Do alto de suas nuvens o senhor deus dormia o sono daqueles que,
exatamente por nada fazerem de útil, mais sentem o peso do cansaço. A barba já
grisalha caía-lhe nos peitos infestados doutros cabelos tão grisalhos estes
quanto aqueles; o rosto estava sereno como se sonhasse o sono de uns quantos
inocentes que ele nunca fora e nem nunca seria. Oxalá que, com a morte de tão
vil senhor, possa o Homem criar algo de melhor valia aos afazeres da Terra do
que este: velho sentado, dormitando sempre, inútil desde que pôs na Criação um
ponto final. Inclusive, cabe-nos a pergunta de por que esta criatura foi
meter-se a fazer mundos e animais e todo o resto sendo que, depois de terminado
o homem – diferente de si, mas igual ao deus – nada mais fez da vida. Trabalhasse
o senhor deus para pessoas com um maior grau de exigência e já se veria há
tempos na, como dizem umas quantas bocas por cá, rua da amargura. Sim, que nada
mais resta a este senhor do que aproveitar o gozo da eternidade até que se
corrompa com o fel da morte o último dos Homens. Não se engane o leitor, pois
se há na eternidade o Homem, deus há de ser eterno; da mesma maneira como deus
só ocupa tal posto nos afazeres universais porque o homem é tolo o suficiente
para não enxotá-lo de lá donde quer que esteja às vassouradas. Não, tão inútil
quanto deus em seus afazeres é o homem por não evitá-lo. Deus, por mais que
tenha sido invenção do Homem, não precisa de seu criador para nada, afora para
ser deus. Desta maneira, acaba-se o homem, e já não haverá mais deus, apenas o
universo que, satisfeito, terá se livrado das duas piores coisas que lhe podem
ter ocorrido criar: uma, a primeira delas, o Homem; a outra, tão ruim quanto a
outra, é o deus. Pelos vistos este universo em que vivemos não aprendeu com
seus primeiros erros e permitiu ao Homem dar vida a tão abjeto ser. Cada morte
do Homem é a morte de deus, e quando enfim não restarem mais Homens, não haverá
mais deus.
Voltamos pois a este senhor deus que agora desperta nas nuvens. Se é
que é nas nuvens que está este fulano. Deus: onde está deus? Antigamente, em
remotas eras, dizia-se de deus que estava no céu. Mas hoje, tanto tu quanto eu
sabemos que não há céu. E antes disso, foi-se o Homem ao céu e voltou de lá com
isto: não havia lá por cima qualquer vestígio de um deus qualquer. Nada. Não há
céu, e resta-nos: onde está então deus? E já vos respondemos: está metido na
cabeça das Pessoas, onde está também o diabo e todo o resto. Mas, para via de
factos, estava deus nas nuvens sem fazer nada – coisa que faz incessantemente
desde que disse Está feito, e largou para lá todas as imperfeições que restavam
em sua obra. Pois bem, acordou, olhou para os lados e, como não havia no céu nem
jesus nem o espírito santo, nem maria nem qualquer um dos anjos, coçou com
vigor o membro que fazia dele um homem, burlando o imaginário das pessoas que,
por cá, pensam que, por ser um ser tão inalcançável ao Homem, não é, pois, nem
macho e nem fêmea, sendo um eterno andrógino, um ser que não depende de
quaisquer vontades sexuais. Mesmo as pessoas que ainda pensam nisso esquecem-se
de que este mesmo senhor deus antes procurou a pequena e ainda moça maria e
tirou-lhe a pureza enfiando-lhe bucho a dentro um filho dos mais mal criados
que, apesar de todo o carinho que a mãe lhe deu, sempre tratou-a com a pior das
maldades. Esta pobre mulher nascera mesmo para o sofrimento, visto que, não bastasse
o quase estupro a qual foi submetida, ainda teve que lidar com fruto tão rude
para com ela, mas, como diz a sabedoria do povo, um fruto nunca cai demasiado
longe da árvore que o deitou ao chão.
Mas não é nada disso que viemos a falar-vos hoje. Tratemos do momento
em que deus, coçando-se, lembrou-se de que havia nele umas quantas vontades,
uns quantos apetites adormecidos. Lembrou-se de que sentia falta de alguma
mulher para ter consigo. Foi então que, lançado olhos sobre a Criação, que tão
pouco trabalho lhe dera, percebeu que havia dentre as ovelhas do seu rebanho, o
que não é lá digno de muito crédito, uma que era acostumada aos prazeres
ocultos da carne. Esta moça, que de nome não sabemos, era dada a umas quantas
fomes, que aliviava, quando não com a ajuda das próprias mãos, com a ajuda das
águas de fontes de uns e outros rapazes que, num ímpeto de realizar seu destino
neste mundo, despejavam-lhe nas roupas e nos cabelos e nas faces e na boca todo
o jorro do próprio líquido que, outrora, servia apenas para dar continuidade ao
Homem. Desta feita, o senhor deus viu a
moça com bons olhos e quis tê-la para si já que, como percebem aqueles que mal
e mal ouvem falar de dita mulher, seus atributos eram indispensáveis para
aquele que queria despejar sobre a carne o furor de seus apetites.
Tão grande eleição foi bem recebida pela dita moça que, inclusive,
chamava para si o benefício de ser a mulher do senhor deus – criador supremo de
todas as mentiras. Animada que estava, a moça, que já sentia em si a falta do
homem, deu-se pois para o senhor deus em oferenda. Amaram-se os dois, como bem
queriam ambos, ele – homem viril – e ela – capaz de saciar os desejos de uns
quantos que lhe viessem bater a porta buscando por comida. Farto banquete
ofereceu a mulher ao senhor deus, deu-lhe de comer tanto de pão e leite quanto
de comidas que ela mesma recriminava quando estava em presença de toda a
assembleia que prestava culto ao deus. Comeu e bebeu o senhor deus, e
intercambiou com ela suas comidas e bebidas, oferecendo-lhe de seus frutos e de
seus próprios leites, dando-lhe de comer umas quantas raízes, uns quantos
frutos, uns quantos legumes, servindo-lhe o puro e fresco leite que jorraria
eternamente e se esparramaria pelo ventre da mulher. A moça, vendo descer a umidade
da própria noite, chamou para si o senhor deus mais uma vez, servindo-lhe de
seu banquete noutros dias, dando-lhe de comer, bebendo-lhe as águas da própria
fonte murmurante, deixando que o senhor se deleitasse na parca, porém desejada,
massa de carnes que ocultavam do mundo o alimento primário de todos os homens.
Bem sabemos nós, que como seres omniscientes de tudo sabemos, o motivo
pelo qual deus escolheu esta dentre todas as outras: tão necessitada se
encontrava esta mulher por um afecto masculino, que bem sabia o deus que não precisaria
implorar por deleitar-se com tudo o que ele mesmo criou para ser comido e para
ser bebido. Este é o deus que a mulher fez para si: um deus mesquinho e concupiscente,
que não tem outra razão de existir que não ser pai e esposo e amante. Nada mais.
Por isso nada fizera antes de pôr-se a caminho da casa da jovem, como nada
faria depois de deixá-la. Dizemos a vós que todas essas cousas aconteceram e
acontecem e acontecerão dentro dos sonhos da mulher, que este deus, apesar de real, tornou-se
desprezível pela imagem que fez dele a personagem desta curta narrativa que já
se finda. Depois de todas essas coisas, retirou-se o senhor deus e foi ter com jesus
e com o espírito santo e com seus anjos.
A mulher, recobrada de seus ânimos de fêmea, acordou exausta, com pernas
trêmulas. Levantou-se foi beber uma chávena de café, e só então percebeu, que
sua noite já caía novamente.
*Trecho (adaptado à situação proposta) de um texto que, possivelmente será publicado aqui no blog.
Nenhum comentário:
Postar um comentário