quinta-feira, 8 de agosto de 2013

O Amor de Deus (narrativa baseada na observação contínua do comportamento do rebanho do senhor)




Do alto de suas nuvens o senhor deus dormia o sono daqueles que, exatamente por nada fazerem de útil, mais sentem o peso do cansaço. A barba já grisalha caía-lhe nos peitos infestados doutros cabelos tão grisalhos estes quanto aqueles; o rosto estava sereno como se sonhasse o sono de uns quantos inocentes que ele nunca fora e nem nunca seria. Oxalá que, com a morte de tão vil senhor, possa o Homem criar algo de melhor valia aos afazeres da Terra do que este: velho sentado, dormitando sempre, inútil desde que pôs na Criação um ponto final. Inclusive, cabe-nos a pergunta de por que esta criatura foi meter-se a fazer mundos e animais e todo o resto sendo que, depois de terminado o homem – diferente de si, mas igual ao deus – nada mais fez da vida. Trabalhasse o senhor deus para pessoas com um maior grau de exigência e já se veria há tempos na, como dizem umas quantas bocas por cá, rua da amargura. Sim, que nada mais resta a este senhor do que aproveitar o gozo da eternidade até que se corrompa com o fel da morte o último dos Homens. Não se engane o leitor, pois se há na eternidade o Homem, deus há de ser eterno; da mesma maneira como deus só ocupa tal posto nos afazeres universais porque o homem é tolo o suficiente para não enxotá-lo de lá donde quer que esteja às vassouradas. Não, tão inútil quanto deus em seus afazeres é o homem por não evitá-lo. Deus, por mais que tenha sido invenção do Homem, não precisa de seu criador para nada, afora para ser deus. Desta maneira, acaba-se o homem, e já não haverá mais deus, apenas o universo que, satisfeito, terá se livrado das duas piores coisas que lhe podem ter ocorrido criar: uma, a primeira delas, o Homem; a outra, tão ruim quanto a outra, é o deus. Pelos vistos este universo em que vivemos não aprendeu com seus primeiros erros e permitiu ao Homem dar vida a tão abjeto ser. Cada morte do Homem é a morte de deus, e quando enfim não restarem mais Homens, não haverá mais deus.


Voltamos pois a este senhor deus que agora desperta nas nuvens. Se é que é nas nuvens que está este fulano. Deus: onde está deus? Antigamente, em remotas eras, dizia-se de deus que estava no céu. Mas hoje, tanto tu quanto eu sabemos que não há céu. E antes disso, foi-se o Homem ao céu e voltou de lá com isto: não havia lá por cima qualquer vestígio de um deus qualquer. Nada. Não há céu, e resta-nos: onde está então deus? E já vos respondemos: está metido na cabeça das Pessoas, onde está também o diabo e todo o resto. Mas, para via de factos, estava deus nas nuvens sem fazer nada – coisa que faz incessantemente desde que disse Está feito, e largou para lá todas as imperfeições que restavam em sua obra. Pois bem, acordou, olhou para os lados e, como não havia no céu nem jesus nem o espírito santo, nem maria nem qualquer um dos anjos, coçou com vigor o membro que fazia dele um homem, burlando o imaginário das pessoas que, por cá, pensam que, por ser um ser tão inalcançável ao Homem, não é, pois, nem macho e nem fêmea, sendo um eterno andrógino, um ser que não depende de quaisquer vontades sexuais. Mesmo as pessoas que ainda pensam nisso esquecem-se de que este mesmo senhor deus antes procurou a pequena e ainda moça maria e tirou-lhe a pureza enfiando-lhe bucho a dentro um filho dos mais mal criados que, apesar de todo o carinho que a mãe lhe deu, sempre tratou-a com a pior das maldades. Esta pobre mulher nascera mesmo para o sofrimento, visto que, não bastasse o quase estupro a qual foi submetida, ainda teve que lidar com fruto tão rude para com ela, mas, como diz a sabedoria do povo, um fruto nunca cai demasiado longe da árvore que o deitou ao chão.

Mas não é nada disso que viemos a falar-vos hoje. Tratemos do momento em que deus, coçando-se, lembrou-se de que havia nele umas quantas vontades, uns quantos apetites adormecidos. Lembrou-se de que sentia falta de alguma mulher para ter consigo. Foi então que, lançado olhos sobre a Criação, que tão pouco trabalho lhe dera, percebeu que havia dentre as ovelhas do seu rebanho, o que não é lá digno de muito crédito, uma que era acostumada aos prazeres ocultos da carne. Esta moça, que de nome não sabemos, era dada a umas quantas fomes, que aliviava, quando não com a ajuda das próprias mãos, com a ajuda das águas de fontes de uns e outros rapazes que, num ímpeto de realizar seu destino neste mundo, despejavam-lhe nas roupas e nos cabelos e nas faces e na boca todo o jorro do próprio líquido que, outrora, servia apenas para dar continuidade ao Homem.  Desta feita, o senhor deus viu a moça com bons olhos e quis tê-la para si já que, como percebem aqueles que mal e mal ouvem falar de dita mulher, seus atributos eram indispensáveis para aquele que queria despejar sobre a carne o furor de seus apetites.

Tão grande eleição foi bem recebida pela dita moça que, inclusive, chamava para si o benefício de ser a mulher do senhor deus – criador supremo de todas as mentiras. Animada que estava, a moça, que já sentia em si a falta do homem, deu-se pois para o senhor deus em oferenda. Amaram-se os dois, como bem queriam ambos, ele – homem viril – e ela – capaz de saciar os desejos de uns quantos que lhe viessem bater a porta buscando por comida. Farto banquete ofereceu a mulher ao senhor deus, deu-lhe de comer tanto de pão e leite quanto de comidas que ela mesma recriminava quando estava em presença de toda a assembleia que prestava culto ao deus. Comeu e bebeu o senhor deus, e intercambiou com ela suas comidas e bebidas, oferecendo-lhe de seus frutos e de seus próprios leites, dando-lhe de comer umas quantas raízes, uns quantos frutos, uns quantos legumes, servindo-lhe o puro e fresco leite que jorraria eternamente e se esparramaria pelo ventre da mulher. A moça, vendo descer a umidade da própria noite, chamou para si o senhor deus mais uma vez, servindo-lhe de seu banquete noutros dias, dando-lhe de comer, bebendo-lhe as águas da própria fonte murmurante, deixando que o senhor se deleitasse na parca, porém desejada, massa de carnes que ocultavam do mundo o alimento primário de todos os homens.

Bem sabemos nós, que como seres omniscientes de tudo sabemos, o motivo pelo qual deus escolheu esta dentre todas as outras: tão necessitada se encontrava esta mulher por um afecto masculino, que bem sabia o deus que não precisaria implorar por deleitar-se com tudo o que ele mesmo criou para ser comido e para ser bebido. Este é o deus que a mulher fez para si: um deus mesquinho e concupiscente, que não tem outra razão de existir que não ser pai e esposo e amante. Nada mais. Por isso nada fizera antes de pôr-se a caminho da casa da jovem, como nada faria depois de deixá-la. Dizemos a vós que todas essas cousas aconteceram e acontecem e acontecerão dentro dos sonhos da mulher,  que este deus, apesar de real, tornou-se desprezível pela imagem que fez dele a personagem desta curta narrativa que já se finda. Depois de todas essas coisas, retirou-se o senhor deus e foi ter com jesus e  com o espírito santo e com seus anjos. A mulher, recobrada de seus ânimos de fêmea, acordou exausta, com pernas trêmulas. Levantou-se foi beber uma chávena de café, e só então percebeu, que sua noite já caía novamente.


*Trecho (adaptado à situação proposta) de um texto que, possivelmente será publicado aqui no blog.

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