Já que
muitos empreenderam compor uma narração dos factos que entre nós se consumaram,
como no-los transmitiram os que desde o princípio foram testemunhas oculares e
se tornaram servidores da Palavra, resolvi eu também, depois de tudo ter
investigado cuidadosamente desde a origem, expor-tos por escrito e pela sua
ordem, ilustre Teófilo, a fim de que reconheças a solidez da doutrina em que
foste instruído.
Lucas, 1, 1-4
Quod scripsi, scripsi.
Pilatos
O sol mostra-se num dos cantos superiores do
rectângulo, o que se encontra à esquerda de quem olha, representando, o
astro-rei, uma cabeça de homem donde jorram raios de aguda luz e sinuosas
labaredas, tal uma rosa-dos-ventos indecisa sobre a direcção dos lugares para
onde quer apontar, e essa cabeça tem um rosto que chora, crispado de uma dor
que não remite, lançando pela boca aberta um grito que não poderemos ouvir,
pois nenhuma destas coisas é real, o que temos diante de nós é papel e tinta,
mais nada. Por baixo do sol vemos um homem nu atado a um tronco de árvore,
cingidos os rins por um pano que lhe cobre as partes a que chamamos pudendas ou
vergonhosas, e os pés tem-nos assentes no que resta de um ramo lateral cortado,
porém, por maior firmeza, para que não resvalem desse suporte natural, dois
pregos os mantêm, cravados fundo. Pela expressão da cara, que é de inspirado
sofrimento, e pela direcção do olhar, erguido para o alto, deve de ser o Bom
Ladrão. O cabelo, todo aos caracóis, é outro indício que não engana, sabendo-se
que anjos e arcanjos assim o usam, e o criminoso arrependido, pelas mostras, já
está no caminho de ascender ao mundo das celestiais criaturas. Não será
possível averiguar se este tronco ainda é uma árvore, apenas adaptada, por
mutilação selectiva, a instrumento de suplício, mas continuando a alimentar-se
da terra pelas raízes, porquanto toda a parte inferior dela está tapada por um
homem de barba comprida, vestido de ricas, folgadas e abundantes roupas, que,
tendo embora levantada a cabeça, não é para o céu que olha. Esta postura
solene, este triste semblante, só podem ser de José de Arimateia, que Simão de
Cirene, sem dúvida outra hipótese possível, após o trabalho a que o tinham
forçado, ajudando o condenado no transporte do patíbulo, conforme os protocolos
destas execuções, fora à sua vida, muito mais preocupado com as consequências
do atraso para um negócio que trazia aprazado do que com as mortais aflições do
infeliz que iam crucificar. Ora, este José de Arimateia é aquele bondoso e
abastado homem que ofereceu os préstimos de um túmulo seu para nele ser
depositado o corpo principal, mas a generosidade não lhe servirá de muito na
hora das santificações, sequer das beatificações, pois não tem, a envolver-lhe
a cabeça, mais do que o turbante com que sai à rua todos os dias, ao contrário
desta mulher que aqui vemos em plano próximo, de cabelos-soltos sobre o dorso
curvo e dobrado, mas toucada com a glória suprema duma auréola, no seu caso
recortada como um bordado doméstico. De certeza que a mulher ajoelhada se chama
Maria, pois de antemão sabíamos que todas quantas aqui vieram juntar-se usam
esse nome, apenas uma delas, por ser ademais Madalena, se distingue
onomasticamente das outras, ora, qualquer observador, se conhecedor bastante
dos factos elementares da vida, jurará, à primeira vista, que a mencionada
Madalena é esta precisamente, porquanto só uma pessoa como ela, de dissoluto
passado, teria ousado apresentar-se, na hora trágica, com um decote tão aberto,
e um corpete de tal maneira justo que lhe faz subir e altear a redondez dos
seios, razão por que, inevitavelmente, está atraindo e retendo a mirada sôfrega
dos homens que passam, com grave dano das almas, assim arrastadas à perdição
pelo infame corpo. É, porém, de compungida tristeza a expressão do seu rosto, e
o abandono do corpo não exprime senão a dor de uma alma, é certo que escondida
por carnes tentadoras, mas que é nosso dever ter em conta, falamos da alma,
claro está, esta mulher poderia até estar inteiramente nua, se em tal preparo
tivessem escolhido representá-la, que ainda assim haveríamos de demonstrar-lhe
respeito e homenagem. Maria Madalena, se ela é, ampara, e parece que vai
beijar, num gesto de compaixão intraduzível por palavras, a mão doutra mulher, esta
sim, caída por terra, como desamparada de forças ou ferida de morte. O seu nome
também é Maria, segunda na ordem de apresentação, mas, sem dúvida,
primeiríssima na importância, se algo significa o lugar central que ocupa na
região inferior da composição. Tirando o rosto lacrimoso e as mãos
desfalecidas, nada se lhe alcança a ver do corpo, coberto pelas pregas
múltiplas do manto e da túnica, cingida na cintura por um cordão cuja aspereza
se adivinha. É mais idosa do que a outra Maria, e esta é uma boa razão,
provavelmente, mas não a única, para que a sua auréola tenha um desenho mais
complexo, assim, pelo menos, se acharia autorizado a pensar quem, não dispondo
de informações precisas acerca das precedências, patentes e hierarquias em
vigor neste mundo, estivesse obrigado a formular uma opinião. Porém, tendo em
conta o grau de divulgação, operada por artes maiores e menores, destas
iconografias, só um habitante doutro planeta, supondo que nele não se houvesse
repetido alguma vez, ou mesmo estreado, este drama, só esse em verdade
inimaginável ser ignoraria que a afligida mulher é a viúva de um carpinteiro
chamado José e mãe de numerosos filhos e filhas, embora só um deles, por
imperativos do destino ou de quem o governa, tenha vindo a prosperar, em vida mediocremente,
mas maiormente depois da morte. Reclinada sobre o seu lado esquerdo, Maria, mãe
de Jesus, esse mesmo a quem acabamos de aludir, apoia o antebraço na coxa de
uma outra mulher, também ajoelhada, também Maria de seu nome, e afinal, apesar
de não lhe podermos ver nem fantasiar o decote, talvez verdadeira Madalena. Tal
como a primeira desta trindade de mulheres, mostra os longos cabelos soltos,
caídos pelas costas, mas estes têm todo o ar de serem louros, se não foi pura
casualidade a diferença do traço, mais leve neste caso e deixando espaços
vazios no sentido das madeixas, o que, obviamente, serviu ao gravador para
aclarar o tom geral da cabeleira representada. Com tais razões não pretendemos
afirmar que Maria Madalena tivesse sido, de facto, loura, apenas nos estamos
conformando com a corrente de opinião maioritária que insiste em ver nas
louras, tanto as de natureza como as de tinta, os mais eficazes instrumentos de
pecado e perdição. Tendo sido Maria Madalena, como é geralmente sabido, tão
pecadora mulher, perdida como as que mais o foram, teria também de ser loura
para não desmentir as convicções, em bem e em mal adquiridas, de metade do gênero
humano. Não é, porém, por parecer esta terceira Maria, em comparação com a
outra, mais clara na tez e no tom do cabelo, que insinuamos e propomos, contra
as arrasadoras evidências de um decote profundo e de um peito que se exibe, ser
ela a Madalena. Outra prova, esta fortíssima, robustece e afirma a
identificação, e vem a ser que a dita mulher, ainda que um pouco amparando, com
distraída mão, a extenuada mãe de Jesus, levanta, sim, para o alto o olhar, e
este olhar, que é de autêntico e arrebatado amor, ascende com tal força que
parece levar consigo o corpo todo, todo o seu ser carnal, como uma irradiante auréola
capaz de fazer empalidecer o halo que já lhe está rodeando a cabeça e reduzindo
pensamentos e emoções. Apenas uma mulher que tivesse amado tanto quanto
imaginamos que Maria Madalena amou poderia olhar desta maneira, com o que,
derradeiramente, fica feita a prova de ser ela esta, só esta, e nenhuma outra,
excluída portanto a que ao lado se encontra, Maria quarta, de pé, meio
levantadas as mãos, em piedosa demonstração, mas de olhar vago, fazendo
companhia, neste lado da gravura, a um homem novo, pouco mais que adolescente,
que de modo amaneirado a perna esquerda flecte, assim, pelo joelho, enquanto a
mão direita, aberta, exibe, numa atitude afectada e teatral, o grupo de
mulheres a quem coube representar, no chão, a acção dramática. Este personagem,
tão novinho, com o seu cabelo aos cachos e o lábio trêmulo, é João. Tal como
José de Arimateia, também esconde com o corpo o pé desta outra árvore que, lá
em cima, no lugar dos ninhos, levanta ao ar um segundo homem nu, atado e
pregado como o primeiro, mas este é de cabelos lisos, deixa pender a cabeça
para olhar, se ainda pode, o chão, e a sua cara, magra e esquálida, dá pena, ao
contrário do ladrão do outro lado, que mesmo no transe final, de sofrimento agônico,
ainda tem valor para mostrar-nos um rosto que facilmente imaginamos rubicundo,
corria-lhe bem a vida quando roubava, não obstante a falta que fazem as cores
aqui. Magro, de cabelos lisos, de cabeça caída para a terra que o há-de comer,
duas vezes condenado, à morte e ao inferno, este mísero despojo só pode ser o
Mau Ladrão, rectíssimo homem afinal, a quem sobrou consciência para não fingir
acreditar, a coberto de leis divinas e humanas, que um minuto de arrependimento
basta para resgatar uma vida inteira de maldade ou uma simples hora de
fraqueza. Por cima dele, também chorando e clamando como o sol que em frente
está, vemos a lua em figura de mulher, com uma incongruente argola a
enfeitar-lhe a orelha, licença que nenhum artista ou poeta se terá permitido
antes e é duvidoso que se tenha permitido depois, apesar do exemplo. Este sol e
esta lua iluminam por igual a terra, mas a luz ambiente é circular, sem sombras,
por isso pode ser tão nitidamente visto o que está no horizonte, ao fundo,
torres e muralhas, uma ponte levadiça sobre um fosso onde brilha água, umas
empenas góticas, e lá por trás, no testo duma última colina, as asas paradas de
um moinho. Cá mais perto, pela ilusão da perspectiva, quatro cavaleiros de
elmo, lança e armadura fazem voltear as montadas em alardes de alta escola, mas
os seus gestos sugerem que chegaram ao fim da exibição, estão saudando, por
assim dizer, um público invisível. A mesma impressão de final de festa é dada
por aquele soldado de infantaria que já dá um passo para retirar-se, levando,
suspenso da mão direita, o que, a esta distância, parece um pano, mas que
também pode ser manto ou túnica, enquanto dois outros militares dão sinais de
imitação e despeito, se é possível, de tão longe, decifrar nos minúsculos
rostos um sentimento, como de quem jogou e perdeu. Por cima destas vulgaridades
de milícia e de cidade muralhada pairam quatro anjos, sendo dois dos de corpo
inteiro, que choram, e protestam, e se lastimam, não assim um deles, de perfil
grave, absorto no trabalho de recolher numa taça, até à última gota, o jorro de
sangue que sai do lado direito do Crucificado. Neste lugar, a que chamam
Gólgota, muitos são os que tiveram o mesmo destino fatal e outros muitos o
virão a ter, mas este homem, nu, cravado de pés e mãos numa cruz, filho de José
e de Maria, Jesus de seu nome, é o único a quem o futuro concederá a honra da
maiúscula inicial, os mais nunca passarão de crucificados menores. É ele,
finalmente, este para quem apenas olham José de Arimateia e Maria Madalena,
este que faz chorar o sol e a lua, este que ainda agora louvou o Bom Ladrão e
desprezou o Mau, por não compreender que não há nenhuma diferença entre um e
outro, ou, se diferença há, não é essa, pois o Bem e o Mal não existem em si
mesmos, cada um deles é somente a ausência do outro. Tem por cima da cabeça,
resplandecente de mil raios, mais do que, juntos, o sol e a lua, um cartaz
escrito em romanas letras que o proclamam Rei dos Judeus, e, cingindo-a, uma
dolorosa coroa de espinhos, como a levam, e não sabem, mesmo quando não sangram
para fora do corpo, aqueles homens a quem não se permite que sejam reis em suas
próprias pessoas. Não goza Jesus de um descanso para os pés, como o têm os
ladrões, todo o peso do seu corpo estaria suspenso das mãos pregadas no madeiro
se não fosse restar-lhe ainda alguma vida, a bastante para mantê-lo erecto
sobre os joelhos retesados, mas que cedo se lhe acabará, a vida, continuando o
sangue a saltar-lhe da ferida do peito, como já foi dito. Entre as duas cunhas
que firmam a cruz a prumo, como ela introduzidas numa escura fenda do chão,
ferida da terra não mais incurável que qualquer sepultura de homem, está um
crânio, e também uma tíbia e uma omoplata, mas o crânio é que nos importa,
porque é isso o que Gólgota significa, crânio, não parece ser uma palavra o
mesmo que a outra, mas alguma diferença lhes notaríamos se em vez de escrever
crânio e Gólgota escrevêssemos gólgota e Crânio. Não se sabe quem aqui pôs
estes restos e com que fim o teria feito, se é apenas um irônico e macabro
aviso aos infelizes supliciados sobre o seu estado futuro, antes de se tornarem
em terra, pó e coisa nenhuma. Mas também há quem afirme que este é o próprio
crânio de Adão, subido do negrume profundo das camadas geológicas arcaicas, e
agora, porque a elas não pode voltar, condenado eternamente a ter diante dos
olhos a terra, seu único paraíso possível e para sempre perdido. Lá atrás, no
mesmo campo onde os cavaleiros executam um último volteio, um homem afasta-se,
virando ainda a cabeça para este lado. Leva na mão esquerda um balde e uma cana
na mão direita. Na extremidade da cana deve haver uma esponja, é difícil ver
daqui, e o balde, quase apostaríamos, contém água com vinagre. Este homem, um
dia, e depois para sempre, será vítima de uma calúnia, a de, por malícia ou
escárnio, ter dado vinagre a Jesus ao pedir ele água, quando o certo foi
ter-lhe dado da mistura que traz, vinagre e água, refresco dos mais soberanos
para matar a sede, como ao tempo se sabia e praticava. Vai-se embora, não fica
até ao fim, fez o que podia para aliviar as securas mortais dos três
condenados, e não fez diferença entre Jesus e os Ladrões, pela simples razão de
que tudo isto são coisas da terra, que vão ficar na terra, e delas se faz a
única história possível.
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