Foi numa quarta-feira, mas há
muito tempo atrás – há uns quatro anos, creio eu. Fazia naquele dia um sol
forte e quente, que se arredondou, amarelo e brilhante, ao longo do dia. Mas já
passavam das duas da tarde; o taxi movia-se rápido pelas ruazinhas do Cambuí,
as árvores estavam todas vestidas de flores amarelas e vermelhas e roxas e
brancas. Foi ao virar uma rua que vi a Igreja de Nossa Senhora das Dores, e meu
coração deu um pulo de emoção aprisionada no peito. Eu voltava, eu voltava –
não me lembro de onde.
Dei ordem para o taxista parar na
próxima esquina, foi com um andar humilde e revestido de uma santidade, que eu
nunca tive e nem nunca pretendera ter, que eu entrei na penumbra fresca da
igreja. A igreja estava vazia àquela hora. Sentei-me num dos bancos e, com um
misto de paz e medo, fiquei apenas olhando as imagens que cobriam de cores as
paredes velhas e duras. Um cheiro de flores – cravos – me sufocava aos poucos:
é que eu nunca fui acostumado com as delicadezas de Deus. Aos poucos meu peito
foi-se aplacando sob os olhos de todos os santos, e o que antes fora ira
transformava-se em uma resignação melancólica – pois o mundo falhara porque eu
mesmo havia falhado. Naquele momento eu dava minha alma à Deus em troca de nada
– mas a bondade de Deus é tão grande, que Ele virou-me as costas. Não era uma
paz completa aquilo que eu, mal e mal, sentia na ponta dos meus dedos – meu mundo
havia desmoronado e somente eu restara de pé: eu era uma coluna ereta entre
destroços, incógnito ao futuro.
Depois fui esquecendo minha dor e
olhando os santos da igreja; todos tão divinos quanto eu seria se meu martírio
tivesse sido outro: pois este é o caminho do homem e do divino. Todos os santos
haviam abdicado de uma vida maior em prol de uma vida mais profunda que a minha
– e eu era apenas eu. Todos foram tolos no melhor sentido da palavra. E todos
restavam melancólicos de vida, aguardando os nossos corações sedentos de
misericórdia e paz e amor. Mas por que, Deus, era preciso ceder? Por que era
preciso o sofrimento que leva à glorificação?
Foi quando meus olhos pousaram-se
no caixão sobre o altar. Levantei-me e, aos poucos, fui até ele. Entre flores –
cravos – restava a figura de Nossa Senhora das Dores, repousando no meio dos
santos e cravos e velas.
Eu, porém, estranhava alguma
coisa: é que em todas as outras imagens que representavam a Santa, esta era
retratada jovem e bela com flores nas mãos. E esta que estava ali no caixão era
tão velhinha que sua pele se assemelhava a um pergaminho enrugado. Suas mãos
estavam brancas e cruzadas sobre o peito, os olhos estavam fechados, os cravos
estavam vivos e vermelhos, rebentando como um grito de vida ao seu redor no
caixão.
A imagem não era de porcelana,
percebi logo de início. Mas de que era? parecia de cera. Entretanto, a cera
derreteria diante do calor que vinha das velas – logo, não poderia ser. Era um
material que eu nunca havia visto. A única coisa que eu sabia era que, se eu a
tocasse, saberia de que era feita. Eu só saberia ver pegando, mas sabia que o
padre, caso chegasse e me pegasse de surpresa, me expulsaria dali. Olhei em
torno: a igreja continuava vazia; então, furtivamente, com um medo subindo
pelas pernas, estendi a mão para tocar na pele de Nossa Senhora das Dores. Todavia,
em súbito ruído, entraram pela porta duas moças, tolhendo meu gesto logo no
início, que se encaminharam para o caixão e ficamos ali: os três e a Santa
Morta. Até que, espantando o silêncio e fazendo com que o ar vibrasse de
poeira, uma disse a outra:
– Quando é que vem todo mundo
para o enterro da tia Lurdes, afinal? Por acaso ela pode ficar morando na
igreja?
Mal ouvi e meu coração bateu em
novo desespero – eu havia entendido de súbito a verdade. Pálido, trêmulo,
recolhi ainda mais a mão ao entender que aquela não era santa nenhuma – mas a
mim não cabe julgar – mas sim uma mulher morta. E eu quase tocara com os dedos
finos uma mulher morta. Não fossem as netas da morta, teria eu, pleno de vida,
tocado na morte com meus dedos frios.
Minhas pernas se enfraqueceram e
eu mal conseguia caminhar até um banco, onde me sentei meio de travessa, em
leve desmaio: é que eu quase pegara na morte. Senti nos pulsos, nas pernas, na
cabeça, nos joelhos, nas mãos, que meu coração batia forte e assustado. Sei que
meus lábios estavam brancos e rachados. Nem eu mesmo entendi por que tamanho
espanto – pois se a morte faz parte da vida. No entanto, eu quase desmaiara ao
tocar na morte que, um dia, seria minha própria morte – é que meu peito se
apertava de tristeza por ter sido tão traído por mim mesmo. Eu tinha que sair
daquela igreja, mas meus pés não tocavam o chão. Afinal consegui uma força
maior e organizada, levantei-me e sai dali sem olhar para trás.
Em vertigem maior caí ao
deparar-me com o mundo explodindo em vida lá fora: o sol estava aberto e
alegre, as abelhas voavam entre as flores das árvores, os carros passando
distraídos, as pessoas todas vivas – apenas a velha estava morta; e eu havia
aspirado os cravos vermelhos aos pés da morte. Na rua, fiquei de pé por muito
tempo – ou não – aspirando o cheiro de estar vivo: é uma mistura de carne e
sangue, de corpo e alma, de gasolina e fumaça, de suor e axilas: o cheiro
daquilo que ainda não morreu.
Depois cansei-me de tanta vida e
voltei para casa.
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