Quando Jesus vai ao mar com os pescadores, Maria de
Magdala fica à espera dele, em geral sentada numa pedra à borda da água, ou num
cômoro elevado, se os há, donde melhor possa acompanhar a rota e seguir a
navegação. As pescas, agora, não são demoradas, nunca houve neste mar tal cópia
de peixe, diriam os desprevenidos, é como pescar à mão num balde cheio, mas
logo observam que as facilidades não são iguais para todos, o balde está como
sempre, pouco menos que vazio, se Jesus anda por outras paragens e as mãos e os
braços cansam-se a lançar a atarrafa e desanimam vendo-a voltar apenas com um
peixe aqui outro além presos nas malhas. Por isso é que todo o mundo pescador
da margem ocidental do mar da Galileia anda a pedir Jesus, a reclamar Jesus, a
exigir Jesus, e já em alguns lugares tem acontecido receberem-no com festas,
palmas e flores como se em domingo de Ramos estivéssemos. Mas, sendo o pão dos
homens aquilo que é, uma mistura de inveja e de malícia, alguma caridade às
vezes, onde fermenta um fermento de medo que faz crescer o que é mau e
atabafar-se o que é bom, também sucedeu brigarem companhas e companhas, aldeias
e aldeias, porque todos queriam ter Jesus só para eles, os outros que se
governassem conforme pudessem. Quando tal acontecia, Jesus retirava-se para o
deserto e só de lá voltava quando os desordeiros arrependidos iam rogar-lhe que
lhes perdoasse os excessos, que tudo era uma consequência do muito que lhe
queriam. O que para todo o sempre vai ficar por explicar é por que razão os
pescadores da margem oriental nunca despacharam delegados ao lado de cá com
vista à discussão e estabelecimento de um pacto justo que a todos beneficiasse
por igual, excepto os gentios de vária tinta e crença que por aqui não faltam.
Também poderiam os da outra banda, em flotilha de batalha naval, armados de
redes e piques, e a coberto de uma noite sem lua, ter vindo roubar Jesus ao
ocidente, deixando o ocidente outra vez condenado a um passadio de
necessidades, ele que se habituou a uma pitança farta.
Este é ainda o dia em que Tiago e José vieram pedir
a Jesus que tornasse à casa que era a sua, virando costas à vida de
vagabundagem, por muito que dela se estivesse aproveitando a indústria das
pescas e derivados. A estas horas, os dois irmãos, cada qual com seu
sentimento, um Tiago furioso, um choroso José, vão em passo acelerado por esses
montes e vales, caminho de Nazaré, onde a mãe se pergunta pela centésima vez
se, tendo visto sair dali dois filhos, irá ver entrar três, porém, duvida. A
estrada de regresso que os irmãos tiveram de tomar, por ser a que mais próxima
estava do ponto da costa onde haviam encontrado Jesus, fê-los passar por
Magdala, cidade de que Tiago conhecia pouco e José nada, mas que, a julgar
pelas aparências, não merecia nem detença nem desfrute. Refrescaram-se pois à
passagem os dois irmãos e seguiram adiante. Saindo do povoado, palavra que
usamos aqui apenas porque exprime uma oposição lógica e clara ao deserto que
tudo rodeia, viram adiante, à mão esquerda, uma casa com sinais de incêndio,
mostrando apenas as quatro paredes no ar. A porta do pátio, sem dúvida meio
destroçada por um arrombamento, não ardera, o fogo, que tudo arrasara, fora
todo dentro. Em casos como este, o passante, quem quer que ele seja, sempre
pensa que debaixo dos escombros poderá ter ficado algum tesouro, e, se crê que
não há perigo de cair-lhe uma trave em cima, entra para tentar a sua sorte,
avança cautelosamente, remexe com a ponta do pé umas cinzas, umas pontas de
tições, uns carvões mal ardidos, na ideia de ver surgir de repente, a luzir, a
moeda de ouro, o incorruptível diamante, o diadema de esmeraldas. A Tiago e
José só a curiosidade os fez entrar, não são ingênuos a ponto de imaginarem que
os vizinhos cobiçosos não vieram aqui à procura do que os habitantes da casa
não tivessem podido salvar, o provável, porém, sendo a casa tão pequena, é que
os bens mais preciosos tenham sido levados, ficando apenas as paredes, que em
qualquer lugar se podem levantar outras novas. A abóbada do forno, dentro do
que fora a casa, desabou, os ladrilhos do chão, estalados, soltaram-se do
cimento e estalam debaixo dos pés, Não há nada, vamo-nos embora, disse Tiago,
mas José perguntou, E aquilo ali, que é. Aquilo era uma espécie de estrado de
madeira de que tinham ardido as pernas, meio carbonizado todo ele, lembrando um
trono largo e comprido, ainda com uns restos pendentes de trapos queimados, É
uma cama, disse Tiago, há quem durma em cima dessas coisas, os ricos, os
senhores, A nossa mãe também dorme numa, Pois dorme, mas não tem comparação com
o que esta deve ter sido, Não parece de ricos uma casa assim, As aparências
enganam muito, disse Tiago, argutamente. Ao saírem, José viu que na porta do
pátio estava dependurada, para o lado de fora, uma roca de cana, dessas que se
usam para colher os figos das figueiras, decerto teria sido mais comprida no
tempo da sua utilidade, mas deviam tê-la cortado. Que faz isto aqui, perguntou,
e sem esperar resposta, própria sua ou do irmão, despendurou a agora inútil
cana e levou-a consigo, recordação de um incêndio, de uma casa queimada, de
gente desconhecida. Ninguém os vira entrar, ninguém os viu sair, são só dois
irmãos que vão para casa levando as túnicas enfarruscadas e uma negra notícia.
A um deles, para se distrair, propôs-lhe o pensamento, e ele aceitou-a, a
lembrança de Maria de Magdala, o pensamento do outro é mais activo e menos
frustrante, espera encontrar uma maneira de meter a amputada roca nas suas
brincadeiras.
Sentada na pedra, à espera de que Jesus volte da
pesca, Maria de Magdala pensa em Maria de Nazaré. Até este dia em que estamos,
a mãe de Jesus, para ela, fora só isso, mãe de Jesus, agora sabe, porque depois
o perguntou, que o seu nome também é Maria, coincidência, em si mesma, de
mínima importância, uma vez que são muitas as Marias na terra, e mais hão-de
vir a ser se a moda pega, mas nós aventurar-nos-íamos a supor que exista um
sentimento de mais próxima fraternidade entre os que levam nomes iguais, é como
imaginamos que se sentirá José quando se lembra do outro José que foi seu pai,
não filho, mas irmão, o problema de Deus é esse, ninguém tem o nome que ele
tem. Levadas a semelhante extremo, não parecem ser tais reflexões produto de um
discernimento como o de Maria de Magdala, ainda que não nos falte informação de
que o tem muito capaz doutras de não menor alcance, o que elas vão é em
direcções diferentes, por exemplo, no caso de agora, uma mulher ama um homem e
pensa na mãe desse homem. Maria de Magdala não conhece, de experiência sua, o
amor da mãe pelo seu filho, conheceu, enfim, o amor da mulher pelo seu homem,
depois de tudo, antes, haver aprendido e praticado do amor falso, dos mil modos
de não amor. Quer a Jesus como mulher, mas desejaria querê-lo também como mãe,
talvez porque a sua idade não esteja tão longe assim da idade da mãe
verdadeira, a que mandou recado para que o filho voltasse, e o filho não
voltou, uma pergunta faz Maria de Magdala, que dor irá sentir Maria de Nazaré
quando lho disserem, porém não é a mesma coisa que imaginar o que ela própria
sofreria se Jesus lhe faltasse, faltar-lhe-ia o homem, não o filho, Senhor,
dá-me, juntas, as duas dores, se tiver de ser, murmurou Maria de Magdala
esperando Jesus. E quando o barco se aproximou e foi puxado para terra, quando
os cestos carregados de peixe escorrendo começaram a ser transportados, quando
Jesus, com os pés na água, ajudava ao trabalho e ria como uma criança, Maria de
Magdala viu-se a si mesma como se fosse Maria de Nazaré e, levantando se donde
estava, desceu até à borda do mar, entrou na água para estar com ele e disse,
depois de beijá-lo no ombro, Meu filho. Ninguém ouviu que Jesus tivesse dito,
Minha mãe, pois já se sabe que as palavras proferidas pelo coração não têm
língua que as articule, retém-nas um nó na garganta e só nos olhos é que se
podem ler. Das mãos do arrais do barco receberam Maria e Jesus o cesto de peixe
com que lhes era pago o serviço, e, como sempre faziam, recolheram-se os dois à
casa onde pernoitariam, porque a sua vida era isto, não ter casa própria, ir de
barco em barco e de esteira em esteira, algumas vezes, ao princípio, Jesus
disse a Maria, Esta vida não te convém, busquemos uma casa que seja nossa e eu
irei estar contigo sempre que seja possível, ao que Maria respondeu, Não quero
esperar-te, quero estar onde estiveres. Um dia, Jesus perguntou-lhe se não
tinha parentes que pudessem recebê-la, e ela disse que tinha um irmão e uma
irmã vivendo na aldeia de Betânia de Judeia, ela Marta, ele Lázaro, mas que os deixara
quando se prostituíra e, para que não se envergonhassem dela, fora para longe,
de terra em terra, até chegar a Magdala. Então o teu nome deveria ser Maria de
Betânia, se lá nasceste, disse Jesus, Sim, foi em Betânia que nasci, mas em
Magdala é que me encontraste, por isso de Magdala quero continuar a ser, A mim
não me chamam Jesus de Belém, apesar de em Belém ter nascido, de Nazaré não sou
porque nem me querem eles nem os quero eu, talvez devesse chamar-me Jesus de
Magdala, como tu, pela mesma razão, Lembra-te de que queimamos a casa, Mas não
a memória, disse Jesus. De voltar Maria a Betânia não se falou mais, esta borda
do mar é para eles o mundo inteiro, onde quer que o homem esteja, estará com
ele a obrigação.
Diz o povo, dizemo-lo nós, provavelmente dizem-no os
povos todos, sendo como é a experiência dos males tão geral e universal, que
debaixo dos pés se levantam os trabalhos. Um tal dito, se não nos enganamos, só
podia tê-lo inventado um povo da terra, à custa de tropeções e de topadas, de
percalços, esperas e puas assassinas. Depois, em virtude da generalidade e da
universalidade já assinaladas, ter-se-á espalhado por todo o orbe, fazendo lei,
mas, ainda assim, supomos que com alguma relutância por parte da gente marítima
e piscatória que sabe existirem fundíssimas funduras entre os seus pés e o
chão, e não poucas vezes abissais abismos. Para o povo do mar os trabalhos não
se levantam do chão, para o povo do mar os trabalhos caem do céu, chamam-se
vento e ventania, e é por causa deles que se erguem as ondas e as vagas, se
geram as tempestades, se rompe a vela, se quebra o mastro, se afunda o frágil
lenho, e estes homens da pesca e da navegação onde morrem, verdadeiramente, é
entre o céu e a terra, o céu que as mãos não alcançam, o chão a que os pés não
chegam. O mar da Galileia é quase sempre um tranquilo, manso e comedido lago,
mas lá vem o dia em que as fúrias oceânicas se desmandam para estes lados e é
um salve-se quem puder, às vezes, desgraçadamente, nem todos podem. De um caso
destes haveremos nós de falar, mas antes é preciso que regressemos a Jesus de
Nazaré e a algumas recentes preocupações suas que mostram quanto o coração do
homem é um eterno insatisfeito e o simples dever cumprido, afinal, não dá tanta
satisfação como nos vêm dizendo os que com pouco se contentam. Sem dúvida,
pode-se dizer que graças ao contínuo sobe e desce de Jesus, entre o rio Jordão
de cima e o rio Jordão de baixo, não há penúria, nem sequer ocasionais faltas,
em toda a margem ocidental, tendo-se até chegado ao ponto de beneficiarem da
abundância os próprios que não eram pescadores, pois a fartura do peixe fez
baixar os preços, o que, evidentemente, veio a resultar em mais gente a comer
mais e mais barato. É verdade que houve uma ou outra tentativa de manter os
preços altos pelo conhecido método corporativo de lançar ao mar uma parte do
produto da pesca, mas Jesus, de quem em última instância dependia a maior ou
menor sorte dos lanços, ameaçou ir-se dali a outra parte, e os prevaricadores
da lei nova vieram pedir-lhe desculpa, até ver. Toda a gente, portanto, parece
ter razões para sentir-se feliz, mas Jesus não. Pensa ele que não é vida andar
constantemente acima e abaixo, a embarcar e a desembarcar, sempre os mesmos
gestos, sempre as mesmas palavras, e que, sendo certo que o poder de fazer
aparecer o peixe é do Senhor que lhe vem, não se vê razão para que o mesmo
Senhor queira que a sua vida se consuma nesta monotonia até que chegue o dia em
que for servido chamá-lo, como prometeu. Que o Senhor esteja consigo, não o duvida
Jesus, pois o peixe nunca deixa de vir quando o chama, e esta circunstância,
por um processo dedutivo inevitável de que aqui não julgamos necessário fazer a
demonstração e apresentar a sequência, acabou por levá-lo, com o tempo, a
perguntar-se se não haveria acaso outros poderes que o Senhor estivesse
disposto a ceder-lhe, não por delegação ou outorga, claro está, apenas
emprestados, e com a condição de fazer deles bom uso, o que, como temos visto,
Jesus estava em condições de garantir, haja vista o trabalho a que meteu
ombros, sem mais que a intuição a ajudá-lo. A maneira de saber era fácil, tão
fácil como dizer ai, bastava fazer a experiência, se ela resultasse, era porque
Deus estava a favor, se não resultasse, Deus manifestava que estava contra.
Simplesmente, havia uma questão prévia a resolver, e essa questão era a da
escolha. Não sendo possível consultar directamente o Senhor, Jesus teria de
arriscar, seleccionar entre os poderes possíveis o que parecesse oferecer menos
resistência e que não desse demasiado nas vistas, porém não tão discreto que
passasse despercebido a quem dele viesse a beneficiar e ao mundo, com o que
padeceria a glória do Senhor, que em tudo deve prevalecer. Mas Jesus não se
decidia, tinha medo de que Deus escarnecesse dele, o humilhasse, como no
deserto fizera e podia ter feito depois, ainda hoje se sentia estremecer à
lembrança da vergonha que teria sido, quando pela primeira vez disse Lançai a
rede deste lado, vê-la subir vazia. Tanto o ocupavam estes pensamentos que uma
noite sonhou que alguém lhe dizia ao ouvido, Não temas, lembra-te de que Deus
precisa de ti, mas quando acordou teve dúvidas sobre a identidade do
conselheiro, podia ser um anjo, dos muitos que andam a fazer os recados do
Senhor, podia ser um demônio, dos outros tantos que a Satã servem para tudo, ao
seu lado Maria de Magdala parecia dormir profundamente, por isso não podia ter
sido ela, nem Jesus pensou que o fosse. Estava-se nisto, e, um dia, que pelos
indícios em nada mostrava ir ser diferente dos outros, Jesus foi ao mar para o
milagre do costume. O tempo estava carregado, de nuvens baixas, a ameaçar
chuva, mas por esse pouco não vai ficar um pescador em casa, bem estaríamos nós
se tudo na vida fosse regalos e bem-estar. Calhou a barca ser a de Simão e
André, aqueles dois irmãos pescadores que testemunharam o primeiro prodígio, e
com ela, de conserva, vai também a dos filhos de Zebedeu, o Tiago e o João,
pois que, não sendo o efeito miraculoso igual, sempre o barco que está perto
aproveita alguma parte do peixe que vier. O vento forte leva-os rapidamente
para o meio do mar e aí, descidas as velas, começam os pescadores, num barco e
noutro, a desdobrar as redes, à espera de que Jesus diga para que lado as devem
lançar. Estão nisto, quando de repente se levantam os trabalhos na forma de uma
tempestade que caiu do céu sem prevenir, porque como prevenção não se podia ter
entendido um simples céu coberto, e foi de maneira tal que as vagas eram como
as do mar verdadeiro, da altura de casas, empurradas por um vento doido, ora
cá, ora lá, e no meio aquelas casquinhas de noz baloiçando sem governo, que a
manobra nada podia contra a fúria dos elementos à solta. A gente que estava na
margem, vendo o perigo em que se achavam as pobres criaturas já sem defesa,
começou em desabalados gritos, havia ali esposas e mães, e irmãs, e filhos
pequeninos, alguma sogra de bom feitio, e era um clamor que não se sabe como
não chegou ao céu, Ai, o meu querido marido, Ai, o meu querido filho, Ai, o meu
querido irmão, Ai, o meu genro, Maldito sejas tu, ó mar, Senhora dos Aflitos,
valei-nos, Senhora da Boa Viagem, acudi-lhes, os meninos só sabiam chorar, mas
nem assim. Maria de Magdala estava também ali e murmurava, Jesus, Jesus, porém
não era por ele que o dizia, pois sabia que o Senhor o tinha guardado para
outra altura, não para uma vulgar tormenta no mar, sem mais consequências que
morrerem uns tantos afogados, dizia Jesus, Jesus, como se dizê-lo pudesse valer
de alguma coisa aos pescadores, que esses, sim, parecia que se lhes ia cumprir
ali a sorte. Ora, Jesus, lá na barca, vendo o desânimo e o desbarato que ia nas
tripulações em redor, e que as ondas saltavam por cima da borda e alagavam tudo
dentro, e que os mastros se partiam levando-os pelos ares as velas soltas, e
que a chuva caía em torrentes que só elas chegariam para afundar uma nave do
imperador, Jesus, vendo tudo isto, disse consigo mesmo, Não é justo que morram
estes homens, ficando eu com vida, sem contar que o Senhor me ralharia de
certeza Podias ter salvo os que estavam contigo e não os salvaste, já não te
bastou teu pai, a dor desta lembrança fez saltar Jesus, e então, de pé, firme e
seguro como se debaixo de si o suportasse um sólido chão, gritou, Cala-te, e isto
era para o vento, Aquieta-te, e isto era para o mar, palavras não eram ditas
acalmaram se o mar e o vento, as nuvens no céu apartaram-se e o sol apareceu
como uma glória, que o é e sempre há-de ser, ao menos para quem vive menos do
que ele. Não se imagina o que foi a alegria naqueles barcos, os beijos, os
abraços, os choros de alegria em terra, os daqui não sabiam por que tinha
acabado assim tão súbito a tempestade, os de além, como ressuscitados, não
pensavam senão na vida salva, e se alguns exclamaram, Milagre, milagre, naqueles
instantes primeiros não se deram conta de que alguém tinha de ter sido o autor dele.
Mas de repente fez-se o silêncio no mar, os outros barcos rodeavam o de Simão e
André, e os pescadores todos olhavam Jesus, calados de assombro, apesar do
estrondo da tempestade tinham ouvido os gritos, Cala-te, Aquieta-te, e ali
estava ele, Jesus, o homem que gritara, o que ordenava aos peixes que saíssem
das águas para os homens, o que ordenava às águas que não levassem os homens
para os peixes. Jesus tinha-se sentado no banco dos remadores, de cabeça baixa,
com uma difusa e contraditória impressão de triunfo e de desastre, como se,
tendo subido ao ponto mais alto duma montanha, no mesmo instante começasse a
melancólica e inevitável descida. Mas agora, ali postos em círculo, os homens
esperavam uma palavra sua, não era bastante ter dominado o vento e amansado as
águas, tinha de explicar-lhes como o pudera fazer um simples galileu filho de carpinteiro,
quando o próprio Deus parecia tê-los abandonado ao frio abraço da morte. Levantou-se
Jesus então e disse, Isto que acabais de ver não o cometi eu, as vozes que afastaram
a tempestade não foram dadas por mim, foi o Senhor que falou pela minha boca, eu
apenas sou a língua de que Deus se serviu para falar, lembrai-vos dos profetas.
Disse Simão, que na mesma barca estava, Assim como fez vir a tempestade, o
Senhor podia tê-la mandado embora, e nós apenas diríamos O Senhor a trouxe, o
Senhor a levou, mas foram a tua vontade e a tua palavra que nos restituíram a
vida salva quando, diante dos olhos de Deus, a críamos perdida, Deus o fez,
torno a dizer, não eu. Disse então João, o filho menor de Zebedeu, provando
desta maneira que não era tão simples de espírito, Sem dúvida o fez Deus, pois
nele moram toda a força e todo o poder, mas fê-lo por intermédio de ti, donde tiro
eu a conclusão de que Deus quer que te conheçamos, Já me conhecíeis, De
apareceres aqui vindo não sabemos donde, de nos encheres as nossas barcas de
peixe não sabemos como, Sou Jesus de Nazaré, filho de um carpinteiro que morreu
crucificado pelos romanos, durante um tempo pastor do maior rebanho de ovelhas
e cabras que já se viu, agora, convosco, e porventura até à hora da minha
morte, pescador. Disse André, o irmão de Simão, Nós outros, sim, é que devemos
estar contigo, porque se a um homem comum, como tu dizes ser, foram dados tais
poderes e o poder de os usar, pobre de ti, que a solidão te será mais pesada do
que uma pedra ao pescoço. Disse Jesus, Ficai comigo, se o coração vo-lo pedir,
mas não digais a ninguém nada do que aqui se passou, porque o tempo ainda não é
chegado de confirmar o Senhor a vontade que quer executar em mim, se, como diz João,
quer Deus que me conheçais. Disse então Tiago, o filho maior de Zebedeu, tão pouco
simples, afinal, como seu irmão, Não penses que o povo se vai calar, olha-os
além na margem, vê como te esperam para aclamar-te, e alguns, de impaciência,
já empurram barcos para a água para virem juntar-se a nós, mas ainda que
conseguíssemos moderar-lhes o entusiasmo, ainda que os convencêssemos a
guardar, quanto possam, o segredo, terás tu a certeza de que, em qualquer
momento, mesmo não o desejando tu, não se manifestará Deus, mais do que na tua
presença, por teu intermédio. Jesus deixou pender a cabeça, era uma
representação viva da tristeza e do abandono, e disse, Estamos todos nas mãos
do Senhor, Tu mais do que nós, disse Simão, porque ele te preferiu, porém nós
estaremos contigo, Até ao fim, disse João, Até quando não nos queiras, disse
André, Até onde pudermos, disse Tiago. Aproximavam-se os barcos que tinham
vindo da margem, acenavam com os braços os que vinham dentro, multiplicavam-se
as bênçãos e os louvores, e Jesus, resignado, disse, Vamos, o vinho está no
vaso, é preciso bebê-lo. Não procurou Maria de Magdala, sabia que ela o
esperava em terra, como sempre, que nenhum milagre alteraria a constância dessa
espera, e um contentamento grato e humilde pacificou-lhe o coração. Quando
desembarcou, mais do que abraçá-la, abraçou-se nela, escutou, sem surpresa, o
que Maria de Magdala lhe disse num murmúrio, rente à orelha, o rosto contra a barba
molhada, Perderás a guerra, não tens outro remédio, mas ganharás todas as
batalhas, e depois, juntos, saudando ele a um lado e a outro os circunstantes
que o festejavam, como um general que regressasse vencedor do seu primeiro
combate, subiram, acompanhados dos amigos, o íngreme caminho que levava a
Cafarnaúm, a aldeia sobranceira ao mar onde viviam Simão e André, em casa de
quem, por esta ocasião, moravam.
Tivera razão Tiago quando augurou mal da esperança
de Jesus de que o conhecimento público do milagre da tempestade acalmada
pudesse ficar circunscrito aos que o testemunharam. Em poucos dias, não se
falava doutra coisa por aqueles arredores, embora, caso estranho, não sendo
este mar, como tem sido dito, uma imensidão, podendo, de um ponto alto e com
limpeza dos ares, ser visto, por inteiro, de margem a margem e de extremo a
extremo, aconteceu que em Tiberíades, por exemplo, ninguém dera pelo temporal,
e quando alguém ali chegou com a nova de que um que estava com os pescadores de
Cafarnaúm fizera cessar, à sua voz, uma tempestade, a resposta que recebeu foi,
Qual tempestade, o que deixou sem fala o informador. Que, porém, houvera
tempestade, não se pode duvidar, aí estava para afirmá-lo e jurar o susto que
tinham apanhado os protagonistas do episódio, directos e indirectos, nestes se
incluindo uns almocreves de Safed e Caná que lá se encontravam por motivo do
seu negócio. Foram eles que levaram a notícia para o interior, matizada segundo
os arrebatos de imaginação de cada um, mas, enfim, não puderam alcançar a toda
a parte, e isto de notícias, sabemos como é, vão perdendo a convicção com o
tempo e a distância, e quando a nova, que já tão pouco o era, chegou a Nazaré,
não se sabia se o milagre o havia sido realmente, ou apenas uma feliz
coincidência entre uma palavra que fora lançada ao vento e um vento que se
cansara de soprar. Coração de mãe, porém, não se engana, e a Maria bastaram os
quase extintos ecos de um prodígio de que já se começava a duvidar, para, em
seu coração, ter a certeza de que o obrara o filho ausente. Chorou pelos cantos
o orgulho da sua ínfima autoridade materna, que a fizera ocultar de Jesus o
aparecimento do anjo e as revelações de que fora portador, fiando-se de que um
simples recado de meia dúzia de palavras reticentes faria regressar a casa quem
dela saíra com o seu próprio coração sangrando. Não tinha Maria ao pé de si,
para desafogar-se de tristezas tão amargas e dolorosas, a sua filha Lísia, que
neste meio201 tempo se casara e fora viver para a aldeia de Caná. A Tiago não ousaria
falar, esse viera espumando fúrias do encontro com o irmão, não se calando com
a mulher que com ele estava, Podia ser mãe dele, minha mãe, e o ar que ela
tinha, de muita experiência da vida e outras coisas que não menciono, ainda
que, manda a verdade dizer-se, seja a própria experiência de Tiago escassíssima
em termos de comparação, neste buraco do mundo que é a sua aldeia. Desabafou
pois Maria com José, esse filho que, pelo nome e parecenças, mais lhe recordava
o marido, mas ele não a pôde consolar, Minha mãe, estamos pagando o que
fizemos, e o meu temor, eu que vi a Jesus e o ouvi, é que seja para sempre, que
de lá onde está não volte nunca, Sabes o que dele se diz, que falou com uma
tempestade e ela se acalmou, ouvindo-o, Também sabíamos que com o seu poder
enchia de peixe as barcas dos pescadores, a nós o disseram os próprios, Tinha
razão o anjo, Que anjo, perguntou José, e Maria contou-lhe tudo quanto com eles
havia acontecido, desde o aparecimento do mendigo que lançara na tigela a terra
luminosa até ao anjo do seu sonho. Esta conversa não tiveram-na em casa, que aí
não era possível, sendo a família ainda tão numerosa, esta gente, sempre que
quer falar de assuntos sigilosos, vai para o deserto, onde, calhando, até pode
encontrar Deus. Estavam assim conversando quando, em certa altura, viu José
passar ao longe, nas colinas a que a mãe virava as costas, um rebanho de
ovelhas e cabras com o seu pastor. Pareceu-lhe que o rebanho não era grande,
nem alto o pastor, por isso viu e calou. E quando a mãe disse, Nunca mais vejo
Jesus, respondeu, pensativo, Quem sabe.
Tinha razão José. Passados uns tempos, coisa de um
ano, veio um recado de Lísia para a mãe, convidando-a, em nome dos sogros, a ir
a Caná, ao casamento duma sua cunhada, irmã do marido, e que levasse consigo
quem entendesse, que todos seriam bem-vindos. Sendo ela a convidada, tinha o
direito de escolher quem a deveria acompanhar, mas como, por respeito, não
queria tornar-se pesada, posto que poucas coisas serão tão deprimentes como uma
viúva com muitos filhos, resolveu levar apenas dois, o agora seu preferido
José, e Lídia, a quem, sendo rapariga, nunca festas e distracções sobrariam.
Caná não está longe de Nazaré, pouco mais de uma hora de caminho das nossas, e,
por este tempo de suave outono, sempre teria sido um passeio dos mais
aprazíveis, mesmo que o objectivo final da viagem não fosse um casamento.
Saíram de casa mal o sol acabara de nascer para poderem chegar a Caná ainda a
tempo de ajudar Maria às últimas tarefas de um acto cerimonial e festivo em que
o trabalho está na directa proporção do quanto a gente se alegra e diverte.
Veio Lísia ao encontro da mãe e dos irmãos com afectuosas mostras, de um lado
se tomaram informações sobre o bem-estar e a saúde, do outro sobre a saúde e a
felicidade, e, porque o trabalho urgia, foram logo dali, ela e Maria, para a
casa do noivo, onde, segundo o costume, se celebraria a festa, iam a cuidar dos
caldeiros com as demais mulheres da família. José e Lídia ficaram no pátio, de
brincadeira com os da sua idade, os meninos jogando com os meninos, as meninas
dançando com as meninas, até ao momento em que deram fé de que a cerimônia
começava. Correram todos, agora sem maior discriminação dos sexos, atrás dos
homens que acompanhavam o noivo, os amigos dele, que levavam os archotes da
tradição, e isto numa manhã como esta, de tão resplandecente luz, o que, pelo
menos, poderá servir para demonstrar que uma luzinha mais, mesmo de archote,
nunca é de desprezar, por muito que brilhe o sol. Os vizinhos, com alegre
semblante, apareciam a saudar às portas, guardando as bênçãos para daqui a
pouco, quando o cortejo regressar trazendo já a noiva. Não chegaram José e
Lídia, porém, a ver o resto, de todo o modo nunca seria novidade completa para
eles, porquanto haviam tido em seu tempo um casamento na família, o noivo a
bater à porta e a pedir para ver a noiva, ela a aparecer rodeada das suas
amigas, também estas com luzes, ainda que modestas, simples lamparinas como a
mulheres convém, que um archote é coisa de homem pelo fogo e pela dimensão, e
depois o noivo a levantar o véu da noiva e a dar um grito de júbilo perante o
tesouro que tinha encontrado, como se nestes últimos doze meses, que tantos
eram os que o noivado durava, não a tivesse visto mil vezes e com ela ido para
a cama quantas lhe apeteceu. Não viram José e Lídia estes números porque, num
súbito instante, olhando ele, casualmente, pelo enfiamento duma rua, viu
aparecerem lá ao fundo dois homens e uma mulher, e, com a sensação de estar a
viver por segunda vez, reconheceu seu irmão Jesus e a mulher que com ele
andava. Gritou para a irmã, Olha, é Jesus, ambos correram naquela direcção, mas
de repente José parou, lembrara-se da mãe, lembrou-se também da dureza com que
o irmão o recebera lá no mar, não a ele, é certo, ao recado que com Tiago fora
mandado levar, e, pensando que depois teria de explicar a Jesus por que estava
assim procedendo, voltou para trás. Ao virar a esquina da rua, olhou ainda, e,
mordido de ciúme, viu o irmão levantar Lídia nos braços como uma pena voando e
ela cobrir-lhe a cara de beijos, enquanto a mulher e o outro homem sorriam. Com
os olhos nublados de lágrimas de frustração, José correu, correu, entrou na
casa, atravessou o pátio aos saltos para evitar pisar as toalhas e as vitualhas
dispostas no chão e nas mesas baixinhas, chamou, Mãe, mãe, o que nos salva é
termos cada um a nossa voz, não faltariam mães a olharem para um filho que não
era o seu, olhou apenas Maria, olhou e compreendeu, quando José lhe disse, Vem
aí Jesus, ela já o sabia. Empalideceu, corou, sorriu, ficou séria e pálida
outra vez, e o resultado de todas estas alterações foi levar uma mão ao peito
como se o coração lhe faltasse e recuar dois passos como se tivesse batido
contra um muro. Quem vem com ele, perguntou, porque tinha a certeza de que
alguém o acompanhava, Um homem e uma mulher, e a Lídia, que lá ficou, A mulher
é a que tu viste, Sim, mãe, mas ao homem não o conheço. Aproximou-se Lísia,
apenas curiosa, mal adivinhando, Que é, minha mãe, Teu irmão está aqui e vem ao
casamento, Jesus está em Caná, Viu--o José. Não foram tão manifestos os
alvoroços de Lísia, mas abriu-se-lhe no rosto um sorriso que parecia não ter de
acabar e murmurou, O meu irmão, note-se, para quem o não souber, que é isto o
comprazimento, um sorriso como o de Lísia e um murmúrio que vale outro tanto,
Vamos ao encontro dele, disse, Vai tu, eu fico aqui, defendeu-se a mãe, e para
José, Vai com a tua irmã. Mas José não quis ser segundo nos abraços em que
Lídia fora primeira e, porque Lísia sozinha não se atrevia, ali ficaram os
três, como culpados à espera duma sentença, incertos sobre a misericórdia do
juiz, se as palavras juiz e misericórdia podem ter cabimento neste caso.
Assomou Jesus à porta, trazia Lídia ao colo, e vinha
Maria de Magdala atrás, mas antes entrara André, que era ele o outro homem da
companhia, parente do noivo como logo se percebeu, dizia para os que acudiram,
risonhos, a recebê-lo, Pois não, Simão não pôde vir, e enquanto este encontro
de família a uns estava tão felizmente ocupando, outros, ali, olhavam-se por
cima de um abismo, perguntando-se qual deles seria o primeiro a pôr um pé na
delgada e frágil ponte que, apesar de tudo, ainda unia um lado ao outro lado.
Não diremos, como um poeta disse, que o melhor do mundo são as crianças, mas é
graças a elas que às vezes os adultos conseguem dar, sem desdouro de orgulho,
certos difíceis passos, ainda que depois se venha a ver que o caminho não
passou daí. Lídia escorregou dos braços de Jesus e correu para a mãe, e foi
como no teatro de fantoches, um movimento obrigou a outro, os dois a um
terceiro, Jesus avançou para a mãe e saudou-a, conjuntamente aos irmãos, com as
palavras de quem todos os dias se encontra, sóbrias e sem emoção. Feito isso
seguiu adiante, deixando Maria como uma transida estátua de sal, e, perdidos,
os irmãos. Maria de Magdala foi atrás dele, passou ao lado de Maria de Nazaré,
e as duas mulheres, a honesta e a impura, num relance, olharam-se sem
hostilidade nem desprezo, antes com uma expressão de mútuo e cúmplice
reconhecimento que só aos entendidos nos labirínticos meandros do coração
feminino é dado compreender. Já vinha perto o cortejo, ouviam-se os gritos e as
palmas, o ruído trêmulo e vibrante das pandeiretas, os sons esparsos e finos
das harpas, o ritmar das danças, um vozear de gente falando ao mesmo tempo, no
instante após o pátio ficou cheio, os noivos entraram como de empurrão entre
vivas e aplausos e foram adiante a receber as bênçãos dos pais e dos sogros,
que os esperavam. Maria, que ali ficara, também os abençoou, como abençoara
tempos atrás a sua filha Lísia, agora, como então, sem ter a seu lado nem
marido nem primogénito que lhe ocupasse, em poder e autoridade, o lugar.
Sentaram-se todos, a Jesus foi logo oferecido um lugar de importância porque
André, à boca pequena, informara os parentes de que aquele é que era o homem
que atraía os peixes às redes e domava as tempestades, mas Jesus recusou a
honra e foi sentar-se com os outros, ficando no extremo duma das filas de
convidados. A Jesus servia-o Maria de Magdala, que ninguém ali perguntou quem
fosse, alguma vez se acercou Lísia, e ele, nos modos, não fez diferenças entre
uma e outra. Maria atendia noutro lado, com frequência, nas idas e vindas,
cruzava-se com Maria de Magdala, trocavam o mesmo olhar, porém não falavam, até
que a mãe de Jesus fez à outra sinal para chegar-se a um recanto do pátio, e
disse-lhe, sem preâmbulo, Cuida do meu filho, que um anjo me disse que o
esperam grandes trabalhos, e eu não posso nada por ele, Cuidarei, defendê-lo-ia
com a minha vida se ela merecesse tanto, Como te chamas, Sou Maria de Magdala e
fui prostituta até conhecer o teu filho. Maria ficou calada, na sua mente
ordenavam-se, um a um, certos factos do passado, o dinheiro e o que acerca dele
haveriam querido insinuar as meias palavras de Jesus, o relato irritado do
filho Tiago e as suas opiniões sobre a mulher que acompanhava o irmão, e, agora
tudo sabendo, disse, Eu te abençoo, Maria de Magdala, pelo bem que a meu filho
Jesus fizeste, hoje e para sempre te abençoo. Maria de Magdala aproximou-se
para beijar-lhe o ombro em sinal de respeito, mas a outra Maria lançou-lhe os
braços, apertou-a contra si e as duas ficaram abraçadas, em silêncio, até que
se separaram e voltaram ao trabalho, que não podia esperar.
A festa continuava, das cozinhas, em correnteza
contínua, vinha a comida, das ânforas corna o vinho, a alegria soltava-se em
cantos e danças, quando, de repente, um alarme correu secretamente do mordomo
até aos pais dos noivos, Que se nos acaba o vinho, avisava. O pesar e a
confusão caíram sobre eles como se o tecto lhes tivesse desabado em cima, E
agora, que vamos fazer, como diremos aos nossos convidados que se acabou o
vinho, amanhã não se falará doutra coisa em Caná, A minha filha, lamentava-se a
mãe da noiva, a troça que não vão fazer dela daqui em diante, que no seu
casamento até o vinho faltou, não merecíamos esta vergonha, que mau começo de
vida. Nas mesas escorripichavam-se os últimos fundos dos copos, alguns
convidados já olhavam em redor à procura de quem devia estar a servi-los, e eis
que Maria, agora que já transmitira a outra mulher os encargos, deveres e
obrigações que o filho recusava receber das suas mãos, quis, num relâmpago de
inteligência, ter a sua prova própria dos anunciados poderes de Jesus, posto o
que poderia depois recolher-se a casa e ao silêncio, como quem já terminou a
sua missão no mundo e só espera que dele o venham retirar. Procurou com os
olhos Maria de Magdala, viu-a cerrar lentamente as pálpebras e fazer um gesto
de assentimento, e, sem mais demora, chegou-se ao filho e disse-lhe, no tom de
quem está certo de não ter de dizer tudo para ser entendido, Não têm vinho.
Jesus voltou lentamente a cara para a mãe, olhou a como se ela lhe tivesse
falado de muito longe, e perguntou, Mulher, que há entre ti e mim, palavras
estas, tremendas, que as ouviu quem ali estava, mas o assombro, a estranheza, a
incredulidade, Um filho não trata desta maneira a mãe que lhe deu o ser, farão
que o tempo, as distâncias e as vontades busquem para elas traduções,
interpretações, versões, matizes que mitiguem a brutalidade e, se tal é
possível, deem o dito por não dito ou o ponham a dizer o seu contrário, assim
se escreverá no futuro que Jesus disse, Por que vens incomodar-me com isso, ou,
Que tenho eu que ver contigo, ou, Quem te mandou meter-te nisto, mulher, ou,
Que temos nós com isso, mulher, ou, Deixa-me proceder, não é preciso que mo
peças, ou, Por que não mo pedes abertamente, continuo a ser o filho dócil de
sempre, ou, Farei como queres, entre nós não há desacordo. Maria recebeu o
choque em pleno rosto, suportou o olhar que a repelia, e, desta maneira
colocando o filho entre a espada e a parede, rematou o desafio dizendo aos
servidores, Fazei o que ele vos disser. Jesus viu a mãe afastar-se, não disse
uma palavra, não fez um gesto para a reter, compreendera que o Senhor se havia
servido dela como antes se serviu da tempestade ou da necessidade dos
pescadores. Levantou o seu copo, onde ainda algum vinho ficara, e disse para os
servidores, Enchei de água aquelas talhas, eram seis talhas de pedra que
serviam para a purificação, e eles encheram-nas até cima, que cada uma delas
levava duas ou três medidas, Chegai-mas cá, disse, e eles assim fizeram. Então
Jesus verteu em cada talha uma parte do vinho que tinha no copo, e disse,
Levai-as ao mordomo. Ora o mordomo, que não sabia donde lhe vinham as talhas,
depois de provar a água que a pequena quantidade de vinho nem chegara a tingir,
chamou o noivo e disse-lhe, Toda a gente serve primeiro o vinho bom, e, quando
os convidados já beberam bem, serve então o pior, tu, porém, guardaste o vinho
bom até agora. O noivo, que nunca em sua vida vira aquelas talhas servirem a
vinho e, aliás, de mais sabia ele que o vinho se acabara, provou também e fez
cara de quem, com mal fingida modéstia, se limita a confirmar o que tinha por
certo, a excelente qualidade do néctar, por assim dizer um vintage. Se não
fosse a voz do povo, representada, no caso, por uns servidores que no dia
seguinte deram com a língua nos dentes, teria sido um milagre frustrado, pois o
mordomo, se desconhecedor estava da transmutação, desconhecedor continuaria, ao
noivo convinha, evidentemente, abotoar-se com o feito alheio, Jesus não era
pessoa para andar dizendo por aí, Eu fiz os milagres tais e tais, Maria de
Magdala, que desde o princípio participara do enredo, não iria pôr-se a fazer
publicidades, Ele fez um milagre, ele fez um milagre, e Maria, a mãe, ainda
menos, porque a questão fundamental era entre ela e o filho, o mais que
aconteceu foi por acréscimo, em todos os sentidos da palavra, digam os
convidados se não é assim, eles que voltaram a ter os copos cheios.
Maria de Nazaré e o filho não se falaram mais. Pelo
meio da tarde, sem se despedir da família, Jesus foi-se embora com Maria de
Magdala pelo caminho de Tiberíades. Escondidos da vista dele, José e Lídia
seguiram-no até à saída da aldeia e ali ficaram a olhá-lo até que desapareceu
numa curva da estrada.
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