sexta-feira, 30 de novembro de 2012

CAIM (Capítulo X°)





 Caim não sabe onde se encontra, não percebe se o jumento o estará levando por uma das tantas vias do passado ou por algum estreito carreiro do futuro, ou se, simplesmente, vai andando por um qualquer outro presente que ainda não se deu a conhecer. Olha o chão seco, os cardos espinhosos, as raras ervas torriscadas pelo sol, mas chão seco, cardos e ervas queimadas é o que mais se vê por estas inóspitas paisagens. Caminhos à vista, nem sinal deles, desde aqui poderia chegar a todo o lado ou a lado nenhum, como destinos que se renovassem ou algum outro que tivesse decidido esperar melhor ocasião para manifestar-se. O jumento pisa firme, parece ele que sabe aonde se dirige, como se seguisse um rastro, aquele sempre cofuso ir e vir de marcas de sandálias, cascos ou pés descalços que é preciso observar com atenção para não estar a voltar para trás quem imaginasse avançar, sem desvios, directo à estrela polar. Caim, que no passado, além de incipiente agricultor, foi pisador de barro, é agora um diligente rastreador que, mesmo quando indeciso, tenta não perder o fio de quem por aqui passou antes, tivesse ou não achado um lugar onde deter-se e aí dizer consigo mesmo, Cheguei. Bons olhos terá caim, não duvidamos, mas não tão bons que neste momento lhe permitam reconhecer, entre os múltiplos sinais, as próprias marcas dos seus pés, a depressão causada por um calcanhar ou o arrastamento provocado por uma perna cansada. Caim passou por aqui, isso sim, é certo. Vai descobri-lo quando de súbito lhe aparecer o que resta da casa arruinada onde em tempos se resguardou da chuva e onde não poderia abrigar-se hoje porque o que ainda havia de tecto caiu já, agora não se veem mais que uns troços de muros esboroados que, com a passagem de mais dois ou três invernos, definitivamente se confundirão com o chão onde se erguiam, terra eu tornou à terra, pó que tornou ao pó. A partir daqui o jumento só irá aonde o queiram levar, o tempo de ser ele o único guia nesta viagem acabou, ou não, se o deixassem solto, imaginemo-lo, a lembrança da antiga estrebaria talvez fosse suficientemente poderosa para o conduzir por seu pé à cidade donde partiu carregando este homem ao lombo há não se sabe quantos anos. No que se refere a caim, é natural que não se tenha esquecido do caminho para chegar ao palácio. Quando ali entrar, estará em seu poder mudar de rumo, abandonar os outros presentes que o esperam antes do hoje e depois do hoje, e regressar a este passado por um dia que seja, ou dois, talvez mais, mas não para o todo o que lhe falte viver, pois o seu destino ainda está por cumprir, como a seu tempo se saberá. Caim tocou de leve com os calcanhares as ilhargas do jumento, lá adiante está o caminho que o levará à cidade, seja qual for a espécie de vinho que lhe tiverem servido no copo, à sua espera, é preciso bebê-lo. Vista de perto, a cidade não parece ter aumentado, são as mesmas casas atarracadas sob o seu próprio peso, são os mesmos adobes, só o palácio emerge da massa parda das velhas construções, e, como era de prever, de acordo com as regras destas narrativas, o mesmo velho está à entrada da praça, ao virar da esquina, com as mesmas ovelhas atadas ao mesmo baraço. Por onde tens andado, voltaste para ficar, perguntou ele a caim, E tu, ainda por cá andas, ainda não morreste, retrucou caim, Não morrerei enquanto estas ovelhas viverem, devo ter nascido para as guardar, para as impedir de comer o baraço que as ata, Outros nasceram para pior, Falas de ti mesmo, Talvez te responda noutra ocasião, agora estou com pressa, Tens alguém à espera, perguntou o velho, Não sei, Ficarei aqui para ver se sais ou ficas no palácio, Deseja-me sorte, Para desejar-te sorte teria de saber primeiro o que para ti é o melhor, Coisa quem nem eu próprio sei, Sabes que lilith tem um filho, perguntou o velho, É natural, estava grávida quando parti, Pois é verdade, tem um filho, Adeus, Adeus. Sem precisar de que lho ordenassem, o jumento avançou para a porta do palácio e aí se deteve. Caim deixou-se escorregar da albarda, entregou a arreata a um escravo que tinha acudido e perguntou-lhe, Está alguém no palácio, Sim, está a senhora, Vai dizer-lhe que chegou um visitante, Abel, chamas-te abel, murmurou o escravo, lembro-me bem de ti, Vai, então. O escravo subiu a escada e voltou daí a pouco acompanhado por um rapazinho que deveria ter uns nove ou dez anos, É o meu filho, pensou caim. O escravo fez-lhe sinal para seguir. No cimo da escada estava lilith, tão bela, tão voluptuosa como antes, Adivinhei que virias hoje, disse, por isso me vesti assim, para que gostasses de me ver, Quem é este rapazinho, O seu nome é enoch e é teu filho. Caim subiu os poucos degraus que o separavam de lilith, agarrou as mãos que ela lhe estendia e, em um momento, apertava-a nos seus braços. Ouviu-a suspirar, sentiu que todo o seu corpo estremecia, e, quando lilith disse, Voltaste, só pôde responder, Sim, voltei. A um sinal, o escravo levou o rapaz, deixando-os sós. Vem comigo, disse ela. Entraram na antecâmara e caim reparou que ainda estavam ali o catre e o banco de porteiro que lhe haviam sido destinados dez anos antes, Como soubeste que vinha hoje se eu próprio me encontrei nestes sítios sem dar por isso, Nunca me perguntes como sei eu o que digo que sei porque não poderia responder-te, esta manhã, quando acordei, disse em voz alta, Voltará hoje, disse-o para que tu ouvisses, e foi verdade, aqui estás, mas não penso perguntar-te por quanto tempo, Acabei agora mesmo de chegar, não é a altura de falar em partir, Por que vieste, É uma história comprida que não se pode contar assim, entre duas portas, Então virás contá-la na cama. Entraram no quarto, onde nada parecia haver mudado, como se a memória de caim, durante a longa separação, não tivesse modificado as recordações, uma por uma, para não ter que surpreender-se agora. Lilith começou a despir-se, e o tempo não parecia haver passado por ela. Foi então que caim perguntou, E noah, Morreu, disse ela com simplicidade, sem que a voz lhe tremesse nem o olhar se desviasse, Mataste-o, tornou caim a perguntar, Não, respondeu lilith, prometi-te que não o mataria, morreu da sua natural morte, Melhor assim, disse caim, A cidade também se chama enoch, lembrou lilith, Como o meu filho, Sim, E quem foi que lhe deu o nome, A quem, À cidade, O nome pôs-lho noah, E porque deu ele à cidade o nome de um filho que não era seu, Nunca mo disse, e eu nunca lho perguntei, respondeu lilith, já deitada, E noah, morreu quando, perguntou caim, Há três anos, Quer dizer que durante sete anos, aos olhos de toda a gente, foi ele o pai de enoch, Fazia-se de conta, todos os daqui sabiam que eras tu o pai, ainda que é certo que, com o tempo, só as pessoas mais velhas recordavam, seja como for, noah não o teria tratado melhor se fosse um filho seu, Nem parece o homem que eu conheci, é como se fossem duas pessoas, Ninguém é uma pessoa só, tu, caim, és também abel, E tu, Eu sou todas as mulheres, todos os nomes delas são meus, disse lilith, e agora vem, vem depressa, vem dar-me notícias do seu corpo, Em dez anos não conheci outra mulher, disse caim enquanto se deitava, Nem eu outro homem, disse lilith, sorrindo com malícia, É verdade o que dizes, Não, estiveram aqui nesta cama alguns, não muitos porque não os podia suportar, a minha vontade era cortar-lhes o pescoço quando descarregavam, Agradeço-te a franqueza, A ti nunca te mentiria, disse lilith, e abraçou-se a ele.

Tranquilizados os espíritos, compensados da longa separação os corpos com juros altíssimos, chegou o momento de pôr o passado em ordem. Lilith tinha perguntado, Por que vieste, mas ele já havia declarado antes que não sabia como chegara ali, por isso ela modificou a interrogação, Que andaste a fazer durante todos estes anos, foi a pergunta e caim respondeu, Vi coisas que ainda não aconteceram, Queres dizer que adivinhaste o futuro, Então não lhe chamemos futuro, chamemos-lhe outro presente, outros presentes, Não percebo, Também a mim ao princípio me custou a compreender, mas depois vi que, se está lá, e realmente estava, era num presente que me encontrava, o que havia sido futuro tinha deixado de ser, o amanhã era agora, Ninguém vai acreditar em ti, Não penso dizer isto a mais ninguém, O teu mal é que não trazes contigo nenhuma prova, um objecto qualquer desse outro presente, Não foi um presente, mas vários, Dá-me um exemplo. Então caim contou a lilith o caso de um homem chamado abraão a quem o senhor ordenara que lhe sacrificasse o próprio filho, depois o de uma grande torre com a qual os homens queriam chegar ao céu e que o senhor com um sopro deitou abaixo, logo o de uma cidade em que os homens preferiam ir para a cama com outros homens e do castigo de fogo e enxofre que o senhor tinha feito cair sobre eles sem poupar as crianças, que ainda não sabiam o que iriam querer no futuro, a seguir o de um enorme ajuntamento de gente no sopé de um monte a que chamavam sinai e a fabricação de um bezerro de ouro que adoraram e por isso morreram muitos, o da cidade de madian que se atreveu a matar trinta e seis soldados de um exército denominado israelita e cuja população foi exterminada até à última criança, o de uma outra cidade, chamada jericó, cujas muralhas foram deitadas abaixo pelo clangor de trombetas feitas de cornos de carneiro e depois destruído tudo o que tinha dentro, incluindo, além dos homens e mulheres, novos e velhos, também os bois, as ovelhas e os jumentos. Foi isto o que eu vi, rematou caim, e muito mais para que não me chegam as palavras, Crês realmente que o que acabas de contar acontecerá no futuro, perguntou lilith, Ao contrário do que costuma dizer-se, o futuro já está escrito, o que nós não sabemos é ler-lhe a página, disse caim enquanto perguntava a si mesmo aonde teria ido buscar revolucionária ideia, E que pensas do facto de teres sido escolhido para viveres essa experiência, Não sei se fui escolhido, mas algo sei, sim, algo devo ter aprendido, Quê, Que o nosso deus, o criador do céu e da terra, está rematadamente louco, Como te atreves a dizer que o senhor deus está louco, Porque só um louco sem consciência dos seus actos admitiria ser o culpado directo da morte de centenas de milhares de pessoas e comportar-se depois como se nada tivesse sucedido, salvo, afinal, que não se trate de loucura, a involuntária, a autêntica, mas de pura e simples maldade, Deus nunca poderia ser mau ou não seria deus, para mau temos o diabo, O que não pode ser bom é um deus que dá ordem a um pai para que mate e queime na fogueira o seu próprio filho só para provar a sua fé, isso nem o mais maligno dos demônios o mandaria fazer, Não te reconheço, não és o mesmo homem que dormiu antes nesta cama, disse lilith, Nem tu serias a mesma mulher se tivesses visto aquilo que vi, as crianças de sodoma carbonizadas pelo fogo do céu, Que sodoma era essa, perguntou lilith, A cidade onde os homens preferiam os homens às mulheres, E morreu toda a gente por causa disso, Toda, não escapou uma alma, não houve sobreviventes, Até as mulheres que esses homens desprezavam, tornou lilith a perguntar, Sim, Como sempre, às mulheres, de um lado lhes chove, do outro lhes faz vento, Seja como for, os inocentes já vêm acostumados a pagar pelos pecadores, Que estranha ideia do justo parece ter o senhor, A ideia de quem nunca deve ter tido a menor noção do que possa vir a ser uma justiça humana, E tu, tem-na, perguntou lilith, Sou apenas caim, aquele que matou o irmão e por esse crime foi julgado, Com bastante benignidade, diga-se de passagem, observou lilith, Tens razão, seria o último a negá-lo, mas a responsabilidade principal teve-a deus, essa a que chamamos senhor, Não estarias aqui se não tivesses matado abel, pensemos egoistamente que uma coisa deu para a outra, Vivi o que tinha de viver, matar o meu irmão e dormir contigo na mesma cama são tudo efeitos da mesma causa, Qual, Estarmos nas mais de deus, ou do destino, que é o seu outro nome, E agora, que tencionas fazer perguntou lilith, Depende, Depende de quê, Se alguma vez chego a ser dono da minha própria pessoa, se acabar-se este passar de um tempo a outro sem que a minha vontade tenha sido para aí chamada, farei aquilo a que costuma chamar-se uma vida normal, como os demais, Não como toda a gente, casarás comigo, já temos o nosso filho, esta é a nossa cidade, e eu ser-te-ei fiel como a casca da árvore ai tronco a que pertence, Mas, se não for assim, se o meu fado continua, então em qualquer lugar em que me encontre estarei sujeito a mudar de um tempo para outro, nunca estaremos mais certos, nem tu nem eu, do dia de amanhã, além disso, Além disso, quê perguntou lilith, Sinto que o que me acontece deve ter um significado, um sentido qualquer, sinto que não devo parar a meio do caminho sem descobrir do que se trata, Isso significa que não ficarás, que partirás um dia destes, disse lilith, Sim, creio que assim será, se nasci para viver algo diferente, tenho de saber quê e para quê, Desfrutemos então o tempo que nos resta, vem para mim, disse lilith. Abraçaram-se aos beijos, agarrados rolaram na cama de um lado para outro, e quando caim se encontrou sobre lilith e se preparava para a penetrar, ela disse, A marca da tua testa está maior, Muito maior, perguntou caim, Não muito, Às vezes penso que ela irá crescendo, crescendo, se alastrando por todo o corpo e me converterei em negro, Era o que ainda me faltava, disse lilith soltando uma gargalhada, a que imediatamente sucedeu um gemido de prazer quando ele, num só impulso, a cravou até ao fundo.

Tinham passado apenas duas semanas quando caim desapareceu. Havia ganho o hábito de fazer demorados passeios a pé pelos arredores da cidade, não porque estivesse necessitando de sol e ar livre como da outra vez, benesses naturais que efectivamente não lhe tinham faltado nos últimos dez anos, mas para escapar ao ambiente pesado do palácio, onde, além das horas passadas na cama com lilith, nada mais tinha que fazer, a não ser, sem resultados que valha a pena mencionar, trocar umas quantas frases com o desconhecido que, para ele, era enoch, o seu filho.

XXX

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Receita

 
 
 ASINHAS DE FRANGO APIMENTADAS (COM MEL):
 
Hoje eu vou ensinar a fazer um petisco que combina bem com uma cerveja no domingo com os amigos depois do futebol (se você gosta dessas coisas). Mas também combina bem com todos os momentos, então, vamos lá:
 
 
Ingredientes:
 
- Molho de Pimenta (à gosto);
 
- 1 Colher de Mel (para dar um toque de agridoce, deixando com um gosto mais ameno);
 
-150g de Manteiga;
 
-700g de Asas de Frango.
 
Modo de Preparo:
 
- Passe azeite nas asinhas e leve-as ao forno, onde deverão ficar por 40 minutos em fogo alto, ou até ficarem douradas e com a pele crocante.
- Outra opção é fritá-las em óleo ou azeite, porém, é menos saudável e "empesteia" tudo.
- Derreta a manteiga e deixe-a numa tijela. Coloque a pimenta à gosto e a colher de mel. O mel vai dar um sabor a mais a receita, mas, se você não quiser, tudo bem!
- Misture bem e depois despeje sobre as asinhas de frango assadas.
 
BOM APETITE!!!!

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

CAIM (Capítulo IX°)




O lugar é o mesmo, mas o presente mudou. Caim tem diante dos olhos a cidade de jericó, onde, por razões de segurança militar, não lhe haviam permitido que entrasse. Espera-se a todo o momento o assalto do exército de josué e, por mais que caim tivesse jurado que não era israelita, negaram-lhe o acesso, sobretudo porque não teve nenhuma resposta satisfatória para quando lhe perguntaram, Que és então, se não és israelita. No nascimento de caim, israelitas era coisa que ainda não havia e, quando, muito mais tarde, passaram a existir, com as desastrosas consequências já por demais conhecidas, os recenseamentos celebrados deixaram de fora a família de adão. Caim não era israelita, mas tão pouco era hitita, ou amorreu, ou pereceu, ou jebeu, ou jesubeu. Veio salvá-lo desta indefinição identitária um alveitar do exército de josué que se tomou de amores pelo jumento de caim, Boa peça tens aí, disse, Anda comigo desde que deixei a terra de nod e nunca me faltou, Pois se assim é, se estás de acordo, contrato-te como meu ajudante pela comida, com a condição de me deixares montar o teu burro de vez em quando. A caim pareceu-lhe razoável o negócio, mas ainda objectou, E depois, Depois quê, perguntou o outro, Quando jericó cair, Homem, jericó é só o princípio, o que vem aí é uma longa guerra de conquista em que os alveitares não serão menos necessários que os soldados, Se é assim, estou de acordo, disse caim. Tinha ouvido falar de uma célebre prostituta que vivia em jericó, uma tal raab que, pelas descrições daqueles que a conheciam, o havia feito suspirar por um encontro que lhe refrescasse o sangue, pois desde a última noite que passara com lilith nunca mais tivera uma mulher debaixo de si. Não o deixaram entrar em jericó, mas não perdeu a esperança de vir a dormir com ela. O alveitar fez saber a quem de direito que havia contratado um ajudante só pela comida e foi assim que caim se viu integrado nos serviços de apoio do exército de josué, curando as mataduras dos burros sob a exigente orientação do chefe, burros e nada mais que burros, pois a arma de cavalaria propriamente dita ainda não tinha sido inventada. Após uma espera que a todos pareceu excessiva, soube-se que o senhor tinha finalmente falado a josué, a quem, palavra por palavra, ordenou o seguinte, Durante seis dias, tu e os teus soldados desfilem em volta da cidade uma vez por dia, à frente da arca da aliança irão sete sacerdotes, cada um soprando um chofar de chifre de carneiro, no sétimo dia darão sete voltas à cidade, enquanto os sacerdotes tocam os chofares, quando eles emitirem um som mais prolongado, o povo deve gritar com toda a força e então as muralhas da cidade cairão por terra. Contrariando o mais legítimo cepticismo, assim aconteceu. Ao cabo de sete dias desta manobra táctica nunca antes experimentada, as muralhas caíram mesmo e toda a gente entrou correndo na cidade, cada qual pela abertura que tinha na sua frente, e jericó foi conquistada. Destruíram tudo o que havia, matando à espada homens e mulheres, novos e velhos, e também os bois, as ovelhas e os jumentos. Quando caim pôde finalmente entrar na cidade, a prostituta raab tinha desaparecido com toda a família, postas em segurança como retribuição pela ajuda que ela havia dado ao senhor escondendo em sua casa os dois espiões que josué fizera entrar em jericó. Assim informado, caim perdeu todo o interesse pela tal prostituta raab. Apesar do seu deplorável passado, não podia suportar gente traiçoeira, as mais desprezíveis pessoas do mundo em sua opinião. Os soldados de josué lançaram fogo à cidade e queimaram tudo o que lá havia, à excepção da prata, do ouro, do bronze e do ferro que, como de costume, foram levados para o tesouro do senhor. Foi então que josué fez a seguinte ameaça, Maldito seja quem tentar reconstruir a cidade de jericó, morra o filho mais velho a quem lhe lançar os alicerces e o mais novo a quem lhe levantar as portas. Naquela época as maldições eram autênticas obras-primas literárias, tanto pela força da intenção como pela expressão formal em que se condensavam, não fosse josué a crudelíssima pessoa que foi e hoje até poderíamos tomá-lo como modelo estilístico, pelo menos no importante capítulo retórico das pragas e maldições tão pouco frequentado pela modernidade. Dalí o exército dos israelitas marchou sobre a cidade de ai, que pelo dolorido nome que lhe deram não perca, onde, depois de sofrer a humilhação de uma derrota, ficou a saber que com o senhor deus não se brinca. Foi o caso que um homem chamado acan se tinha apoderado em jericó de umas quantas coisas que estariam condenadas à destruição e, em consequência, o senhor ficou profundamente irritado com os israelitas, Isto não se faz, gritou ele, quem se atrever a desobedecer às minhas ordens, a si mesmo se estará condenando. Entretanto, josué, induzido por informações erradas dos espiões que havia enviado a ai, cometera o erro de não valorar devidamente a força do adversário e despachou menos de três mil homens para a batalha, os quais, atacados e perseguidos pelos habitantes da cidade, se viram obrigados a fugir. Como sempre tem sucedido, à mínima derrota os judeus perdem a vontade de lutar, e, embora na actualidade já não se usem manifestações de desânimo como as que eram praticadas no tempo de josué, quando rasgavam as roupas que tinham vestidas e se lançavam ao chão, com o rosto na terra e as cabeças cobertas de pó, a choradeira verbal é inevitável. Que o senhor educou mal esta gente desde o princípio, vê-se pelas implorações, pelas queixas, pelas perguntas de josué, Por que nos fizeste atravessar o jordão, foi para nos entregares nas mãos dos amorreus e nos destruíres, melhor  seria que tivéssemos ficado do outro lado do rio. O desproporcionado exagero era evidente, este mesmo josué que costuma deixar atrás de si um rasto de muitos milhares de inimigos mortos em cada batalha perde a cabeça quando lhe morre a insignificância de trinta e seis soldados, que tantos foram os que ficaram na tentativa de assalto a ai. E o exagero continuava, Ó senhor, que poderei dizer agora, depois de israel fugir diante do seu inimigo, os cananeus e todos os habitantes do país vão ter conhecimento disto, e depois vão atacar-nos, e destruir-nos, e ninguém mais se recordará de nós, que farás tu para defender o nosso prestígio, perguntou. Então o senhor, desta vez sem presença corporal nem coluna de fumo, supõe-se que tenha sido apenas uma voz a ressoar no espaço, acordando os ecos em tudo o que era montanhas e vales, disse, Os israelitas pecaram, não cumpriram o pacto da aliança que eu tinha feito com eles, apoderaram-se de coisas que estavam destinadas a ser destruídas, roubaram-nas, esconderam-nas e meteram-nas nas suas bagagens. A voz soou mais forte, Foi por isso que eles não puderam resistir aos seus inimigos, porque também ficaram condenados à destruição, e eu não estarei mais do vosso lado enquanto não destruírem o que, estando destinado à destruição, se encontra em vosso poder, levanta-te, pois, josué, e vai convocar o povo, aquele homem que, tendo sido apontado, lhe forem encontradas coisas que estavam condenadas à destruição será queimado com tudo o que lhe pertença, família e bens. No dia seguinte, de manhã cedo, josué deu ordem para que o povo se apresentasse diante dele, tribo por tribo. De pergunta em pergunta, de indagação em indagação, de denúncia em denúncia, acabou por ir parar a um homem chamado acan, descendente de carmi, de zabedi e de zera da tribo de judá. Então, josué, com palavras suaves, melífluas, disse-lhe, Meu filho, para maior glória de deus, conta-me toda a verdade, aqui, diante do senhor, diz-me o que fizeste, não me escondas nada. Caim, que assistia no meio dos outros, pensou, Vão-lhe perdoar com certeza, josué falaria doutra maneira se a ideia fosse condená-lo. Entretanto acan dizia, É verdade, pequei contra o senhor, rei de israel, Fala, conta-me tudo, animou josué, Vi no meio dos despojos uma bela capa da mesopotâmia, também havia cerca de dois quilos de prata e uma barra de ouro com perto de meio quilo, e gostei tanto dessas coisas que fiquei com elas, E onde estão elas agora, diz-me, perguntou josué, Enterrei-as, escondi-as na terra dentro da minha tenda, com a prata debaixo de tudo. De posse dessa confissão, josué mandou alguns homens revistar a tenda e lá encontraram as tais coisas, estando a prata por baixo, tal como acan havia dito. Pegaram nelas, levaram-nas a josué e a todos os israelitas e colocaram-nas diante do senhor ou, melhor dizendo, diante da arca da aliança que lhe fazia as vezes. Josué tomou então acan com a prata, o manto e a barra de ouro, mais os filhos e filhas, bois, jumentos e ovelhas, a tenda e tudo o que ele tinha, e levou-os até ao vale de açor. Chegados lá, josué disse, Já que foste a nossa desgraça, pois por tua culpa morreram trinta e seis israelitas, que o senhor agora te desgrace a ti. Então todas as pessoas o apedrejaram e, em seguida, lançaram-nos ao fogo, a eles e a tudo o que tinham. Puseram depois sobre acan um grande monte de pedras que ainda lá está. Por tal razão, aquele lugar ficou a chamar-se vale de açor, que significa desgraça. Assim se acalmou a ira de deus, mas, antes que o povo se dispersasse, ainda se ouviu a estentória voz a clamar, Ficam avisados, quem mais fizer, paga-mas, eu sou o senhor.
 Para conquistar a cidade, josué fez alinhar trinta mil guerreiros e instruiu-os sobre a emboscada que deveriam preparar, estratégia que desta vez iria dar resultado, primeiro uma finta para dividir as forças que se encontravam na cidade e logo um ataque em duas frentes, irresistível. Foram doze mil, entre homens e mulheres, os que morreram naquele dia, ou seja, toda a população de ai, pois dali ninguém conseguiu escapar, não houve um só sobrevivente. Josué mandou enforcar numa árvore o rei de ai e deixou-o ficar pendurado até à tarde. Ao pôr do sol deu ordem para retirarem o cadáver e o lançarem à porta da cidade. Colocaram-lhe em cima um grande monte de pedras que lá continua. Apesar do tempo decorrido, ainda se encontrariam talvez uns quantos calhaus dispersos, aqui um, outro além, que bem nos serviriam para confirmar esta lamentável história, recolhida de antiquíssimos documentos. Perante o que acabara de passar-se e recordando o que havia sucedido antes, a destruição de sodoma e gomorra, o assalto a jericó, caim tomou uma decisão e dela foi informar o alveitar seu chefe, Vou-me embora, disse, já não suporto mais ver tantos mortos à minha volta, tanto sangue derramado, tantos choros e tantos gritos, devolve-me o meu burro, preciso dele para o caminho, Fazes mal, a partir de agora as cidades vão cair umas atrás das outras, será um passeio triunfal, quanto ao burro, se mo quisesses vender davas-me uma grande satisfação, Nem pensar, respondeu caim, já te disse que preciso dele, só com as minhas pernas não chegaria a lado nenhum, Posso arranjar-te outro sem teres de o pagar, Não, cheguei aqui com o meu burro e com o meu burro me irei daqui, disse caim, e, metendo a mão dentro da túnica, sacou do punhal, Quero o burro agora mesmo, neste instante, ou então mato-te, Morrerás também, Morreremos os dois, mas tu serás o primeiro, Espera-me aqui, vou buscá-lo disse o alveitar, Não penses em enganar-me, não voltarias sozinho, vamos ambos, tu e eu, mas lembra-te, o punhal cravar-se-á no teu costado antes que possas pronunciar uma palavra contra mim. O alveitar teve medo de que a fúria de caim o fizesse passar de repente da ameaça ao facto, seria uma estupidez perder a vida por causa de um jumento, por muita boa estampa que tivesse. Foram portanto os dois, aparelharam o burro, caim conseguiu alguma comida da que estava a ser cozinhada para o exército, e quando os alforjes ficaram bem apetrechados ordenou ao alveitar, Monta, será o teu último passeio no meu jumento. Surpreendido, o homem não teve outro remédio que obedecer, num salto caim montou também, e em pouco tempo estavam fora do acampamento. Aonde me levas, perguntou o alveitar, inquieto, Já te disse, a um passeio, respondeu caim. Foram andando, andando, e quando o vulto das tendas estava a ponto de perder-se de vista, disse, Desmonta. O alveitar obedeceu, mas ao ver que caim tocava o burro para prosseguir viagem, perguntou, alarmado, E eu, que faço, Farás o que quiseres, mas, se eu estivesse no teu lugar, voltaria ao acampamento, A esta distância, perguntou o outro, Não te perderás, guia-te por aquelas colunas de fumo que continuam a subir da cidade. E foi assim, com esta vitória, que terminou a carreira militar de caim. Perdeu a conquista das cidades de maqueda, libna, laquis, eglon, hebron e debir, onde uma vez mais todos os habitantes foram massacrados, e, a julgar por uma lenda que veio sendo transmitida de geração em geração até os dias te hoje, não assistiu ao maior pródigo de todos os tempos, aquele em que o senhor fez parar o sol para que josué pudesse  vencer, ainda com luz de dia, a batalha contra os cinco reis amorreus. Tirando os inevitáveis e já monótonos mortos e feridos, tirando as costumadas destruições e os costumadíssimos incêndios, a história é bonita, demonstrativa do poder de um deus ao qual, pelos vistos, nada seria impossível. Mentira tudo. É certo que josué, vendo que o sol declinava e que as rastejantes sombras da noite viriam a proteger o que ainda restava do exército amorreu, levantou os braços ao céu, já com a frase preparada para a posteridade, mas, nesse instante, ouviu uma voz que lhe sussurrava ao ouvido, Silêncio, não fales, não digas nada, reúne-te comigo, a sós, sem testemunhas, na tenda da arca da aliança, porque temos que conversar. Obediente, josué entregou a direcção das operações ao seu substituto na cadeia hierárquica de comando e dirigiu-se rapidamente ao lugar de encontro. Sentou-se num mocho e disse, Aqui estou, senhor, faz-me saber a tua vontade, Suponho que a ideia que te nasceu na cabeça, disse o senhor que estava na arca, foi a de pedir-me que parasse o sol, Assim é, senhor, para que nenhum amorreu escape, Não posso fazer o que me pedes. Um súbito pasmo fez abrir a boca de josué, Que não podes fazer parar o sol, perguntou, e a voz tremia-lhe porque cria estar proferindo, ele próprio, uma horrível heresia. Não posso fazer parar o sol porque parado já ele está, sempre o esteve desde que o deixei naquele sítio, Tu és o senhor, tu não podes equivocar-te, mas não é isso o que os meus olhos veem, o sol nasce naquele lado, viaja todo o dia pelo céu e desaparece no lado oposto até regressar na manhã seguinte, Algo se move realmente, mas não é o sol, é a terra, A terra está parada, senhor, disse josué em voz tensa, desesperada, Não, homem, os teus olhos iludem-te, a terra move-se, dá voltas sobre si mesma e vai rodopiando pelo espaço ao redor do sol, Então, se assim é, manda parar a terra, que seja o sol a parar ou que pare a terra, a mim é-me indiferente desde que possa acabar com os amorreus, Se eu fizesse parar a terra, não se acabariam só os amorreus, acabava-se o mundo, acabava-se a humanidade, acabava-se tudo, todos os seres e coisas que aqui se encontram, até mesmo muitas árvores, apesar das raízes que as prendem à terra, tudo seria lançado fora como uma pedra quando a soltas da funda, Pensei que pensei que o funcionamento da máquina do mundo dependesse apenas da tua vontade, senhor, Já demasiado eu a venho exercendo, e outros em meu nome, por isso é que há tanto descontentamento, gente que me virou as costas, alguns que vão ao ponto de negar minha existência, Castiga-os, Estão fora da minha lei, fora da minha alçada, não lhes posso tocar, é que a vida de um deus não é tão fácil quanto vocês creem, um deus não é senhor daquele contínuo quero, posso e mando que se imagina, nem sempre se pode ir direto aos fins, há que rodear, é verdade que pus um sinal na testa de caim, nunca o viste, não sabes quem ele é, mas, o que não se compreende é que não tenha poder suficiente para o impedir de ir aonde a sua vontade o leve e fazer o que entender, E nós aqui, perguntou josué, com a ideia sempre posta nos amorreus, Farás o que havias pensado, não te vou roubar a glória de te dirigires directamente a deus, E tu, senhor, Eu limparei o céu das nuvens que neste momento o cobrem, isso posso fazer sem nenhuma dificuldade, mas a batalha terás de ser tu a ganhá-la, Se tu nos deres ânimo ela estará terminada antes que o sol se ponha, Farei o possível, já que o impossível não se pode. Tomando estas palavras como despedida, josué levantou-se do mocho, mas o senhor disse ainda, Não falarás a ninguém sobre o que foi tratado aqui entre nós, a história que virá a ser contada no futuro terá de ser a nossa e não outra, josué pediu ao senhor que detivesse o sol e ele assim fez, nada mais, A minha boca não se abrirá salvo que seja para confirmá-la, senhor, Vai e acaba-me com esses amorreus. Josué voltou ao exército, subiu uma colina e ergueu outra vez os braços, Ó senhor, gritou, ó deus do céu, do mundo e de israel, rogo-te que suspendas o movimento do sol em direcção ao ocaso a fim de que a tua vontade possa ser cumprida sem obstáculos, dá-me uma hora mais de luz, uma hora só, não aconteça que os amorreus se escondam como cobardes que são e os teus soldados não logrem encontrá-los no escuro para neles executar a tua justiça, tirando-lhes a vida. Em resposta, a voz de deus trovejou no céu já despejado de nuvens aterrorizando os amorreus e exaltando os israelitas, O sol não se moverá de onde está para ser testemunha da batalha dos israelitas pela terra prometida, vence tu, josué, esses cinco reis amorreus que me desafiam, e canaã será o fruto maduro que em breve te cairá nas mãos, avante, pois, e que nenhum amorreu sobreviva ao gume da espada dos israelitas. Há quem diga que a súplica de josué ao senhor foi mais simples, mais directa, que ele se limitou a dizer, Sol, pára sobre guibeon, e tu, ó lua, pára sobre o vale de aialon, o que mostra que josué admitia ter de combater já depois de posto o sol e sem mais que uma pálida lua para guiar-lhe a ponta da espada e da lança à garganta dos amorreus. A versão é interessante, mas em nada vem modificar o essencial, isto é, que os amorreus foram derrotados em toda a linha e que os créditos da vitória foram todos para o senhor, que, tendo feito parar o sol, não necessitou esperar pela lua. O seu a seu dono, como é de justiça. Eis o que foi escrito num livro chamado do justo, que actualmente ninguém sabe onde pára. Durante quase um ano inteiro, o sol esteve imóvel, ali no meio do céu, sem nenhuma pressa de desaparecer no horizonte, nunca, nem antes nem depois, houve um dia como aquele, em que o senhor, porque combatia por israel, deu ouvidos à voz de um homem.
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sexta-feira, 23 de novembro de 2012

CAIM (Capítulo VIII)


 
 
Num instante, aquele mesmo caim que havia estado em sodoma e voltara aos caminhos encontrou-se no deserto do sinai onde, com grande surpresa, se viu no meio de uma multidão de milhares de pessoas acampadas no sopé de um monte. Não sabia quem eram, nem donde tinham vindo, nem para onde iam. Se perguntasse a algum dos que estavam por ali perto denunciar-se-ia logo como estrangeiro, e isso só poderia trazer-lhe aborrecimentos e problemas. Estando, como se vê, prudentemente de pé atrás, decidiu que esta vez não se chamaria nem caim nem abel, não fosse o diabo tecê-las e trazer ali alguém que tivesse ouvido falar da história dos dois irmãos e começasse a fazer perguntas embaraçosas. O melhor seria manter bem abertos os olhos e os ouvidos e tirar conclusões por si mesmo. Uma coisa já era certa, o nome de um tal moisés andava na boca de toda a gente, uns com antiga veneração, com certa impaciência recente a maioria. E eram estes que perguntavam, Onde está moisés, há quarenta dias e quarenta noites que se foi ao monte a falar com o senhor e até agora nem novas nem mandas, está visto que o senhor nos abandonou, não quer mais saber do seu povo. O caminho do engano nasce estreito, mas sempre encontrará quem esteja disposto a alargá-lo, digamos que o engano, repetindo a voz popular, é como o comer e o coçar, a questão é começar. Com a gente que aguardava o regresso de moisés do monte sinai estava um irmão dele chamado aarão, a quem, ainda no tempo da escravidão dos israelitas no egipto, haviam nomeado sumo sacerdote. Foi a ele que os impacientes se dirigiram, Anda, faz-nos uns deuses que nos guiem, porque não sabemos o que sucedeu a moisés, e então aarão, que pelos vistos, além de não ser um modelo de firmeza de carácter, era bastante assustadiço, em lugar de se negar redondamente, disse, Já que tal o querem, tirem as argolas de ouro das orelhas das vossas mulheres e dos vossos filhos e filhas, e tragam-mas aqui. Eles assim fizeram. Depois aarão lançou o ouro num molde, fundiu-o e dele saiu um bezerro de ouro. Satisfeito, ao aparecer, com a sua obra, e sem se aperceber da grave incompatibilidade que estava a ponto de criar sobre o objecto das futuras adorações, ou o senhor propriamente dito, ou um bezerro a fazer de deus, anunciou, Amanhã haverá festa em honra do senhor. Tudo isto foi ouvido por caim que, reunindo palavras soltas, troços de diálogos, esboços de opiniões, começou a formar uma ideia, não só sobre o que se estava passando naquele momento como sobre os seus antecedentes. Ajudaram-no muito as conversas escutadas numa tenda colectiva onde dormiam os solteiros, os que não tinham família. Caim disse que se chamava noah, não lhe ocorreu um nome melhor, e foi bem aceito, integrando-se de maneira natural nas conversações. Já então os judeus falavam muito, e às vezes demasiado. Na manhã seguinte correu a voz de que moisés estava finalmente a descer do monte sinai e que josué, seu ajudante e comandante militar dos israelitas, havia ido ao seu encontro. Quando josué ouviu os gritos que o povo dava, disse a moisés, Há gritos de guerra no acampamento, e moisés disse a josué, O que se ouve não são alegres cantos de vitória, nem tristes cantos de derrota, são apenas vozes de gente a cantar. Mal sabia ele o que o esperava. Ao entrar no acampamento deu logo de caras com o bezerro de ouro e gente a dançar ao redor dele. Deitou mão ao bezerro, partiu-o, reduziu-o a pó e, virando-se para aarão, perguntou-lhe, Que te fez este povo para o deixares cometer um tão grande pecado, e aarão que, com todos os seus defeitos, conhecia o mundo em que vivia, respondeu, Ó meu senhor, não te irrites comigo, bem sabes que este povo é inclinado ao mal, a ideia foi deles, queriam outros deuses porque já não acreditavam que ti voltasses, e o mais certo seria que me matassem se me tivesse negado a fazer-lhes a vontade. Então moisés postou-se à entrada do acampamento e gritou, Quem é pelo senhor, junte-se a mim. Todos os da tribo de levi se juntaram a ele, e moisés proclamou, Eis o que diz o senhor, deus de israel, pegue cada um numa espada, regressem ao acampamento e vão de porta em porta, matando cada um de vocês o irmão, o amigo, o vizinho. E foi assim que morreram cerca de três mil homens. O sangue corria entre as tendas como uma inundação que brotasse do interior da própria terra, como se ela própria estivesse a sangrar, os corpos degolados, esventrados, rachados de meio a meio, jaziam por toda parte, os gritos das mulheres e das crianças eram tais que deviam chegar ao cimo do monte sinai onde o senhor se estaria regozijando com a sua vingança. Caim mal podia acreditar no que os seus olhos viam. Não bastavam sodoma e gomorra arrasadas pelo fogo, aqui, no sopé do monte sinai, ficara patente a prova irrefutável da profunda maldade do senhor, três mil homens mortos só porque ele tinha ficado irritado com a invenção de um suposto rival em figura de bezerro, Eu não fiz mais que matar um irmão e o senhor castigou-me, quero ver agora quem vai castigar o senhor por estas mortes, pensou caim, e logo continuou, Lúcifer sabia bem o que fazia quando se rebelou contra deus, há quem diga que o fez por inveja e não é certo, o que ele conhecia era a maligna natureza do sujeito. Algum do pó de ouro soprado pelo vento manchava as mãos de caim. Lavou-as num charco como se cumprisse o ritual de sacudir dos pés a poeira de algum lugar onde tivesse sido mal recebido, montou o jumento e foi-se embora. Havia uma nuvem escura no alto do monte sinai, ali estava o senhor.

Por motivos que não está nas nossas mãos dilucidar, simples repetidores de histórias antigas que somos, passando continuamente da credulidade mais ingênua ao cepticismo mais resoluto, caim viu-se metido no que, sem exagero, poderíamos chamar uma tempestade, um ciclone do calendário, um furacão do tempo. Durante alguns dias, depois do episódio do bezerro de ouro e da sua curta existência, sucederam-se com incrível rapidez as suas já conhecidas mudanças de presente, surgindo do nada e precipitando-se no nada em forma de imagens soltas, desconexas, sem continuidade nem relação entre elas, em alguns casos mostrando o que parecia serem batalhas de uma guerra infinita cuja causa primeira já ninguém recordasse, em outros como uma farsa grotesca invariavelmente violenta, uma espécie de contínuo guinhol, áspero, rangente, obsessivo. Uma dessas múltiplas imagens, a mais enigmática e fugidia de todas, pôs-lhe diante dos olhos uma enorme extensão de água onde, até ao horizonte, não se alcançava ver nem uma ilha nem um simples barco à vela com os seus pescadores e as suas redes. Água, só água, água por toda parte, nada mais que água afogando o mundo. De muitas destas histórias não poderia caim, obviamente, ter sido testemunha directa, mas algumas, quer fossem verdadeiras ou não, chegaram ao seu conhecimento pela sabida via de alguém que o havia ouvido de alguém e o veio contar a alguém. Exemplo dessas histórias foi o escandaloso caso de lot e as filhas. Quando sodoma e gomorra foram destruídas, lot teve medo de continuar a viver na cidade de zoar, que estava perto, e resolveu refugiar-se numa gruta das montanhas. O nosso pai está acabado, um destes dias morre-nos aqui, e por estes sítios não se encontra um único homem para casar connosco, a minha ideia é que embriaguemos o pai e depois durmamos com ele para que nos dê descendentes. Assim se fez, sem que lot se tivesse dado conta, nem quando ela se deitou nem quando saiu da cama, e o mesmo veio a suceder com a filha mais nova na noite seguinte, nem quando se deitou nem quando saiu da cama, tão bêbado o velho estava. As duas irmãs ficaram grávidas, mas caim, grande especialista em erecções e ejaculações como gostosamente o confirmaria lilith, sua primeira e até agora única amante, disse quando esta história lhe foi contada, A um homem dessa maneira embriagado, ao ponto de nem dar pelo que se estava a passar, a coisa simplesmente não se lhe levanta, e se não se lhe levanta a coisa, então não poderá dar-se a penetração, e, portanto, isso de engendrar, nada. Que o senhor tenha admitido o incesto como algo quotidiano e não merecedor de castigo naquelas antigas sociedades por ele geridas, não é nada que deva surpreender-nos à luz de uma natureza ainda não dotada de códigos morais e em que o importante era a propagação da espécie, quer fosse por imposição do cio, quer fosse por simples apetite, ou, como se dirá mais tarde, por fazer o bem sem olhar a quem. O próprio senhor havia dito, Crescei e multiplicai-vos, e não pôs limitações nem reservas à injunção, seja com quem sim, seja com quem não. É possível, embora não passe por enquanto de uma hipótese de trabalho, que a liberdade do senhor nisto de fazer filhos tivesse que ver com a necessidade de suprir as perdas e mortos e feridos que sofriam os exércitos próprios e alheios um dia sim e outro também, como até agora se tem visto e decerto se continuará a ver. Baste recordar o que aconteceu à vista do monte sinai e da coluna de fumo que era o senhor, o afã erótico com que, nessa mesma noite, enxugadas as lágrimas dos sobreviventes, se tratou de gerar a toda a pressa novos combatentes para empunhar as espadas sem dono e degolar os filhos dos que agora haviam saído vencedores. Veja-se só o que aconteceu com os madianitas. Por um desses acasos de guerra os de madian tinham derrotado os israelitas, os quais, vem a propósito dizer, apesar de toda a propaganda em contrário, não poucas vezes acabaram vencidos na história. Com esta pedra no sapato, o senhor disse a moisés, Deves fazer com que os israelitas se vinguem dos madianitas e depois vai-te preparando porque já vão sendo horas de te ires juntar aos teus antepassados. Sobrepondo-se à desagradável notícia sobre o relativo pouco tempo que lhe restaria para viver, moisés mandou a cada uma das doze tribos de israel que pusessem mil homens para a guerra e assim reuniu um exército de doze mil soldados que destroçou os madianitas, nenhum dos quais escapou com vida. Entre os que foram mortos estavam os reis da região de madian, que eram evi, requém, sur, hur e reba, antigamente os reis tinham nomes tão estranhos como estes, curiosamente nenhum deles se chamou joão nem afonso, ou manuel, sancho ou pedro. Quanto às mulheres e às crianças, os israelitas levaram-nas como prisioneiras, assim como os despojos da luta, os animais, o gado e todas as riquezas. Levaram tudo a moisés e ao sacerdote eleazar e à comunidade dos israelitas que se encontravam nas planícies de moab, junto do rio jordão, em frente de jericó, precisões toponímicas que aqui são deixadas para provar que não temos estado a inventar nada. Já sabedor dos resultados da luta, moisés ficou irritado quando viu entrar os militares no acampamento e perguntou-lhes, Por que não mataram vocês também as mulheres, essas que fizeram com que os israelitas se afastassem do senhor e adorassem o deus baal, maldade que provocou uma grande mortandade no povo do senhor, ordeno-vos, pois, que voltem para trás e matem todos os rapazes e todas a raparigas, e as mulheres casadas, quanto às outras, as solteiras, guardem-nas para vosso uso. Nada disto surpreendia já caim. O que para ele foi novidade absoluta, e por isso aqui fica pontual registro, foi a repartição dos despojos, da qual consideramos indispensável deixar notícia para conhecimento dos costumes do tempo, pedindo de antemão desculpa ao leitor pelos excessos de uma minúcia de que não somos responsáveis. Eis o que o senhor disse a moisés, Tu e o sacerdote eleazar e os chefes de clã da comunidade façam as contas dos despojos que trouxeram, tanto das pessoas como dos animais, e dividam-nos ao meio, metade para os soldados que foram à batalha e a outra metade para o resto da comunidade. Da parte dos soldados retirarás, como tributo para o senhor, uma cabeça por cada quinhentas, tanto das pessoas como dos animais, bois, burros ou ovelhas. Da parte destinada aos israelitas retirarás um por cada cinquenta, tanto das pessoas como dos animais, bois, burros, ovelhas e de toda a espécie de animais, e entrega-os aos levitas, encarregados da guarda do santuário do senhor. Moisés fez o que deus lhe tinha mandado. O total dos despojos que os guerreiros israelitas recolheram foi de seiscentas e setenta e cinco mil ovelhas, setenta e dois mil bois, sessenta e um mil burros e trinta e duas mil mulheres solteiras. A metade que correspondia aos soldados que foram à batalha foi, portanto, de trezentas e trinta e sete mil e quinhentas ovelhas, ficando seiscentos e setenta e cinco como tributo para o senhor, dos trinta e seis mil bois ficaram seiscentos e setenta e dois como tributo para o senhor, dos trinta mil e quinhentos burros ficaram sessenta e um como tributo para o senhor, e das dezasseis mil pessoas ficaram trinta e duas como tributo para o senhor. A outra metade, que moisés tinha separado do que tocava aos soldados e atribuiu à comunidade dos israelitas, era igualmente de trezentas e trinta e sete mil e quinhentas ovelhas, trinta e seis mil bois, trinta mil e quinhentos burros e dezasseis mil mulheres solteiras. Desta metade, moisés retirou por cada cinquenta, tanto das pessoas como dos animais, e entregou-os aos levitas encarregados da guarda do santuário do senhor, tal como o senhor lhe tinha mandado. Mas isto não foi tudo. Como reconhecimento ao senhor por lhes ter salvo a vida, pois nenhum deles havia morrido na batalha, os soldados, por intermédio dos seus comandantes, ofereceram ao senhor os objectos de ouro que cada um tinha encontrado no saque da cidade. Entre braceletes, pulseiras, anéis, brincos e colares, foram uns cento e setenta quilos. Como fica sobremaneira demonstrado, o senhor, além de estar dotado por natureza de uma excelente cabeça para guarda-livros e ser rapidíssimo em cálculo mental, está o que se chama rico. Ainda assombrado pela abundância em gado, escravas e ouro, frutos da batalha contra os madianitas, caim pensou, Está visto que a guerra é um negócio de primeira ordem, talvez seja mesmo o melhor de todos a julgar pela facilidade com que se adquirem do pé para a mão milhares e milhares de bois, ovelhas, burros e mulheres solteiras, a este senhor terá de chamar-se um dia deus dos exércitos, não lhe vejo outra utilidade, pensou caim, e não se enganava. É bem possível que o pacto de aliança que alguns afirmam existir entre deus e os homens não contenha mais que dois artigos, a saber, tu serves-nos a nós, vocês servem-me a mim. Do que não há dúvida é de que as coisas estão muito mudadas. Antigamente o senhor aparecia à gente em pessoa, por assim dizer em carne e osso, viu-se que sentia mesmo certa satisfação em exibir-se ao mundo, que o digam adão e eva, que da sua presença se beneficiaram, que o diga também caim, embora em má ocasião, pois as circunstâncias, referimo-nos, claro está, ao assassínio de abel, não eram as mais adequadas para especiais demonstrações de contentamento. Agora, o senhor esconde-se em colunas de fumo, como se não quisesse que o vissem. Em nossa opinião de simples observadores dos acontecimentos andará envergonhado por algumas tristes figuras que tem feito, como foi o caso das inocentes crianças de sodoma que o fogo divino calcinou.
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quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Receita



VASO DE SORVETE

Esta é uma receita legal de fazer, gostosa e fica com uma bonita aparência depois de pronta: você vai fazer um vaso com sorvete, onde a terra do vaso é feita de bolacha Negresco! Vamos começar logo então:

Ingredientes:

- Um vaso (limpo);

- Sorvete (do sabor que você quiser);

- Bolacha Negresco (01 Pacote);

- Doce de Leite;

- Pão de Ló;

- Canudo de Plástico (daqueles de tomar refrigerante);

- Flores (qualquer flor).

Modo de Preparo:

Meça no fundo do vaso o pão de ló, cortando-o de acordo com o tamanho do fundo do vaso. Depois de cortar, coloque o pão de ló dentro do vaso e faça uma camada de doce de leite cobrindo o pão de ló. Acima da camada de doce de leite, faça uma outra camada de sorvete e cubra-a com mais uma camada de doce de leite.
Retire os recheios das bolachas e triture-as no liquidificador, dando a elas uma aparência de terra. Cubra a camada de doce de leite do vaso com a "terra" e coloque os canudos de plástico para formar os caules das flores. Guarde no congelador até a hora de servir. Depois de retirado do congelador, introduza as flores no canudo (se for preciso, corte um pouco os caules).

BOM APETITE!!!

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

CAIM (Capítulo VII°)



Escrito estava nas tábuas do destino que caim haveria de reencontrar abraão. Um dia, por ocasião de uma dessas súbitas mudanças de presente que o faziam viajar no tempo, ora a frente ora para trás, caim encontrou-se diante de uma tenda, à hora de maior calor, junto das azinheiras de mambré. Tinha-lhe parecido entrever um ancião que lhe recordava vagamente uma pessoa. Para ter a certeza chamou à porta da tenda e então apareceu abraão. Procuras alguém, perguntou ele, Sim e não, estou só de passagem, pareceu-me reconhecer-te e não me enganei, como está teu filho isaac, eu sou caim, Estás enganado, o único filho que tenho, chama-se ismael, não isaac, e ismael é o filho que fiz à minha escrava agar. O vivo espírito de caim, já treinado nestas situações, iluminou-se de repente, o jogo dos presentes alternativos havia manipulado o tempo uma vez mais, mostrara-lhe antes o que só viria a acontecer depois, isto é, por palavras que se querem mais simples e explicitas, o tal isaac ainda não tinha nascido. Não me lembro de alguma vez te ter visto, disse abraão, mas entra, estás em tua casa, mandarei que te tragam água para lavares os pés e pão para a jornada, Primeiro hei-de tratar do meu jumento, Leva-o àquelas azinheiras, tens lá feno e palha e há um bebedouro cheio de água fresca. Caim levou o asno pela arreata, tirou-lhe a albarda para que se desafogasse do calor que fazia e instalou-o numa sombra. Depois sopesou os alforjes quase vazios pensando em como poderia remediar uma escassez de alimentos que já se ia tornando alarmante. O que tinha ouvido a abraão  dera-lhe uma alma nova, mas há que pensar que nem só de pão vive o homem, mormente ele, habituado nos últimos tempos a mimos gastronômicos muito por cima da sua origem e condição social. Deixando o jumento entregue aos mais lídimos prazeres campestres, água, sombra, comida farta, caim dirigiu-se à tenda, bateu à porta para avisar sua presença e entrou. Viu logo que havia ali uma reunião para a qual, obviamente, não havia sido convidado, três homens, pelos vistos chegados, conversavam com o dono da casa. Fez menção de se retirar com a discrição conveniente, mas abraão disse, Não vás, senta-te, todos sois meus hóspedes, e agora, se me dais licença, vou dar as minhas ordens. Logo correu para dentro da tenda e disse a sara, sua mulher, Depressa, amassa três medidas da melhor farinha e faz uns quantos pães. Depois foi aonde se encontrava o gado e trouxe um vitelo novo e gordo, que entregou a um criado para que o cozinhasse rapidamente. Concluído tudo isto, serviu aos hóspedes o vitelo que havia preparado, incluindo a caim, Comes com eles ali, debaixo das árvores, disse. E, como se fosse pouco, ainda lhes serviu manteiga e leite. Então eles perguntaram, Onde está sara, e abraão respondeu, Está na tenda. Foi aqui que um dos três homens disse, Para o ano que vem voltarei a tua casa e, na devida altura, a tua mulher terá um filho. Esse será isaac, disse caim em voz baixa, tão baixa que ninguém pareceu tê-lo ouvido. Ora, abraão e sara eram bastante idosos, e ela já não estava em idade de ter filhos. Por isso sara sorriu ao pensar, Como é que eu vou ainda sentir essa alegria se i meu marido e eu estamos velhos e cansados. O homem perguntou a abraão, Por que é que sara sorriu, pensando que já não pode ter filho nesta idade, será que para o senhor isso é uma coisa assim tão difícil. E repetiu o que dissera antes, Daqui a um ano voltarei a passar por tua casa e, no fim do tempo devido, a tua mulher terá dado à luz um filho. Ouvindo isto, sara assustou-se e negou que tivesse sorrido, mas o outro respondeu, Sorriste, sim, senhora, que eu bem vi. Neste momento todos perceberam que o terceiro homem era o próprio senhor deus em pessoa. Não foi dito na altura própria que caim, antes de entrar na tenda, havia feito descer os olhos a fímbria do turbante a fim de esconder a marca à curiosidade dos presentes, sobretudo do senhor que imediatamente a reconheceria, por isso, quando o senhor lhe perguntou se o seu nome era caim, respondeu, Caim sou, na verdade, mas não esse.

O natural teria sido que o senhor, perante a não de todo hábil esquiva, tivesse insistido e que caim acabasse por confessar ser esse mesmo, aquele que havia assassinado o seu irmão abel e por essa culpa andar cumprindo pena de errante e perdido, mas o senhor tinha uma preocupação muito mais urgente e importante de um forasteiro suspeito. Era o caso de lhe terem chegado lá acima, ao céu de onde tinha vindo instantes antes, numerosas queixas pelos crimes contranatura cometidos nas cidades de sodoma e gomorra, ali perto. Como imparcial juiz que sempre se havia prezado de ser, embora não faltassem acções suas para demonstrar precisamente o contrário, tinha vindo cá abaixo para tirar a questão a limpo. Por isso se dirigia agora a sodoma, acompanhado de abraão, e também de caim, que havia pedido, por curiosidade de turista, que o deixassem ir. Os dois que vieram com ele, e que eram de certeza anjos de companhia, tinham ido à frente. Então abraão fez três perguntas ao senhor, Será que vais destruir os inocentes juntamente com os culpados, vamos supor que existem uns cinquenta inocentes em sodoma, vais destruí-los também a eles, não serás capas de perdoar a toda a cidade em atenção aos cinquenta que se encontram inocentes do mal. E prosseguiu dizendo, Não é possível que vás fazer uma coisa dessas, senhor, condenar à morte o inocente juntamente com o culpado, desse modo, aos olhos de toda a gente, ser inocente ou culpado seria a mesma coisa, ora, tu, que és o juiz do mundo inteiro, deves ser justo nas tuas sentenças. A isto respondeu o senhor, Se eu encontrar na cidade de sodoma cinquenta pessoas que estejam inocentes, perdoarei a toda a cidade em atenção a elas. Animado, cheio de esperanças, abraão continuou, Já que tomei a liberdade de falar ao meu senhor, mesmo não sendo eu mais do que humilde pó da terra, permite-me ainda uma palavra, suponhamos que não chegam bem a cinquenta, que faltam umas cinco, será que vais destruir a cidade por causa de cinco. O senhor respondeu, Se lá encontrar quarenta e cinco que estejam inocentes, também não destruo a cidade. Abraão decidiu bater o ferro enquanto estava quente, Suponhamos agora que existam lá quarenta que estão inocentes, e o senhor respondeu, Por esses quarenta também não destruirei a cidade, E se lá se encontrarem trinta, Por esses trinta não farei mal à cidade, E se forem vinte, insistiu abraão, Não a destruirei por atenção a esses vinte. Então abraão atreveu-se a dizer, Que o meu senhor não se enfade se eu perguntar uma vez mais, Fala, disse o senhor, Suponhamos que existem lá só dez pessoas inocentes, e o senhor respondeu, Também não a destruirei em atenção a essas dez. Depois de ter assim respondido às perguntas de abraão, o senhor retirou-se, e abraão, acompanhado por caim, voltou para a tenda. Daquele que ainda estava por nascer, isaac, não se falaria mais. Quando chegaram às azinheiras de mambré, abraão entrou na tenda, donde sairia daí a pouco com os pães para os entregar a caim conforme havia prometido. Caim parou de ensilhar o jumento para agradecer a generosa dádiva, e perguntou, Como te parece que vai o senhor contar os dez inocentes que, no caso de existirem, evitariam a destruição de sodoma, crês que irá de porta em porta inquirindo das tendências e dos apetites sexuais dos pais de família e seus descendentes machos, O senhor não precisa de fazer escrutínios desses, ele só tem de olhar a cidade lá de cima para saber o que nela se passa, respondeu abraão, Queres tu dizer que o senhor fez aquele acordo contigo para nada, só para te comprazer, tornou a caim perguntar, O senhor empenhou a sua palavra, A mim não me parece, tão certo como eu me chamar caim, embora já me tenha chamado abel, existam inocentes ou não, sodoma será destruída, e se calhar esta mesma noite, É possível, sim, e não será apenas sodoma, será também gomorra e duas ou três cidades da planície, onde os costumes sexuais se relaxaram por igual, os homens com os homens e as mulheres postas de parte, E a ti não te preocupas o que possa suceder àqueles dois homens que vieram com o senhor, Não eram homens, eram anjos, que eu bem os conheço, Anjos sem asas, Não precisarão de asas se tiverem de escapar-se, Pois eu te digo que vão chamar um figo a esses anjos se lhes põem as mãos ou outra coisa em cima, e o senhor não ficará nada satisfeito contigo, eu, se estivesse no teu lugar, iria à cidade ver o que se passa, a ti não te fariam mal, Tens razão, irei, mas peço-te que me acompanhes, sentir-me-ei mais seguro, um homem e meio valem mais que um, Somos dois, não um, Eu já sou apenas metade de um homem, caim, Sendo assim, vamos lá, se nos assaltarem, a dois ou três deles ainda os poderei despachar com o punhal que levo debaixo da túnica, a contar daí esperemos que o senhor proverá. Então abraão chamou um criado e ordenou-lhe que levasse o jumento para a cavalariça. E a caim disse, Se não tens compromissos que te obriguem a partir ainda hoje, ofereço-te a minha hospitalidade para esta noite como um pequeno pago do favor que me farás acompanhando-me, Outros favores esperarei poder fazer-te no futuro, se tiverem na minha mão, respondeu caim, mas abraão não podia adivinhar aonde queria ele chegar com estas misteriosas palavras. Começaram a descer em direcção à cidade e abraão disse, Principiaremos por ir a casa do meu sobrinho lot, filho do meu irmão haran, ele nos porá ao corrente do que se tiver passado. Já o sol se tinha posto quando chegaram a sodoma, mas ainda havia muita luz de dia. Então viram um grande ajuntamento de homens em frente à casa de lot, os quais gritavam, Queremos esses que tens aí, manda-os cá para fora porque queremos dormir com eles, e davam golpes na porta, ameaçando deitá-la abaixo. Disse abraão, Vem comigo, damos a volta à casa e chamamos ao portão das traseiras. Assim fizeram. Entraram quando lot, por trás da porta da frente, estava a dizer, Por favor, meus amigos, não cometam um crime desses, tenho duas filhas solteiras, podem fazer o que quiserem com elas, mas a estes homens não façam mal porque eles procuraram protecção na minha casa. Continuaram os de fora furiosamente aos gritos, mas de repente os clamores mudaram de tom e agora o que se ouvia eram lamentações e choros, Estou cego, estou cego, era o que diziam todos, e perguntavam, Onde está a porta, aqui havia uma porta e já não está. Para salvar os seus anjos de serem brutalmente violentados, destino pior que a morte segundo os entendidos, o senhor havia cegado a todos os homens de sodoma sem excepção, o que prova que, afinal, nem dez inocentes havia em toda a cidade. Dentro de casa os visitantes diziam a lot, Vai-te deste lugar com todos aqueles que te pertencerem, filhos, filhas, genros, e tudo o mais que tiveres nesta cidade porque nós viemos para destruí-la. Lot saiu e foi avisar os que estavam para ser seus futuros genros, mas eles não acreditaram e riram-se do que julgaram ser uma brincadeira. Era já madrugada quando os mensageiros do senhor tornaram a insistir com lot, Levanta-te e leva daqui para fora a tua mulher e as tuas duas filhas que ainda estão contigo se não queres ser também apanhado pelo castigo da cidade, não é essa a vontade do senhor, mas é o que inevitavelmente sucederá se nãos nos obedeceres. E, sem aguardar resposta, agarraram-no pela mão, a ele, à mulher e às duas filhas, e levaram-nos para fora da cidade. Abraão e caim foram com eles, mas não os acompanhariam às montanhas como os demais estiveram a ponto de fazer por conselho dos mensageiros, se não fosse lot ter pedido que os deixassem ficar numa pequena cidade, quase uma aldeia, chamada zoar. Vão, disseram os mensageiros, mas não olhem para trás. Lot entrou na cidadezinha quando o sol estava a nascer. O senhor fez então cai enxofre e fogo sobre sodoma e sobre gomorra e a ambas destruiu até aos alicerces, assim como a toda a região com todos os seus habitantes e toda a vegetação. Para onde quer que se olhasse só se viam ruínas, cinzas e corpos carbonizados. Quanto à mulher de lot, essa olhou para trás desobedecendo à ordem recebida e ficou transformada numa estátua de sal. Até hoje ainda ninguém conseguiu compreender por que foi ela castigada desta maneira, quando tão natural é querermos saber o que se passa nas nossas costas. É possível que o senhor tivesse querido punir a curiosidade como se se tratasse de um pecado mortal, mas isso também não abona muita a favor da sua inteligência, veja-se o que sucedeu com a árvore do bem e do mal, se eva não tivesse dado o fruto a comer a adão, se não o tivesse comido ela também, ainda estariam no jardim do éden, com o aborrecimento que aquilo era. No regresso, por casualidade, detiveram-se por um momento no caminho onde abraão tinha falado com o senhor, e aí caim disse, Tenho um pensamento que não me larga, Que pensamento, perguntou abraão, Penso que havia inocentes em sodoma e nas outras cidades que foram queimadas, Se os houvesse, o senhor teria cumprido a promessa que me fez de lhes poupar a vida, As crianças, disse caim, aquelas crianças estavam inocentes, Meu deus, murmurou abraão e a sua voz foi como um gemido, Sim, será o teu deus, mas não foi o delas.
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Quanto à Homossexualidade (I)


 
 
 
Desde o princípio, é primordial frisar bem o fato de que eu não sou homossexual, apenas luto pelos direitos dos homossexuais, assim como lutaria pelos direitos dos índios, dos japoneses, dos cristãos, dos muçulmanos, dos negros, dos brancos, dos amarelos ou de qualquer outro grupo social, seja ele de ordem étnica, ideológica, religiosa, racial, ad infinitum.
O que me leva a escrever sobre isso, é o artigo intitulado “Parada Gay, Cabra e Espinafre” do (pseudo) jornalista J. R. Guzzo, que saiu na Veja à 14 de novembro de 2012. Muito bem, não é de hoje que as pessoas mais “esclarecidas” da sociedade sabem que na Veja não se pode confiar. A questão é: e quanto ao resto?, e quanto à população “não esclarecida”? Seguirá o fluxo de informações propagadas pela Veja e terá realmente sua opinião formada por artigos como o do Sr. Guzzo? Bem, provavelmente sim, desde que saiba diferenciar o joio do trigo e tenha o mínimo de senso crítico antes de ser alienada por tanta babaquice. O problema é que algumas pessoas poderão sim valer-se das palavras incrivelmente ridículas escritas no artigo.
Vale ainda ressaltar que fiquei sabendo disso à pouco e não tive tempo de fazer um texto mais satisfatório. Pretendo sim, fazer mais textos sobre o tema. As partes destacadas foram as que eu encontrei em uma primeira e superficial leitura do artigo.
Enfim, eu vou colocar o artigo todo abaixo em vermelho e vou comentar em preto. Segue transcrição de artigo do J. R. Guzzo, publicado na Revista Veja, no dia 14 de novembro de 2012. 

Já deveria ter ficado para trás no Brasil a época em que ser homossexual era um problema. Não é mais o problema que era, com certeza, mas a verdade é que todo esforço feito há anos para reduzir o homossexualismo a sua verdadeira natureza – uma questão estritamente pessoal – não vem tendo o sucesso esperado. Na vida política, e só para ficar num caso recente, a rejeição ao homossexualismo pela maioria do eleitorado continua sendo considerada um valor decisivo nas campanhas eleitorais. Ainda agora, na eleição municipal de São Paulo, houve muito ruído em torno do infeliz “kit gay” que o Ministério da Educação inventou e logo desinventou, tempos atrás, para sugerir aos estudantes que a atração afetiva por pessoas do mesmo sexo é a coisa mais natural do mundo. (Muito bem: atentemo-nos para o período grifado – “sugerir aos estudantes que a atração afetiva por pessoas do mesmo sexo é a coisa mais natural do mundo” –. Bem, Sr. “jornalista”, creio ter de informar que, a relação sexual entre membros do mesmo sexo é sim algo natural, o que não é natural é uma coisa chamada preconceito, mas, enfim. Ela pode até não ser comum, mas é totalmente natural. Quer um exemplo de como o homossexualismo é algo natural? O homossexualismo é encontrado em mais de 20 espécies além da humana, incluindo-se ai os primatas, os golfinhos, cachorros, leões, crocodilos, tartarugas, jabutis, ad infinitum, mas isso é assunto para outra hora).
Não deu certo, no caso, porque o ex-ministro Fernando Haddad, o homem associado ao “kit”, acabou ganhando – assim como não tinha dado certo na eleição anterior, quando a candidata Marta Suplicy (curiosamente, uma das campeãs da “causa gay” no país) fez insinuações agressivas quanto à masculinidade do seu adversário Gilberto Kassab e foi derrotada por ele. Mas aí é que está: apesar de sua aparente ineficácia como caça-votos, dizer que alguém é gay, ou apenas pró-gay, ainda é uma “acusação”. Pode equivaler a um insulto grave – e provocar uma denúncia por injúria, crime previsto no artigo 140 do Código Penal Brasileiro. Nos cultos religiosos, o homossexualismo continua sendo denunciado como infração gravíssima. (Que me corrijam os adeptos, mas até onde sei, em cultos afro-brasileiros, por exemplo, a homossexualidade não é “uma infração gravíssima”, e além disso, vale lembrar de que o Estado Brasileiro é Laico, isso quer dizer que o que a Religião prega ou deixa de pregar não significa nada diante da Lei) Para a maioria das famílias brasileiras, ter filhos ou filhas gay é um desastre – não do tamanho que já foi, mas um drama do mesmo jeito. 
Por que o empenho para eliminar a antipatia social em torno do homossexualismo rateia tanto assim?
(Pelo mesmo fato de que a luta contra o racismo é algo passível de receber uma punição Legal) O mais provável é que esteja sendo aplicada aqui a Lei das Consequências Indesejadas, segundo as quais ações feitas em busca de um determinado produzido podem produzir resultados que ninguém queria obter, nem imaginava que pudessem ser obtidos. É a velha história do Projeto Apollo. Foi feito para levar o homem à Lua; acabou levando à descoberta da frigideira Tefal. (Na verdade o Tefal  - Teflon+Alumínio - foi descoberto muito antes, na França, se não me engano em 1956.) A Lei das Consequências Indesejadas pode ser do bem ou do mal. É do bem quando os tais resultados que ninguém esperava são coisas boas, como aconteceu no Projeto Apollo: (Um péssimo exmplo, visto que não condiz com a realidade) o objetivo de colocar o homem na Lua foi alcançado – e ainda rendeu uma bela frigideira, além de conduzir a um monte de outras invenções provavelmente mais úteis que a própria viagem até lá. É do mal quando os efeitos não previstos são o contrário daquilo que se pretendia obter. No caso das atuais cruzadas em favor do estilo de vida gay, parece estar acontecendo mais o mal do que o bem. Em vez de gerar a paz, todo esse movimento ajuda a manter viva a animosidade; divide, quando deveria unir. O kit gay, por exemplo, pretendia ser um convite à harmonia – mas acabou ficando com toda a cara de ser um incentivo ao homossexualismo (bem, eu aprendi sobre a cultura indígena na escola, e nem por isso eu me tornei um índio. Assim como se aprende sobre o nazismo e nem por isso os estudantes, que são muitos, formam grupos nazistas), e só gerou reprovação. O fato é que, de tanto insistirem que os homossexuais devem ser tratados como uma categoria diferente de cidadãos, merecedora de mais e mais direitos, ou como uma espécie ameaçada, a ser protegida por uma coleção cada vez maior de leis (Na verdade, tudo o que os homossexuais querem é poder sair na rua sem ser discriminado. É não ter o risco de perder o emprego – e eu conheço casos – pelo simples fato de serem gays. Eles lutam por ter o mesmo direito que todo heterossexual tem de sair de mãos dadas na rua sem levar uma pedrada ou uma paulada por isso), os patronos da causa gay tropeçam frequentemente na lógica – e se afastam, com isso, do seu objetivo central. 

O primeiro problema sério quando se fala em “comunidade gay”é que a “comunidade gay” não existe – e também não existem, em consequência, o “movimento gay” ou suas lideranças. Como o restante da humanidade, os homossexuais, antes de qualquer outra coisa, são indivíduos. Têm opiniões, valores e personalidades diferentes. Adotam posições opostas em política, religião ou questões éticas. Votam em candidatos que se opõem. Podem ser a favor ou contra a pena de morte, as pesquisas com células-tronco ou a legalização do suicídio assistido. Aprovam ou desaprovam greves, o voto obrigatório ou o novo Código Florestal – e por aí se vai. Então por que, sendo tão distintos entre si próprios, deveriam ser tratados como um bloco só? (Se fossemos seguir à risca o que este sujeito diz, não haveria a comunidade negra, a comunidade judaica, a comunidade indígena ou a comunidade cristã, ou qualquer outra, pelo simples fato de que os integrantes dessas sociedades são indivíduos diferentes entre si, não podendo assim ser agregados, já que, por um pensar diferente do outro, não se pode viver em harmonia, não é mesmo?) Na verdade, a única coisa que têm em comum são suas preferências sexuais – mas isso não é suficiente para transformá-los num conjunto isolado da sociedade (assim como ser índio ou judeu não o faz parecido com os outros índios e judeus, porque vocês só tem esse substantivo em comum), da mesma forma como não vem ao caso falar em “comunidade heterossexual” para agrupar os indivíduos que preferem se unir a pessoas do sexo oposto. A tendência a olharem para si mesmos como uma classe à parte, na verdade, vai na direção exatamente oposta à sua principal aspiração – a de serem cidadãos idênticos a todos os demais. 


Outra tentativa de considerar os gays como um grupo de pessoas especiais é a postura de seus porta-vozes quanto ao problema da violência. Imaginam-se mais vitimados pelo crime do que o resto da população: já se ouviu falar em “holocausto” para descrever a situação. Pelos últimos números disponíveis, entre 250 e 300 homossexuais foram assassinados em 2010 no Brasil. Mas num país onde se cometem 50000 homicídios por ano, parece claro que o problema não é a violência contra os gays: é a violência contra todos. Os homossexuais são vítimas de arrastões em prédios de apartamentos, sofrem sequestros-relâmpago, são assaltados nas ruas e podem ser mortos com um tiro na cabeça se fizerem gesto errado na hora do assalto – exatamente como ocorre a cada dia com os heterossexuais: o drama real, para todos, está no fato de viverem no Brasil. (Este argumento até faria algum sentido, se não fosse o caso de 300 pessoas mortas pelo simples fato de serem gays ter acontecido. 300 é um número bastante razoável de mortos, não é?) E as agressões gratuitas praticadas contra gays? Não há o sinal de que a imensa maioria da população aprove, e muito menos cometa, esses crimes: são fruto exclusivo da ação de delinquentes, não da sociedade brasileira (delinquentes esses que vêm de Bangladesh, de Madri, de Paris, de Berlim, etc).

Não há proveito algum para os homossexuais, igualmente, na facilidade cada vez maior com que se utiliza a palavra “homofobia”; em vez de significar apenas a raiva maligna diante do homossexualismo, como deveria, passou a designar com frequência tudo o que não agrada a entidades ou militantes da “causa gay”. Ainda no mês de junho, na última Parada Gay de São Paulo, os organizadores disseram que “4 milhões” de pessoas tinham participado da marcha – já o instituto de pesquisas Datafolha, utilizando técnicas específicas para este tipo de medição, apurou que o comparecimento real foi de 270000 manifestantes, e que apenas 65000 fizeram o percurso do começo ao fim. A Folha de S. Paulo, que publicou a informação, foi chamada de “homofóbica”. Alegou-se que o número verdadeiro não poderia ser divulgado, para não “estimular o preconceito” – mas com isso só se estimula a mentira. Qualquer artigo na imprensa que critique o homossexualismo é considerado “homofóbico”: insiste-se que sua publicação não deve ser protegida pela liberdade de expressão, pois “pregar o ódio é crime”. Mas se alguém diz que não gosta de gays, ou algo parecido, não está praticando crime algum – a lei, afinal, não obriga nenhum cidadão a gostar de homossexuais, ou de espinafre, ou de seja lá o que for (Que comparação mais esdrúxula esta). Na verdade, não obriga ninguém a gosta de ninguém; apenas exige que todos respeitem os direitos dos outros. 
Há mais prejuízo do que lucro, também, nas campanhas contra preconceitos imaginários e por direitos duvidosos. Homossexuais se consideram discriminados, por exemplo, por não poder doar sangue. Mas a doação de sangue não é um direito ilimitado – também são proibidas de doar pessoas com mais de 65 anos ou que tenham uma história clínica de diabetes, hepatite ou cardiopatias. (Ao dizer isso, nosso saudoso repórter esta indo diretamente contra o que diz a ONU sobre a homossexualidade; ao relacionar doenças e homossexualidade ao fato de não poder doar sangue – o que não é verdade, pois homossexuais podem sim doar sangue – ele está deixando os homossexuais no mesmo hall dos diabéticos, por exemplo. E todos sabemos que a homossexualidade não é nenhuma doença) O mesmo acontece em relação ao casamento, um direito que tem limites muito claros. O primeiro deles é que o casamento, por lei, é a união entre um homem e uma mulher; não pode ser outra coisa. Pessoas do mesmo sexo podem viver livremente como casais, pelo tempo e nas condições que quiserem. Podem apresentar-se na sociedade como casados, celebrar bodas em público e manter uma vida matrimonial. (Na verdade não podem, visto que os “delinquentes” nunca aceitam a demonstração da homoafetividade). Mas a sua ligação não é um casamento – não gera filhos, nem uma família, nem laços de parentesco. (Isso quer dizer que, se por algum acaso uma pessoa é “casada” e não gera filhos, ela não é casada de verdade, visto que o casamento tem como única finalidade propagar a espécie. Parabéns casais sem filhos, por opção ou por ser estéril, vocês não são uma família de verdade, segundo nosso amigo jornalista!) Há outros limites, bem óbvios. Um homem também não pode se casar com uma cabra (Veja outra comparação esdrúxula: comparando pessoas com animais...), por exemplo; pode até ter uma relação estável com ela, mas não pode casar. Não pode se casar com a própria mãe, ou com uma irmã, filha, ou neta, e vice-versa. Não pode se casar com uma menor de 16 anos sem autorização dos pais, e se fizer sexo com uma menor de 14 anos estará cometendo um crime. Ninguém, nem os gays, acha que qualquer proibição dessas é um preconceito. Que discriminação haveria contra eles, então, se o casamento tem restrições para todos? Argumenta-se que o casamento gay serviria para garantir direitos de herança – mas não parece claro como poderiam ser criadas garantias que já existem. Homossexuais podem perfeitamente doar em testamento 50% dos seus bens a quem quiserem. Têm de respirar a “legítima”, que assegura a outra metade aos herdeiros naturais – mas essa obrigação é exatamente a mesma para qualquer cidadão brasileiro. Se não tiverem herdeiros protegidos pela “legítima”, poderão livremente doar 100% do seu patrimônio – ao parceiro, à Santa Casa de Misericórdia ou à Igreja do Evangelho Quadrangular. E daí? 


A mais nociva de todas essas exigências, porém, é o esforço de transformar a “homofobia” em crime, conforme se discute atualmente no Congresso. Não há um único delito contra homossexuais que já não seja punido pela legislação penal existente hoje no Brasil. Como a invenção de um novo crime poderia aumentar a segurança dos gays, num país onde 90% dos homicídios nem sequer chegam a ser julgados? A “criminalização da homofobia” é uma postura primitiva do ponto de vista jurídico, aleijada na lógica e impossível de ser executada na prática. Um crime, antes de mais nada, tem de ser “tipificado” – ou seja, tem de ser descrito de forma absolutamente clara. Não existe “mais ou menos” no direito penal: ou se diz precisamente o que é um crime, ou não há crime. O artigo 121 do Código Penal, para citar um caso clássico, diz o que é um homicídio: “Matar alguém”. Como seria possível fazer algo parecido com a homofobia? Os principais defensores da “criminalização” já admitiram, por sinal, que pregar contra o homossexualismo nas igrejas não seria crime, para não baterem de frente com o princípio da liberdade religiosa. Dizem, apenas, que o delito estaria na promoção do “ódio”. Mas o que seria essa promoção? E como descrever em lei, claramente, um sentimento como o ódio? 
(Quem puder, leia a PL122)

Os gays já percorreram um imenso caminho para se libertar da selvageria com que foram tratados durante séculos e obter, enfim, os mesmos direitos dos demais cidadãos. Na iluminadíssima Inglaterra de 1895, o escritor Oscar Wilde purgou dois anos de trabalhos forçados por ser homossexual; sua vida e sua carreira foram destruídas. Na França de 1963, o cantor e compositor Charles Trenet foi condenado a um ano de prisão, pelo mesmo motivo. Nada lhe valeu ser um dos maiores nomes da música popular francesa, autor de mais de 1000 canções, muitas delas obras imortais como Douce France – uma espécie de segundo hino nacional de seu país. Wilde, Trenet e muitos outros foram homens de sorte – antes, na Europa do Renascimento, da cultura e da civilização, homossexuais iam direto para as fogueiras da Santa Madre Igreja. Essas barbaridades não foram eliminadas com paradas gay ou projetos de lei contra a homofobia, e sim pelo avanço natural das sociedades no caminho da liberdade. É por conta desses progressos que os homossexuais não precisam mais levar uma vida de terror, escondendo sua identidade para conseguir trabalho, prover o seu sustento e escapar às formas mais brutais de chantagem, discriminação e agressão. É por isso que se tornou possível aos gays, no Brasil e no mundo de hoje, realizar o que é a maior e a mais legítima ambição: a de serem julgados por seus méritos individuais, seja qual for a atividade que exerçam, e não por suas opções em matéria de sexo. 

Perder o essencial de vista, e iludir-se com o secundário, raramente é uma boa ideia.
(E desde quando lutar por seus direitos é algo secundário?)
 
Quanto à palavra "Homossexualismo", tão usada por ele: o sufixo "ismo" refere-se à ideais (Judaísmo, Epicurismo, Cristianismo, Darwinismo, Satanismo, Ocultismo, Iluminismo, etc). Só que, como a maioria sabe, a homossexualidade não é um ideal, é uma condição biológica. Isso já desvalida totalmente este artigo, na minha opinião.

Enfim, gostaria que, antes de fechar isso, você que está lendo fizesse duas coisas: a primeira, é trocar todas as palavras gay, homossexual ou algo do tipo por NEGRO. Leia o texto novamente e diga se você realmente concorda com tudo isso. A segunda, é que pare para pensar em como é fácil falar sobre direitos, quando você tem todos os seus assegurados e protegidos.  
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