A noite ainda tem muito para durar. A candeia de
azeite, dependurada de um prego ao lado da porta, está acesa, mas a chama, como
uma pequena amêndoa luminosa pairando, mal consegue, trêmula, instável, suster
a massa escura que a rodeia e enche de cima a baixo a casa, até aos últimos
recantos, lá onde as trevas, de tão espessas, parecem ter-se tornado sólidas.
José acordou em sobressalto, como se alguém, bruscamente, o tivesse sacudido
pelo ombro, mas teria sido ilusão de um sonho logo desvanecido, que nesta casa
só ele vive, e a mulher, que não se mexeu, e dorme. Não é seu costume despertar
assim a meio da noite, em geral não acorda antes de a larga frincha da porta
começar a emergir do escuro, cinzenta e fria. Inúmeras vezes pensara que
deveria tapá-la, nada mais fácil para um carpinteiro, ajustar e pregar uma
simples régua de madeira que sobrasse duma obra, porém, a tal ponto se tinha
habituado a encontrar na sua frente, mal abria os olhos, aquela vara vertical
de luz, anunciadora do dia, que acabara por imaginar, sem ligar ao absurdo da
ideia, que, faltando ela, poderia não ser capaz de sair das trevas do sono, as
do seu corpo e as do mundo. A frincha da porta fazia parte da casa, como as
paredes ou o tecto, como o forno ou o chão de terra apisoada. Em voz baixa,
para não acordar a mulher, que continuava a dormir, pronunciou a primeira
bênção do dia, aquela que sempre deve ser dita quando se regressa do misterioso
país do sono, Graças te dou, Senhor, nosso Deus, rei do universo, que pelo
poder da tua misericórdia, assim me restituis, viva e constante, a minha alma. Talvez
por não se encontrar igualmente desperto em cada um dos seus cinco sentidos, se
é que, então, nesta época de que vimos falando, não estavam as pessoas ainda a aprender
alguns deles ou, pelo contrário, a perder outros que hoje nos seriam úteis,
José olhava-se a si mesmo como se fosse acompanhando, a distância, a lenta
ocupação do seu corpo por uma alma que aos poucos estivesse regressando, igual
a fios de água que, avançando sinuosos pelos caminhos das regueiras,
penetrassem a terra até às mais fundas raízes, transportando a seiva, depois,
pelo interior dos caules e das folhas. E por ver quão trabalhoso era este
regresso, olhando a mulher, a seu lado, teve um pensamento que o perturbou, que
ela, ali adormecida, era verdadeiramente um corpo sem alma, que a alma não está
presente no corpo que dorme, ou então não faz sentido que agradeçamos todos os
dias a Deus por todos os dias no-la restituir quando acordamos, e nesta altura
uma voz dentro de si perguntou, O que é que em nós sonha o que sonhamos,
Porventura os sonhos são as lembranças que a alma tem do corpo, pensou a
seguir, e isto era uma resposta. Maria moveu-se, acaso a alma dela estaria ali
por perto, já dentro de casa, mas no fim não despertou, apenas andaria em afãs
de sonho, e, tendo soltado um suspiro fundo, entrecortado como um soluço,
chegou-se para o marido, num movimento sinuoso, porém inconsciente, que jamais
ousaria quando acordada. José puxou o lençol grosso e áspero para os ombros e
aconchegou melhor o corpo na esteira, sem se afastar. Sentiu que o calor da
mulher, carregado de odores, como de uma arca fechada onde tivessem secado
ervas, lhe ia penetrando pouco a pouco o tecido da túnica, juntando-se ao calor
do seu próprio corpo. Depois, deixando descer devagar as pálpebras, esquecido
já de pensamentos, desprendido da alma, abandonou-se ao sono que voltava.
Só tornou a acordar quando o galo cantou. A frincha
da porta deixava passar uma cor grisalha e imprecisa, de aguada suja. O tempo,
usando de paciência, contentara-se com esperar que se cansassem as forças da
noite e agora estava a preparar o campo para a manhã chegar ao mundo, como
ontem e sempre, em verdade não estamos naqueles dias fabulosos em que o sol, a
quem já tanto devíamos, levou a sua benevolência ao ponto de deter, sobre
Gabaon, a sua viagem, assim dando a Josué tempo de vencer, com todos os
vagares, os cinco reis que lhe cercavam a cidade. José sentou-se na esteira,
afastou o lençol, e nesse momento o galo cantou segunda vez, lembrando-lhe que
se encontrava em falta de uma bênção, aquela que se deve à parte de méritos que
ao galo coube quando da distribuição que deles fez o Criador pelas suas
criaturas, Louvado sejas tu, Senhor, nosso Deus, rei do universo, que deste ao
galo inteligência para distinguir o dia da noite, isto disse José, e o galo
cantou terceira vez. Era costume, ao primeiro sinal destas alvoradas,
responderem-se uns aos outros os galos da vizinhança, mas hoje ficaram calados,
como se para eles a noite ainda não tivesse terminado ou mal tivesse começado.
José, perplexo, olhou o vulto da mulher, estranhando-lhe o sono pesado, ela que
o mais ligeiro ruído fazia despertar, como um pássaro. Era como se uma força
exterior, descendo, ou pairando, sobre Maria, lhe comprimisse o corpo contra o
solo, porém não tanto que a imobilizasse por completo, notava-se mesmo, apesar
da penumbra, que a percorriam súbitos estremecimentos, como a água de um tanque
tocada pelo vento. Estará mal, pensou, mas eis que um sinal de urgência o
distraiu da preocupação incipiente, uma instante necessidade de urinar, também
ela muito fora do costume, que estas satisfações, na sua pessoa, habitualmente
manifestavam-se mais tarde, e nunca tão vivamente. Levantou-se, cauteloso, para
evitar que a mulher desse pelo que ia fazer, pois escrito está que por todos os
modos se deve preservar o respeito de um homem, só quando de todo em todo não
for possível, e, tendo aberto devagar a porta que rangia, saiu para o pátio. Era
a hora em que o crepúsculo matutino cobre de cinzento as cores do mundo.
Encaminhou-se para um alpendre baixo, que era a barraca do jumento, e aí se
aliviou, escutando, com uma satisfação meio consciente, o ruído forte do jacto
de urina sobre a palha que cobria o chão. O burro voltou a cabeça, fazendo
brilhar no escuro os olhos salientes, depois sacudiu com força as orelhas
peludas e tornou a meter o focinho na manjedoura, a tentear os restos da ração
com os beiços grossos e sensíveis. José aproximou-se da talha das abluções,
inclinou-a, fez correr a água sobre as mãos, e depois, enquanto as enxugava na
própria túnica, louvou a Deus por, em sua sabedoria infinita, ter formado e
criado no homem os orifícios e vasos que lhe são necessários à vida, que se um deles
se fechasse ou abrisse, não devendo, certa teria o homem a sua morte. Olhou
José o céu, e em seu coração pasmou. O sol ainda tarda a despontar, não há, por
todos os espaços celestes, o mais lavado indício dos rubros tons do amanhecer,
sequer uma pincelada leve de róseo ou de cereja mal madura, nada, a não ser, de
horizonte a horizonte, tanto quanto os muros do pátio lhe permitiam ver, em
toda a extensão de um imenso tecto de nuvens baixas, que eram como pequenos
novelos espalmados, iguais, uma cor única de violeta que, principiando já a
tornar-se vibrante e luminosa do lado donde há-de romper o sol, vai
progressivamente escurecendo, mais e mais, até se confundir com o que, do lado
de além, ainda resta da noite. Em sua vida, José nunca vira um céu como este,
embora nas longas conversas dos homens velhos não fossem raras as notícias de
fenômenos atmosféricos prodigiosos, todos eles mostras do poder de Deus,
arcos-íris que enchiam metade da abóbada celeste, escadas vertiginosas que um
dia ligaram o firmamento à terra, chuvas providenciais de manjar do céu, mas
nunca esta cor misteriosa que tanto podia ser das primordiais como das
derradeiras, flutuando e demorando-se sobre o mundo, um tecto de milhares de
pequenas nuvens que quase se tocavam umas às outras, espalhadas em todas as
direcções como as pedras do deserto. Encheu-se-lhe o coração de temor, imaginou
que o mundo ia acabar, e ele posto ali, única testemunha da sentença final de
Deus, sim, única, há um silêncio absoluto na terra como no céu, nenhum rumor se
ouve nas casas vizinhas, uma voz que fosse, um choro de criança, uma prece ou
uma imprecação, um sopro de vento, o balido duma cabra, o ladrar dum cão, Por
que não cantam os galos, murmurou, e repetiu a pergunta, ansiosamente, como se
de cantarem galos é que pudesse vir a última esperança de salvação. Então, o
céu começou a mudar. Pouco a pouco, quase sem perceber-se, o violeta tingia-se
e deixava-se penetrar de rosa-pálido na face interior do tecto de nuvens,
avermelhando-se depois, até desaparecer, estava ali e deixara de estar, e de
súbito o espaço explodiu num vento luminoso, multiplicou-se em lanças de ouro,
ferindo em cheio e trespassando as nuvens, que, sem saber-se porquê nem quando,
haviam crescido, tornadas formidáveis, barcas gigantescas arvorando
incandescentes velas e vogando num céu enfim liberto. Desafogou-se, já sem
medos, a alma de José, os olhos dilataram-se-lhe de assombro e reverência, não
era o caso para menos, de mais sendo ele o único espectador, e a sua boca
proferiu em voz forte os louvores devidos ao criador das obras da natureza,
quando a sempiterna majestade dos céus, tendo-se tornado pura inefabilidade,
não pode esperar do homem mais do que as palavras mais simples, Louvado sejas
tu, Senhor, por isto, por aquilo, por aqueloutro. Disse-o ele, e nesse instante
o rumor da vida, como se o tivesse convocado a sua voz, ou apenas entrando de
repente por uma porta que alguém de par em par abrisse sem pensar muito nas
consequências, ocupou o espaço que antes pertencera ao silêncio, deixando-lhe
apenas pequenos territórios ocasionais, mínimas superfícies, como aqueles
breves charcos que as florestas murmurantes rodeiam e ocultam. A manhã subia,
expandia-se, e em verdade era uma visão de beleza quase insuportável, duas mãos
imensas soltando aos ares e ao voo uma cintilante e imensa ave-do-paraíso,
desdobrando em radioso leque a roda de mil olhos da cauda do pavão-real,
fazendo cantar perto, simplesmente, um pássaro sem nome. Um sopro de vento ali
mesmo nascido bateu na cara de José, agitou-lhe os pêlos da barba, sacudiu-lhe
a túnica, e depois girou à volta dele como um espojinho atravessando o deserto,
ou isto que assim lhe parecia não era mais do que o aturdimento causado por uma
súbita turbulência do sangue, o arrepio sinuoso que lhe estava percorrendo o
dorso como um dedo de fogo, sinal de uma outra e mais insistente urgência.
Como se se movesse no interior da rodopiante coluna
de ar, José entrou em casa, cerrou a porta atrás de si, e ali ficou encostado
por um minuto, aguardando que os olhos se habituassem à meia penumbra. Ao lado
dele, a candeia brilhava palidamente, quase sem irradiar luz, inútil. Maria,
deitada de costas, estava acordada e atenta, olhava fixamente um ponto em
frente, e parecia esperar. Sem pronunciar palavra, José aproximou-se e afastou
devagar o lençol que a cobria. Ela desviou os olhos, soergueu um pouco a parte
inferior da túnica, mas só acabou de puxá-la para cima, à altura do ventre,
quando ele já se vinha debruçando e procedia do mesmo modo com a sua própria
túnica, e Maria, entretanto, abrira as pernas, ou as tinha aberto durante o
sonho e desta maneira as deixara ficar, fosse por inusitada indolência matinal
ou pressentimento de mulher casada que conhece os seus deveres. Deus, que está
em toda a parte, estava ali, mas, sendo aquilo que é, um puro espírito, não
podia ver como a pele de um tocava a pele do outro, como a carne dele penetrou
a carne dela, criadas uma e outra para isso mesmo, e, provavelmente, já nem lá
se encontraria quando a semente sagrada de José se derramou no sagrado interior
de Maria, sagrados ambos por serem a fonte e a taça da vida, em verdade há
coisas que o próprio Deus não entende, embora as tivesse criado. Tendo pois
saído para o pátio, Deus não pôde ouvir o som agónico, como um estertor, que saiu
da boca do varão no instante da crise, e menos ainda o levíssimo gemido que a
mulher não foi capaz de reprimir. Apenas um minuto, ou nem tanto, repousou José
sobre o corpo de Maria. Enquanto ela puxava para baixo a túnica e se cobria com
o lençol, tapando depois a cara com o antebraço, ele, de pé no meio da casa, de
mãos levantadas, olhando o tecto, pronunciou aquela sobre todas terrível
bênção, aos homens reservada, Louvado sejas tu, Senhor, nosso Deus, rei do
universo, por não me teres feito mulher. Ora, a estas alturas, Deus já nem no
pátio devia estar, pois não tremeram as paredes da casa, não desabaram, nem a
terra se abriu. Apenas, pela primeira vez, se ouviu Maria, e humildemente
dizia, como de mulheres se espera que seja sempre a voz, Louvado sejas tu, Senhor,
que me fizeste conforme a tua vontade, ora, entre estas palavras e as outras,
conhecidas e aclamadas, não há diferença nenhuma, repare-se, Eis a escrava do
Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra, está patente que quem disse isto
podia, afinal, ter dito aquilo. Depois, a mulher do carpinteiro José
levantou-se da esteira, enrolou-a juntamente com a do marido e dobrou o lençol
comum.
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