Foi na passagem dos dias do mês de Tamuz para o mês
de Av, quando se colhiam as uvas nos vinhedos e os primeiros figos maduros
começavam a pintar entre a sombra verde das ásperas parras, que estes
acontecimentos se deram, uns correntes e habituais, como ter-se chegado
carnalmente um homem a sua mulher e passado o tempo dizer-lhe ela a ele, Estou
grávida de ti, outros em verdade extraordinários, como caberem as primícias do
anúncio a um mendigo em trânsito que, com toda a razoabilidade, nada deveria
ter com o caso, sendo apenas autor do até agora inexplicado prodígio da terra
luminosa, posta fora de alcance e investigação pela desconfiança de José e a
prudência dos anciãos. Vão chegar aí os grandes calores, os campos estão
pelados, só restolho e secura, Nazaré é uma aldeia parda rodeada de silêncio e
solidão nas sufocantes horas do dia, à espera de que venha a noite estrelada
para poder ouvir-se o respirar da paisagem oculta pela escuridão e a música que
fazem as esferas celestes ao deslizarem umas sobre as outras. Depois da ceia,
José ia sentar-se no pátio, do lado direito da porta, a tomar ar, gostava de
sentir soprar-lhe na cara e nas barbas a primeira aragem refrescante do
crepúsculo. Quando já se pusera de todo escuro, Maria vinha também e sentava-se
no chão, como o marido, mas do outro lado da porta, e ali ficavam os dois, sem
falar, ouvindo os rumores da casa dos vizinhos, a vida das famílias, que eles
ainda não eram, faltando os filhos, Praza ao Senhor que seja um rapaz, pensava
José algumas vezes ao longo do dia, e Maria pensava, Praza ao Senhor que seja
um rapaz, mas as razões por que o pensava não eram as mesmas. A barriga de
Maria crescia sem pressa, tiveram de passar-se semanas e meses antes que se
percebesse às claras o seu estado, e, não sendo ela de dar-se muito com as
vizinhas, por tão modesta e discreta ser, a surpresa foi geral nas redondezas,
como se ela tivesse aparecido de balão da noite para o dia. Porventura o
silêncio de Maria tinha outra e mais secreta razão, a de que nunca, por nunca
ser, pudesse vir a estabelecer-se uma relação entre a sua gravidez e a passagem
do mendigo misterioso, precaução esta que só deveria parecer-nos absurda,
sabendo como as coisas se passaram, se não se desse o caso de, em horas de
afrouxamento do corpo e livre devaneio do espírito, ter Maria chegado a
perguntar-se, mas porquê, Deus Santo, ao mesmo tempo aterrada pela insensatez
da dúvida e alterada por um estremecimento íntimo, sobre quem seria, real e
verdadeiro, o pai da criança que dentro de si se está formando. É sabido que as
mulheres, quando no seu estado interessante, são atreitas a entojos e
fantasias, às vezes bem piores do que esta, que manteremos em segredo para que
não caia mancha na boa fama da futura mãe.
O tempo foi passando, um lento mês seguindo-se a
outro, o de Elul, ardente como uma fornalha, com o vento dos desertos do sul
varrendo e queimando os ares, época em que as tâmaras e os figos se tornam em
pingos de mel, o de Tishri, quando as primeiras chuvas do outono amaciam a
terra e chamam os arados à lavra para as semeaduras, e foi no mês seguinte, o
de Marhesvan, tempo da apanha da azeitona, que finalmente, arrefecendo já os
dias, José se resolveu a carpinteirar um rústico catre, que para cama digna
desse nome já sabemos que não lhe chega a ciência, onde Maria, depois de
esperar tanto, pôde descansar o pesado e incomodo ventre. Nos últimos dias do
mês de Quislau e quase todo o mês de Tavet caíram as grandes chuvas, por isso
teve José de interromper o trabalho no pátio, apenas aproveitava as breves
abertas em se tratando de peças de grande tamanho, o mais comum era estar
dentro de casa, a jeito de receber a claridade que vinha da porta, e aí raspava
e alisava os jugos que deixara em tosco, cobrindo o chão à sua volta de aparas
e serradura que Maria depois vinha varrer e lançar ao pátio.
No mês de Shevat floriram as amendoeiras, e
entrara-se já no mês de Adar, depois das festas do Purim, quando apareceram em
Nazaré uns soldados romanos, dos que então andavam por Galileia, de povoado em
cidade, de cidade em povoado, e outros pelas mais partes do reino de Herodes,
fazendo saber às populações que, por ordem de César Augusto, todas as famílias
que tivessem o seu domicílio nas províncias governadas pelo cônsul Públio
Sulpício Quirino estavam obrigadas a recensear-se e que o recenseamento, destinado,
como outros, a pôr em dia o cadastro dos contribuintes de Roma, teria de ser
feito, sem excepção, nos lugares donde essas famílias fossem originárias. À
maior parte da gente que se tinha juntado na praça para ouvir o pregão, de
pouco se lhe dava o aviso imperial, pois que, sendo naturais de Nazaré e lá
fixados desde gerações, aqui mesmo se recenseariam. Porém, alguns, que tinham
vindo das distintas regiões do reino, de Gaulanitide ou Samaria, de Judeia,
Pereia ou Idumeia, de aquém e de além, de perto e de longe, logo começaram a
deitar contas à vida e à viagem, uns com os outros murmurando contra os
caprichos e a cobiça de Roma, e falando do transtorno que ia ser a falta de
braços, agora que chegava o tempo de ceifar o linho e a cevada. E os que tinham
famílias numerosas, com filhos na primeira idade ou pais e avós caducos, se não
tinham transporte próprio bastante, pensavam já a quem poderiam pedir
emprestado ou alugar por preço justo o burro ou os burros necessários,
sobretudo se a viagem ia ser longa e trabalhosa, com mantimentos suficientes
para o caminho, odres de água se tinham de atravessar o deserto, esteiras e
mantas para dormir, vasilhas para a comida, algum abrigo suplementar, pois as
chuvas e o frio ainda não se foram de todo e alguma vez será preciso dormir ao
ar livre.
José veio a saber do édito mais tarde, quando já os
soldados tinham partido a levar a boa nova a outras paragens, foi um vizinho da
casa ao lado, Ananias chamado, quem apareceu em alvoroço a dar-lhe a notícia.
Este era dos que não tinham de ir de Nazaré ao recenseamento, de boa se
livrara, e porque, havendo decidido que, por causa das colheitas, este ano não
iria a Jerusalém, à celebração da Páscoa, se de uma viagem se tinha
desobrigado, outra não o obrigava. Vai pois Ananias informar o seu vizinho,
como é de dever, e vai contente, embora pareça que exagere algum tanto na
expressão do rosto as demonstrações desse sentimento, queira Deus não seja por
ser portador duma notícia desagradável, que mesmo as melhores pessoas estão sujeitas
às piores contradições, e a este Ananias não o conhecemos bastante para saber
se, neste caso, se trata de reincidência num comportamento habitual ou acontece
por tentação maligna de um anjo de Satã que na altura não tivesse nada mais
importante que fazer. E foi assim que veio Ananias bater à cancela e chamou
José, que primeiro não ouviu por estar manejando ruidosamente martelo e pregos.
Maria, sim, tinha um ouvido mais fino, mas era ao marido que reclamavam, como
iria ela puxar-lhe pela manga da túnica e dizer, Estás surdo, não ouves que te
estão a chamar. Gritou mais alto Ananias, e então suspendeu-se o bate-que-bate,
e veio José saber o que lhe queria o vizinho. Entrou Ananias, e tendo
despachado as saudações, perguntou, em tom de quem quer certificar-se, Tu donde
és, José, e José, sem saber que era o que lhe queriam, respondeu, Sou de Belém
de Judeia, Que está perto de Jerusalém, Sim, bem perto, E vais a Jerusalém a
celebrar a Páscoa, Tais, perguntou Ananias, e José respondeu, Não, este ano
resolvi não ir, que está minha mulher no fim do tempo, Ah, E tu, por que queres
sabê-lo. Foi aí que Ananias alçou os braços ao céu, ao mesmo tempo que punha
uma cara de lástima inconsolável, Ai coitado de ti, que trabalhos te esperam,
que canseira, que fadiga imerecida, aqui entregue aos deveres do teu ofício e
agora vais ter de largar tudo e ir por esses caminhos, e tão longe, louvado
seja o Senhor que tudo reconhece e remedeia. Não quis José ficar atrás em
demonstrações de piedade, e, sem indagar ainda das causas da lamúria do
vizinho, disse, O Senhor, querendo, me remediará a mim também, e Ananias, sem
baixar a voz, Sim, ao Senhor nada é impossível, tudo conhece e tudo alcança,
assim na terra como nos céus, louvado seja Ele por toda a eternidade, mas neste
caso de agora, que Ele me perdoe, não sei se te poderá valer, que estás em
poder de César, Que queres dizer, Que aí vieram uns soldados romanos passando
aviso de que até ao último dia do mês de Nisan todas as famílias de Israel
terão de ir recensear-se aos seus lugares de origem, e tu, coitado, que és lá
de tão longe.
Ora, antes que José tivesse tempo de responder,
entrou no pátio a mulher de Ananias, que ela se chamava Chua, e, indo direita a
Maria, expectante na soleira da porta, carpiu como o marido, Ai pobre, pobre,
ai delicada, que será de ti, tão perto de dares à luz, e terás de ir não sei
aonde, A Belém de Judeia, informou o marido, Ui, que longe isso está, exclamou
Chua, e não era um falar por falar, pois em uma das vezes que fora em
peregrinação a Jerusalém descera até Belém, ali ao lado, para orar diante do
túmulo de Raquel. Maria não respondeu, esperava que falasse antes o marido, mas
José estava enfadado, uma notícia de tal importância deveria ter sido
comunicada por ele, à mulher, em primeira mão, usando as palavras adequadas e
sobretudo o tom justo, não desta maneira descabelada, os vizinhos a
entrarem-lhe pela casa dentro, aos gritos. Para disfarçar a contrariedade deu
ao rosto uma expressão de composta sisudez e disse, É certo que Deus nem sempre
quer poder o que pode César, mas César nada pode onde só Deus pode. Fez uma
pausa, como se necessitasse penetrar-se do sentido profundo das palavras que
pronunciara, e acrescentou, Celebrarei a Páscoa em casa, como já tinha
decidido, e irei a Belém, uma vez que assim terá de ser, e se o Senhor o
permite estaremos de volta a tempo de Maria dar à luz em casa, mas se, pelo
contrário, o não quiser o Senhor, então o meu filho nascerá na terra dos seus
antepassados, Se não tiver de nascer no caminho, murmurou Chua, porém não tão
baixo que a não ouvisse José, que disse, Muitos foram os filhos de Israel que
nasceram no caminho, o meu será mais um. A sentença era de peso, irrefutável, e
como tal a receberam Ananias e a mulher, de repente sem palavras. Tinham ido
ali para confortar os vizinhos pela contrariedade duma viagem forçada e
comprazer-se na sua própria bondade, e agora parecia-lhes que estavam sendo
postos na rua, sem cerimónia, foi nesta altura que Maria veio para Chua e lhe
disse que entrasse na casa, que queria pedir-lhe conselho sobre uma lã que ali
tinha para cardar, e José, querendo emendar a secura com que havia falado,
disse a Ananias, Peço-te, como bom vizinho, que durante a minha ausência veles
pela minha casa, que mesmo correndo tudo pelo melhor nunca estarei de volta
antes de passado um mês, contando o tempo da viagem, mais os sete dias de
isolamento da mulher, ou o que em cima disso tiver de ser se lhe vem a nascer
uma filha, que não o permita o Senhor. Respondeu Ananias que sim, ficasse ele
descansado, que da casa lhe cuidaria como se sua própria fosse, e perguntou,
veio-lhe de repente, não o tinha pensado antes, Quererás tu, José, honrar-me
com a tua presença na celebração da Páscoa, reunindo-te aos meus parentes e
amigos, pois que não tens família em Nazaré, nem tua mulher a tem também,
depois que lhe morreram os pais, tão avançados já em idade quando ela nasceu
que ainda hoje as pessoas se andam perguntando como foi possível a Joaquim
engendrar em Ana uma filha. Disse José, risonhamente repreensivo, Ó Ananias,
lembra-te daquela murmuração de Abraão, entre a boca e as barbas, incrédulo,
quando o Senhor lhe anunciou que lhe daria descendência, se poderia uma criança
nascer de um homem de cem anos e se uma mulher de noventa anos seria capaz de
ter filhos, ora Joaquim e Ana não estavam em tão provecta idade quanto a de
Abraão e Sara em aqueles dias, portanto muito mais fácil terá sido a Deus, mas
para Ele não há impossíveis, suscitar entre os meus sogros uma vergôntea. Disse
o vizinho, Eram outros os tempos, o Senhor manifestava-se em presença todos os
dias, não apenas nas suas obras, e José respondeu, forte em razões de doutrina,
Deus é o próprio tempo, vizinho Ananias, para Deus o tempo é todo um, e Ananias
ficou sem saber que resposta dar, não era agora a altura de trazer ao colóquio
a controversa e nunca resolvida polêmica acerca dos poderes, tanto os
consubstanciais como os delegados, de Deus e de César. Ao contrário do que
estariam fazendo parecer estes alardes de teológica prática, José não esquecera
o inesperado convite de Ananias para celebrar com ele e os seus a Páscoa,
apenas não quisera demonstrar demasiada pressa em aceitar, como logo havia
resolvido, bem se sabe que é mostra de cortesia e bom nascimento receber com
gratidão os favores que nos fazem, porém sem exageros de contentamento, não vá
dar-se o caso de pensar o outro que ficamos à espera de mais. Enfim, agora lho
agradecia, louvando-lhe os sentimentos de generosidade e boa vizinhança, ao
tempo que vinha saindo Chua da casa, e trazia consigo Maria, a quem dizia, Que
boa mão tens para cardar, mulher, e Maria corava muito, como uma donzela,
porque a estavam louvando diante do marido.
Uma boa recordação que Maria veio a guardar desta
Páscoa tão prometedora foi não ter tido que participar na preparação das
comidas e terem-na dispensado de servir os homens. Foi poupada a esses
trabalhos pela solidariedade das outras mulheres, Não te canses, que mal podes
contigo, foi o que lhe disseram, e deviam sabê-lo bem, que quase todas eram
mães de filhos. Limitou-se, ou pouco mais, a atender ao seu marido, que ali
estava, sentado no chão como os outros homens, curvando-se finalmente para
encher-lhe o copo ou renovar-lhe no prato as rústicas iguarias, o pão ázimo, a
febra de cordeiro, as ervas amargas, e também umas certas bolachas feitas de
moinha de gafanhotos secos, petisco que Ananias prezava muito por ser de
tradição na sua família, mas a que alguns dos convidados torciam o nariz, se
bem que envergonhados da mal disfarçada repugância, pois em seu íntimo se
reconheciam indignos do exemplo edificante de quantos profetas, no deserto,
haviam feito da necessidade virtude e do gafanhoto maná. Para o fim da ceia, já
a pobre Maria se havia sentado à parte, com o seu grande ventre pousado sobre a
raiz das coxas, banhada em suor, mal ouvindo os risos, os ditos e as histórias,
e as contínuas recitações das escrituras, sentindo-se, a cada momento, prestes
a abandonar definitivamente o mundo, como se estivesse suspensa de um delgado
fio que fosse o seu último pensamento, um puro pensar sem objecto nem palavras,
apenas saber que se está pensando e não poder saber em quê e para que fim.
Despertou em sobressalto, porque no sono, subitamente, vindo duma treva maior,
lhe apareceu o rosto do mendigo, e de pois aquele seu grande corpo coberto de
farrapos, o anjo, se anjo era, entrara no sonho sem se anunciar, nem sequer por
uma fortuita lembrança, e ali estava a olhá-la, com um ar absorto, talvez
também uma levíssima expressão de interrogativa curiosidade, ou nem mesmo isso,
que o tempo de notá-lo viera e passara, e agora o coração de Maria palpitava
como uma ave assustada, e ela não sabia se tivera medo ou se alguém lhe dissera
ao ouvido uma inesperada e embaraçosa palavra. Os homens e os rapazes
continuavam ali, sentados no chão, e as mulheres, afogueadas, iam e vinham,
oferecendo os últimos alimentos, mas já se notavam os sinais da saciedade, só o
ruído das conversas, animadas pelo vinho, é que subira de tom.
Maria levantou-se e ninguém reparou nela. A noite
fechara-se por completo, a luz das estrelas, no céu limpo e sem lua, parecia
produzir uma espécie de ressonância, um zumbido que raiava as fronteiras do
inaudível, mas que a mulher de José podia sentir na pele, e também nos ossos,
de um modo que não saberia explicar, como uma suave e voluptuosa convulsão que
não acabasse de resolver-se. Maria atravessou o pátio e foi olhar para fora. Não
viu ninguém. A cancela da sua casa, ao lado, estava cerrada, tal qual a tinha
deixado, mas o ar movia-se como se alguém tivesse acabado de passar por ali, a
correr, ou voando, para não deixar da sua passagem mais do que um fugaz sinal,
que outros não saberiam entender.
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