sábado, 30 de novembro de 2013

A Mãe Cristã - ou - O Que é Amor


 
 
O cenário que está por trás de tudo é o da cidade tipicamente brasileira com todos os seus contrários. O tempo é simplesmente o tempo, sem pararmos num ponto específico. Tudo o que sabemos sobre a passagem das horas é que em todos os lares descai as pálpebras primeiras do dia e lá pelas bandas do horizonte nasce o sol.
A mãe cristã acorda pela manhã e dá pela falta do filho. Suspira – precisa ainda dalguns momentos para se lembrar daquilo que jamais vai esquecer: o filho havia sido morto há tempos. Então a mãe cristã ora ao senhor deus para que ele, em sua grandessíssima omnipotência, mude a vida do rapaz que matara o filho. Depois vai à vida e prepara o almoço dos outros filhos, todos filhos dum mesmo deus, frutos dum mesmo ventre germinado.

A mãe umbandista acorda pela manhã e dá pela falta do filho. Suspira – precisa ainda dalguns momentos para se lembrar daquilo que jamais vai esquecer: o filho havia desencarnado há tempos, mas não duma maneira ao natural; quis o destino que o filho fosse morto por um rapaz de mesma idade e mesma condição social.  Então a mãe umbandista reza ao pai oxalá para que ele, em sua limitada omnipotência, mude a vida do rapaz que matara o filho. Depois vai à vida e prepara o almoço dos outros filhos, lídia filha de iansã, roberto filho de oxóssi, rosa filha de nanã, e pedro filho de oxum. Todos frutos dum mesmo ventre germinado. Todos filhos do mundo inteiro, filhos dos raios, das matas, dos lamaçais e dos rios.

A mãe ateia acorda pela manhã e dá pela falta do filho. Suspira – precisa ainda dalguns momentos para se lembrar daquilo que jamais vai esquecer: o filho havia sido morto há tempos. Então a mãe ateia vai à vida, que não há deus a quem pedir auxílio – e se há um deus, está dormindo no eterno sono da morte. Prepara a própria vida e a vida dos filhos, todos ateus, todos filhos dum mesmo ventre germinado.

A mãe muçulmana acorda pela manhã e dá pela falta do filho. Suspira com vagar para que o marido não acorde e a repreenda – precisa ainda dalguns momentos para se lembrar daquilo que jamais vai esquecer: o filho havia sido morto há tempos. Então a mãe muçulmana faz a primeira das orações do dia e pranteia seu eterno lamento em ser mulher e à margem da vida e das graças de alá. Depois disso a mãe muçulmana não ora por mais nada, orar é coisa destinada apenas aos homens, se for do parecer do marido ele mesmo orará depois pelo assassino do filho, é direito apenas dele ter tão íntima relação com alá. Só então vai à vida, coloca a burca para que não se-lhe chegue às vistas do mundo as próprias vistas cansadas. Prepara a vida dos filhos, todos homens, com a graça de alá que não passarão pela tristeza que é ser mulher e mãe. Todos os seus filhos são filhos de seu ventre imundo e feminino.

A mãe cristã acorda pela manhã e dá pela falta do filho. Suspira – precisa ainda dalguns momentos para se lembrar daquilo que com sorte chegará um dia a esquecer: o filho matara outro rapaz há tempos. Então a mãe cristã ora ao senhor deus para que ele, em sua infinita bondade, possa perdoar o filho tanto quanto havia-o perdoado aquela primeira mãe cristã que, com o cristão amor, perdoara e orara pelo filho desta segunda mãe cristã. Depois vai à vida e cuida para que os outros filhos não saiam pelo caminho da tentação como aconteceu ao primeiro.

A mãe umbandista recebe os filhos no breu da noite. Veste-os, cuida-os. Todos indo aos seus cultos, uns de verde vão fazer vênias a oxóssi, outros vão de roxo a nanã, outros de amarelo ou vermelho a oxum e iansã. Ela própria veste já suas guias de conta e segue em seu cambaleante andar subindo o morro rumo ao terreiro. Em cada encruza uma vela que se acende, uma reverência que é feita. Já lá em cima ouve dos filhos os sinais do amor daqueles filhos duma primeira mãe cristã, todos os cristãos são cheios do amor de deus. Chamaram-te de feiticeiro de novo, pergunta a mãe umbandista ao filho, que responde um sim sem palavras, que para algumas coisas ainda nos faltam palavras para descrever, como é o caso deste sentimento que inunda o menino, misto de raiva, tristeza e vergonha. É certo que quando chegarem estas pessoas ao seu batuque vão rezar à mãe iemanjá para que ela, nas dobras de suas ondas, leve ao fundo do mar de cada um toda a imperfeição dos sentimentos.

A mãe ateia recebe os filhos no breu da noite. Veste-os, cuida-os. Todos indo à mesa comer, discorrer sobre todas as maravilhas do dia que já morre para além das janelas fechadas. A mãe ateia não crê em deus, e em deus não creem seus filhos. Se um dia vão crê-lo, não sabemos nós e não sabem estas pessoas. Tudo o que sabemos são uns quantos murmúrios que um dos filhos diz à mãe ateia. E disseram que vai ao inferno quando morrer por não crer em deus, pergunta a mãe, e o filho, tão confuso quanto aquele macumbeiro que deixamos naquele alto de morro, murmura o mesmo sim; é pena não haver por aqui qualquer iemanjá que possa carregar ao mar tanta tormenta. A mãe ateia abraça os filhos e ama-os, pois há amor mesmo quando não há deus.

A mãe muçulmana espera que os filhos cruzem as portas para poder pedir licença a eles para ir à cozinha e comer sua parte ao fim do jantar. Depois disso ouve do mais novo, que ainda não sabe que com as mulheres não se deve falar demasiado, que não há na escola quem o queira por amigo. É por causa dos teus hábitos, pergunta a mãe. O mesmo murmúrio, é sorte ter esta gente qualquer alá que lhes valha. A mãe muçulmana embala o filho no meio da noite. É sua única amiga nesta vida. Por sorte que o deus cristão é tão cheio de amor que faz com que seus filhos sobejem amor a todos.

Todas essas mães deitam-se em suas camas. Para além do fato de serem cristãs ou ateias ou umbandistas ou muçulmanas, são todas mães. Todas repletas da benção do amor e do perdão – todas perdoam-se umas às outras. Umas perdoam sem que haja para isso qualquer deus vigiando cada passo do céu, outras amam porque a repressão as ensinou que a melhor maneira de aproximar é não afastando e que somente o amor não afasta nada. E outras ainda amam porque é tudo o que lhes resta. Resta ao mundo chegar a própria conclusão: de todos os amores, qual será o maior e o mais puro? Amar e perdoar não deve ser obrigação, deve ser exercício diário e cotidiano: amar e perdoar não apenas o igual, saber que o amor é a soma de duas laranjas e três maçãs. Amar também é a dor do mundo.

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