqueles que tiverem rejeitado a sua palavra e sobre ela
cuspido, Vais dizer-lhes que és o Filho de Deus, não podes fazer menos do que
isso, Direi que meu Pai me chamou seu Filho e que levo essas palavras no
coração desde que nasci, e que agora veio também Deus dizer-me Meu Filho, um
pai não faz esquecer o outro, mas hoje quem ordena é o Pai Deus,
obedeçamos-lhe, Então, deixa-me o caso comigo, disse Simão, e, acto contínuo,
largou o remo, deslocou-se para a proa da embarcação e, como a voz já alcançasse,
gritou, Hosana, que vem chegando o Filho de Deus, ele que esteve no mar durante
quarenta dias a falar com o Pai e agora regressa a nós para que nos
arrependamos e preparemos, Não digas que o Diabo também lá estava, avisou
rápido Jesus, temeroso de que se tornasse conhecida publicamente uma situação
que teria muita dificuldade em explicar. Deu Simão um novo grito, mas mais
vibrante, com o que se alvoroçaram as gentes que na margem esperavam, e depois
voltou a correr para o seu lugar, dizendo a Jesus, Deixa esse remo para mim e
vai-te pôr na proa, de pé, mas não digas nada de lá, enquanto não saltarmos em
terra não dizes uma palavra. Assim fizeram, Jesus em pé, na proa da barca, com
a sua túnica velha, o alforge vazio ao ombro, os braços meio levantados, como se
fosse saudar ou lançar uma bênção e o retivesse a timidez ou uma falta de
confiança no seu próprio merecimento. Dentre os que o esperavam, três houve,
mais impacientes, que se meteram à água até à cintura e, chegados à altura do
barco, lançaram-lhe mão e vieram puxando e empurrando a barca, enquanto, de
fora, com a mão livre, um deles tentava tocar a túnica de Jesus, não porque estivesse
convencido da verdade do anúncio de Simão, mas por já se lhe afigurar caso
notável ter-se ausentado um homem para o meio do mar durante quarenta dias,
como se tivesse ido para o deserto à procura de Deus, e das entranhas frias duma
montanha de nevoeiro estar agora voltando, visse ou não visse Deus. Não deveria
ser preciso acrescentar que não se tem falado doutra coisa por estas aldeias e
cercanias, muitos dos que aqui estão vieram por causa do fenômeno
meteorológico, ouviram apenas falar que estava lá um homem dentro e disseram,
Coitado. A barca abicou sem um solavanco, como se ali a tivessem deposto asas
de anjos. Simão ajudou Jesus a sair, sacudindo com impaciência mal reprimida os
três que tinham ido à água e por isso se julgavam credores de diferente pago,
Deixa-os, disse Jesus, um dia ouvirão que morri e sentirão dor de não terem podido
levar o meu corpo morto, deixa-os que me ajudem enquanto estou vivo. Jesus subiu
a um cômoro e perguntou aos seus, Onde está Maria, viu-a no mesmo instante em que
fez a pergunta, como se o nome dela, pronunciado, a tivesse trazido de um nada
ou de um nevoeiro, parecia que não estava ali, mas bastava dizer-lhe o nome, e
ela vinha, Aqui estou, meu Jesus, Vem para o meu lado, venham também Simão e
André, venham Tiago e João, os filhos de Zebedeu, estes são os que me conhecem
e em mim creem, que já me conheciam e criam quando eu ainda não podia
dizer-lhes, e a vós também, que sou o Filho de Deus nascido, este Filho que foi
chamado pelo Pai e com ele esteve quarenta dias no meio do mar, e que de lá
voltou para dizer-vos que o tempo do Senhor é chegado e que deveis
arrepender-vos antes que o Diabo venha recolher as espigas podres que tiverem caído da messe que Deus transporta no seu
regaço, que essas sois vós, se, por vosso mal, ao amoroso abraço de Deus
quereis escapar-vos. Passou um murmúrio pela multidão, rolando sobre as cabeças
como aquelas pequenas ondas que no mar outra vez se veem, em verdade, muitos
dos assistentes tinham ouvido falar de milagres obrados em diversas partes por
aquele que além está, alguns haviam sido, mesmo, directas testemunhas e
beneficiários deles, Eu comi daquele pão e daquele peixe, dizia um, Eu bebi
daquele vinho, dizia outro, Eu era vizinho daquela adúltera, dizia um terceiro,
mas entre tais cometimentos, por muito transcendentes que pudessem ter sido ou
o parecessem, e este proclamado supremo prodígio de ser Filho de Deus e,
portanto, Deus ele próprio, a distância é como da terra ao céu, e essa, que se
saiba, ainda não foi, até hoje, medida. Do meio da multidão veio então uma voz,
Dá-nos uma prova de que és o Filho de Deus e eu seguir-te-ei, Tu seguir-me-ias sempre
se o teu coração te trouxesse a mim, mas o teu coração está preso dentro de um peito
fechado, por isso pedes-me uma prova que os teus sentidos possam compreender, pois
bem, vou dar-te agora uma prova que dará satisfação aos teus sentidos, mas que
a tua cabeça recusará, e, no fim, estando tu dividido e perplexo entre a cabeça
e os sentidos, não terás outro remédio senão vir a mim pelo coração, Quem puder
entender que entenda, eu não entendo, disse o homem, Como te chamas, Tomé, Vem
aqui, Tomé, vem comigo até à borda da água, vem ver-me fazer uns pássaros com
esta lama que colho às mãos-cheias, repara como é tão fácil, formo e modelo o
corpo e as asas, afeiçoo a forma da cabeça e do bico, engasto estas pedrinhas
que são os olhos, ajeito as penas compridas da cauda, equilibro-lhes as pernas
e os dedos, e, tendo feito este, faço mais onze, aqui os tens, um, dois, três,
quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze pássaros de lama,
imagina, até podemos, se quiseres, dar-lhes nomes, este é Simão, este Tiago,
este André, este João, e este, se não te importa, chamar-se-á Tomé, quanto aos
outros vamos esperar que os nomes apareçam, os nomes, muitas vezes, atrasam-se
no caminho, chegam mais tarde, e agora vê como faço, lanço esta rede por cima
das avezinhas para que elas não possam fugir, os pássaros, se não temos
cuidado, Queres dizer-me que se esta rede for levantada, os pássaros fogem,
perguntou, incrédulo, Tomé, Sim, se a rede for levantada, os pássaros fogem,
Esta é a prova com que querias convencer-me, Sim e não, Como, sim e não, A melhor
prova, mas essa não é de mim que depende, seria não levantares tu a rede e acreditares
que os pássaros fugiriam se a levantasses, São de barro, não podem fugir, Experimenta,
também Adão, nosso primeiro pai, foi de barro e tu descendes dele, A Adão deu-lhe
a vida Deus, Não duvides mais, Tomé, e levanta a rede, eu sou o Filho de Deus, Assim
o quiseste, assim o terás, estes pássaros não voarão, com um movimento rápido Tomé
levantou a rede, e os pássaros, livres, levantaram voo, deram, chilreando, duas
voltas sobre a multidão maravilhada e desapareceram no espaço. Disse Jesus,
Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora, e Tomé respondeu, Não, Senhor, está
aqui ajoelhado aos teus pés, sou eu.
Da multidão adiantaram-se alguns homens, atrás
deles, porém não dependentes, umas quantas mulheres. Aproximaram-se e disseram
como se chamavam, Eu sou Filipe, e Jesus viu nele as pedras e a cruz, Eu sou
Bartolomeu, e Jesus viu nele um corpo esfolado, Eu sou Mateus, e Jesus viu-o
morto entre gente bárbara, Eu sou Simão, e Jesus viu nele a serra que o
cortava, Eu sou Tiago, filho de Alfeu, e Jesus viu que o lapidavam, Eu sou Judas
Tadeu, e Jesus viu a maça que se levantava sobre a sua cabeça, Eu sou Judas de Iscariote,
e Jesus teve pena dele porque o viu enforcar-se por suas próprias mãos na figueira.
Então Jesus chamou os outros e disse, Agora estamos todos, chegou a hora. E para
Simão, irmão de André, Porque temos outro Simão connosco, tu, Simão, de hoje em
diante, chamar-te-ás Pedro. Viraram as costas ao mar e puseram-se a caminho,
atrás deles iam as mulheres, da maior parte das quais não chegamos a saber os
nomes, na verdade, tanto faz, quase todas estas são Marias, e mesmo as que o
não forem darão por esse nome, dizemos mulher, dizemos Maria, e elas olham e
vêm servir-nos.
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