Algo já me incomodava:
cabelos espalhados por todos os lados. No travesseiro, nas roupas, nas toalhas
de banho. Os fios longos e enrolados e pretos – muito pretos. Meus cabelos
estavam caindo, caindo: isso queria dizer que estava na hora de cortá-los. É o sinal
da natureza; basta que fiquem compridos além da conta que começam todos a
cair. O cabeleireiro da rua de cima da
minha casa abre às 9:00hs da manhã – nove horas pontualmente. Se eu saísse
faltando cinco minutos para as nove, com certeza até nove e meia já estaria de
volta e – e com o cabelo cortado.
A mulher que sempre
corta meu cabelo ainda não havia chego – apenas a dona do salão é pontual, eis
as fatalidades desta vida. O lugar em que esperaria minha vez era o mesmo em
todos os salões do mundo: cadeiras interligadas, revistas velhas, tias gordas
que tinham ido fazer o busto – o inferno pululante na minha frente. Eu mal
havia me sentado quando o inesperado me tomou: uma dessas senhoras me olha
antes de começar a falar: e eu não estava preparado para aquilo, certamente que
deus estava me testando ao mandar aquela senhora gorda e com o busto por fazer.
- Josué?
Fingi que não era
comigo – apesar de saber. Ainda havia esperança de sair ileso daquilo tudo.
- Josué? – repetiu, a
voz rouca.
- Ahn? – dissimulei
espanto, olhei para todos os lados.
- Seu nome...
- Que tem?
- É Josué?
- Não.
- E como se chama.
Por deus que eu não
podia – eu não entregaria a esta desconhecida o meu mais íntimo, aquilo que faz
de mim um eu.
- Meu nome...?
- Sim.
- É... Pedro. Chamo
Pedro.
- Pedro?
- Já disse: Pedro.
- Juraria que se chama
Josué – suas sobrancelhas se encurvaram como quem desconfia, e ela tinha
motivos para tal: eu não me chamo Pedro, mas não é por isso que me chamo Josué;
e graças a deus não me chamo nem Pedro e nem Josué.
- Pois juraria em
falso.
Ela me olhou,
analisando como apenas as senhoras desconfiadas sabem fazer.
- Eu sou da igreja
“X”... – parou, de certo esperava alguma reação da minha parte, mas eu me
mantive calado: não queria, àquela hora, falar sobre igrejas.
- Bom para a senhora.
- E você, é da igreja
“X” ou da igreja “Y”? – arriscou. E naquele momento eu sabia que havia caído
num abismo.
- De nenhuma.
- Oh...
Deve ter pensado que
iria completar a frase. Aguardou, mas a frase ficou assim mesmo: vagando no ar.
- Acaso é católico?
- Não.
- Não vai dizer que é
macumbeiro – senti o sangue ferver: deus, segura minha língua, pai. Não
adiantou, a mão de deus teme a minha às vezes.
- E se fosse?
- É?
- E se fosse?
- Não te julgaria, mas
sabe que não agrada a deus.
- E quem é você para
dizer uma coisa dessas?
- Diz a bíblia.
- Pois eu quero que a
bíblia se exploda.
- É macumbeiro então?
- Não, não sou. Mas
prefiro dez macumbeiros à uma pessoa que vai na igreja “X”.
A mulher ficou
vermelha, talvez por vergonha, talvez por raiva.
- E por quê?
- Porque pessoas que
vão na igreja “X” sofrem lavagem cerebral: ficam fanáticas.
- Diz que eu sou
fanática?
- É você quem o diz: e
além do mais, foi a senhora quem começou o assunto.
As outras senhoras
olhavam silenciosas, o ar ficando cada vez mais irrespirável.
- Não tem religião?
- Não.
- Mas crê em deus? –
sua voz vibrou de puro medo.
- No seu não.
- Valha-me Deus! –
levantou as mãos para a cabeça.
Eu saíra ileso, afinal
– fora, é claro, alguns arranhões, mas vencera a guerra.
- Então é daqueles que
acredita que viemos do macaco? – seu olhar e seu riso eram irônicos, mas com
ironia se faz e têm-la em troco.
- Então é daquelas que
acredita que viemos do barro? – meu riso era mais irônico que o dela. Uma das
senhoras riu baixo.
- Além do que: não
viemos do macaco, temos um ancestral comum.
- Isso é ridículo.
- Ridículo é acreditar
que viemos do barro e em cobras falantes.
Atingi o ponto, ela
baixou os olhos para a revista que tinha nas mãos.
- Vê se te emenda,
Pedro – ainda disse.
- Acredito em deus –
completei. No fundo eu me apiedara desta mulher que poderia ter sido minha avó,
não fossem as coisas da vida que mal e mal compreendemos.
Ela sorriu, mas
permaneceu ali: rígida em sua dignidade.
- Isto é bom, Pedro.
Fiquei calado,
esquecido de que me chamava agora Pedro. Depois me lembrei e sorri a tempo.
A cabeleireira me
chamou:
- Venha, Nicolas, você
é o próximo.
E eu fora pego em
flagrante: a mentira vinha à tona. Meu rosto se enrubesceu, senti o sangue
subir-me à cabeça. Mas estava livre, parcialmente livre.
- Mentia então? – a
velha sorriu vitoriosa.
- Não te diz respeito
o que faço ou não.
- O diabo é o pai da
mentira.
- E o dicionário é o
pai dos burros.
- Não entendo.
- Vá se catar, minha
senhora.
Sai dali. Eu venci a
guerra. E cortei os cabelos – o que é o mais importante.
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