sexta-feira, 15 de março de 2013

No Cabeleireiro




Algo já me incomodava: cabelos espalhados por todos os lados. No travesseiro, nas roupas, nas toalhas de banho. Os fios longos e enrolados e pretos – muito pretos. Meus cabelos estavam caindo, caindo: isso queria dizer que estava na hora de cortá-los. É o sinal da natureza; basta que fiquem compridos além da conta que começam todos a cair.  O cabeleireiro da rua de cima da minha casa abre às 9:00hs da manhã – nove horas pontualmente. Se eu saísse faltando cinco minutos para as nove, com certeza até nove e meia já estaria de volta e – e com o cabelo cortado.
A mulher que sempre corta meu cabelo ainda não havia chego – apenas a dona do salão é pontual, eis as fatalidades desta vida. O lugar em que esperaria minha vez era o mesmo em todos os salões do mundo: cadeiras interligadas, revistas velhas, tias gordas que tinham ido fazer o busto – o inferno pululante na minha frente. Eu mal havia me sentado quando o inesperado me tomou: uma dessas senhoras me olha antes de começar a falar: e eu não estava preparado para aquilo, certamente que deus estava me testando ao mandar aquela senhora gorda e com o busto por fazer.

- Josué?

Fingi que não era comigo – apesar de saber. Ainda havia esperança de sair ileso daquilo tudo.

- Josué? – repetiu, a voz rouca.

- Ahn? – dissimulei espanto, olhei para todos os lados.

- Seu nome...

- Que tem?

- É Josué?

- Não.

- E como se chama.

Por deus que eu não podia – eu não entregaria a esta desconhecida o meu mais íntimo, aquilo que faz de mim um eu.

- Meu nome...?

- Sim.

- É... Pedro. Chamo Pedro.

- Pedro?

- Já disse: Pedro.

- Juraria que se chama Josué – suas sobrancelhas se encurvaram como quem desconfia, e ela tinha motivos para tal: eu não me chamo Pedro, mas não é por isso que me chamo Josué; e graças a deus não me chamo nem Pedro e nem Josué.

- Pois juraria em falso.

Ela me olhou, analisando como apenas as senhoras desconfiadas sabem fazer.

- Eu sou da igreja “X”... – parou, de certo esperava alguma reação da minha parte, mas eu me mantive calado: não queria, àquela hora, falar sobre igrejas.

- Bom para a senhora.

- E você, é da igreja “X” ou da igreja “Y”? – arriscou. E naquele momento eu sabia que havia caído num abismo.

- De nenhuma.

- Oh...

Deve ter pensado que iria completar a frase. Aguardou, mas a frase ficou assim mesmo: vagando no ar.

- Acaso é católico?

- Não.

- Não vai dizer que é macumbeiro – senti o sangue ferver: deus, segura minha língua, pai. Não adiantou, a mão de deus teme a minha às vezes.

- E se fosse?

- É?

- E se fosse?

- Não te julgaria, mas sabe que não agrada a deus.

- E quem é você para dizer uma coisa dessas?

- Diz a bíblia.

- Pois eu quero que a bíblia se exploda.

- É macumbeiro então?

- Não, não sou. Mas prefiro dez macumbeiros à uma pessoa que vai na igreja “X”.

A mulher ficou vermelha, talvez por vergonha, talvez por raiva.

- E por quê?

- Porque pessoas que vão na igreja “X” sofrem lavagem cerebral: ficam fanáticas.

- Diz que eu sou fanática?

- É você quem o diz: e além do mais, foi a senhora quem começou o assunto.

As outras senhoras olhavam silenciosas, o ar ficando cada vez mais irrespirável.

- Não tem religião?

- Não.

- Mas crê em deus? – sua voz vibrou de puro medo.

- No seu não.

- Valha-me Deus! – levantou as mãos para a cabeça.

Eu saíra ileso, afinal – fora, é claro, alguns arranhões, mas vencera a guerra.

- Então é daqueles que acredita que viemos do macaco? – seu olhar e seu riso eram irônicos, mas com ironia se faz e têm-la em troco.

- Então é daquelas que acredita que viemos do barro? – meu riso era mais irônico que o dela. Uma das senhoras riu baixo.

- Além do que: não viemos do macaco, temos um ancestral comum.

- Isso é ridículo.

- Ridículo é acreditar que viemos do barro e em cobras falantes.

Atingi o ponto, ela baixou os olhos para a revista que tinha nas mãos.

- Vê se te emenda, Pedro – ainda disse.

- Acredito em deus – completei. No fundo eu me apiedara desta mulher que poderia ter sido minha avó, não fossem as coisas da vida que mal e mal compreendemos.

Ela sorriu, mas permaneceu ali: rígida em sua dignidade.

- Isto é bom, Pedro.

Fiquei calado, esquecido de que me chamava agora Pedro. Depois me lembrei e sorri a tempo.

A cabeleireira me chamou:

- Venha, Nicolas, você é o próximo.

E eu fora pego em flagrante: a mentira vinha à tona. Meu rosto se enrubesceu, senti o sangue subir-me à cabeça. Mas estava livre, parcialmente livre.

- Mentia então? – a velha sorriu vitoriosa.

- Não te diz respeito o que faço ou não.

- O diabo é o pai da mentira.

- E o dicionário é o pai dos burros.

- Não entendo.

- Vá se catar, minha senhora.

Sai dali. Eu venci a guerra. E cortei os cabelos – o que é o mais importante.

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