quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo V)



Passados que foram três dias, tendo chegado a acordo com os clientes que lhe haviam encomendado obras que teriam de esperar o seu regresso, feitas as despedidas na sinagoga e confiada a casa e os bens visíveis nela existentes aos cuidados do vizinho Ananias, partiu de Nazaré o carpinteiro José com sua mulher, caminho de Belém, aonde vai para recensear-se, e a ela também, em conformidade com os decretos que de Roma vieram. Se, por um atraso nas comunicações ou enguiço da tradução simultânea, ainda não chegou ao céu notícia de tais ordens, muito admirado deverá estar o Senhor Deus, ao ver tão radicalmente mudada a paisagem de Israel, com magotes de gente a viajarem em todas as direcções, quando o próprio e o natural, nestes dias logo a seguir à Páscoa, seria deslocarem-se as pessoas, salvo justificadas excepções, de um modo por assim dizer centrífugo, tomando o caminho de casa a partir de um único ponto central, sol terrestre ou umbigo luminoso, de Jerusalém falamos, claro está. Sem dúvida, a força do costume, ainda que falível, e a perspicácia divina, essa absoluta, tornarão fácil o reconhecimento e identificação, mesmo de tão alto, do lento avanço que mostra o regresso dos peregrinos às suas cidades e aldeias, mas o que, ainda assim, não pode deixar de confundir a vista é o cruzar dessas rotas, conhecidas, com outras que parecem traçadas à aventura e que são, nem mais nem menos, os itinerários daqueles que, tendo ou não celebrado em Jerusalém a Páscoa do Senhor, obedecem agora às profanas ordens de César, embora não devesse ser muito custoso sustentar uma tese diferente, a de ser César Augusto quem, sem o saber, está afinal obedecendo à vontade do Senhor, se é verdade ter Deus decidido, por razões que só ele conhece, que José e sua mulher estariam fadados, nesta altura da vida, a ir a Belém. Extemporâneas e fora de propósito à primeira vista, estas considerações devem ser recebidas como pertinentíssimas, tendo em conta que é graças a elas que nos será possível chegar à informação objectiva daquilo que a alguns espíritos tanto agradaria encontrar aqui, por exemplo, imaginar os nossos viajantes, sozinhos, atravessando aquelas paragens inóspitas, aqueles descampados inquietantes, sem vivalma próxima e fraterna, apenas confiados à misericórdia de Deus e ao amparo dos anjos. Ora, logo à saída de Nazaré se pôde ver que não vai ser assim, pois com José e Maria viajarão duas outras famílias, das numerosas, ao todo, entre velhos, crescidos e crianças, cerca de vinte pessoas, quase uma tribo. Certo é que não se dirigem a Belém, uma delas ficará a meio caminho, numa povoação perto de Ramalá, e a outra continuará muito para o sul, até Bercheva, porém, mesmo que hajam de separar-se antes, por irem mais depressa uns do que outros, hipótese sempre provável, sempre estarão a descer à estrada novos viajantes, sem contar com os que hão-de vir andando em sentido contrário, talvez, quem sabe, a recensear-se em Nazaré, donde agora estes estão saindo. Os homens caminham à frente, num grupo só, e com eles vão os rapazes que já fizeram treze anos, ao passo que as mulheres, as meninas e as velhas, de todas as idades, formam outro confuso grupo lá atrás, acompanhadas pelos garotos pequenos. No momento em que iam pôr o pé na estrada, os homens, em coro solene, altearam a voz para proferir as bênçãos próprias da circunstância, repetindo-as as mulheres discretamente, quase em surdina, como quem aprendeu que não ganha nada em clamar quem de ser ouvido poucas esperanças tenha, mesmo quando não pediu nem pedirá, e tudo esteja louvando.
Entre as mulheres, a única que vai grávida neste estado de adiantamento é Maria, e as suas dificuldades são tais que se não fosse ter a Providência dotado os burros que criou de uma paciência infinita e não menor fortaleza, poucos passos seriam andados e já esta outra pobre criatura teria rendido o ânimo, rogando que ali a deixassem ficar, na berma da estrada, à espera da sua hora, que sabemos está para breve, a ver onde e quando, porém isto não é gente afeiçoada ao gosto das apostas, neste caso acertar em quando e onde nascerá o filho de José, sensata religião é esta que proibiu o azar. Enquanto não chega o momento, e por todo o tempo que ainda tiver de padecer a espera, a grávida poderá contar, mais do que com as poucas e distraídas atenções do seu marido, entretido como irá na conversa dos homens, poderá contar, dizíamos, com a provada mansidão e os dóceis lombos do animal, que vai estranhando, ele próprio, se mudanças de vida e de carga podem chegar ao entendimento de um burro, a falta dos golpes de chibata, e sobretudo que lhe esteja sendo consentido caminhar sem pressas, pelo seu passo natural, seu e dos seus semelhantes, que alguns como ele vão na jornada. Por causa desta diferença, atrasa-se às vezes o grupo das mulheres, e, quando tal acontece, os homens, lá adiante, fazem uma paragem e ficam à espera de que elas se aproximem, porém não tanto que cheguem a reunir-se umas e outros, estes vão mesmo ao ponto de fingir que pararam somente para descansar, não há dúvida de que a estrada a todos serve, mas já se sabe que onde cantarem galos não hão-de as galinhas piar, quando muito cacarejem se puseram ovo, assim o tem imposto e proclamado a boa ordenação do mundo em que nos calhou viver. Vai pois Maria embalada na suave andadura do seu corcel, rainha entre as mulheres, que só ela vai montada, a restante burricada transporta carga geral. E, para que não sejam tudo sacrifícios, leva ao colo, ora uma, ora outra, três crianças do rancho, com o que vão folgando as mães respectivas e ela começa a habituar-se ao carrego que a espera.
Neste primeiro dia de viagem, porque as pernas ainda não estavam feitas ao caminho, a etapa não foi extremadamente longa, é preciso não esquecer que vão à mesma companhia velhos e meninos pequenos, uns que, tendo vivido, gastaram todas as suas forças e agora não podem mais fingir que as têm, outros que, por não saberem governar as que começam a ter, as esgotam em duas horas de carreiras desatinadas, como se o mundo estivesse para acabar e valesse a pena aproveitar os últimos instantes dele. Fizeram alto numa aldeia grande, chamada Isreel, onde havia um caravançarai, o qual, por serem estes dias, como dissemos, de intenso tráfego, foram encontrar numa confusão e num alarido que parecia de doidos, embora, a falar verdade, fosse o alarido maior que a confusão, porquanto, ao cabo de algum tempo, habituados vista e ouvido, podia-se pressentir, primeiro, e logo reconhecer, naquele adjunto de gente e de animais em constante movimento dentro dos quatro muros, uma vontade de ordem não organizada nem consciente, tal um formigueiro assustado que buscasse reconhecer-se e recompor-se em meio da sua própria dispersão. Ainda assim, tiveram as três famílias a sorte de poder acolher-se ao abrigo de um arco, arrumando-se os homens a um lado e as mulheres a outro, mas isto foi mais tarde, quando a noite de todo se fechou e o caravançarai, animais e pessoas, se entregou ao sono. Antes tiveram as mulheres que preparar a comida e encher os odres no poço, enquanto os homens descarregavam os burros e os levavam a beber, mas numa ocasião em que não houvesse camelos no bebedouro, porque estes, em não mais que dois brutos sorvos, punham a caleira da água a seco, e era preciso voltar a enchê-la vezes sem conta antes que se dessem por satisfeitos. Ao cabo, postos primeiramente os burros à manjedoura, sentaram-se os viajantes a comer, principiando pelos homens, que as mulheres já sabemos que em tudo são secundárias, basta lembrar uma vez mais, e não será a última, que Eva foi criada depois de Adão e de uma sua costela, quando será que aprenderemos que há certas coisas que só começaremos a perceber quando nos dispusermos a remontar às fontes.
Ora, depois de os homens terem comido, e enquanto as mulheres, lá no seu canto, se alimentavam com o que tinha sobejado, aconteceu que um ancião entre os anciãos, que vivendo em Belém ia recensear-se a Ramalá e se chamava Simeão, usando da autoridade que lhe conferia a idade, e da sabedoria que se acredita ser seu directo efeito, interpelou José sobre como pensava ele que deveria proceder-se se viesse a verificar-se a hipótese, obviamente possível, de Maria, porém não lhe pronunciou o nome, não vir a dar à luz antes do último dia do prazo imposto para o recenseamento. Tratava-se, evidentemente, duma questão académica, se tal palavra é adequada ao tempo e ao lugar, porquanto só aos recenseadores, instruídos nas subtilezas processuais da lei romana, caberia decidir sobre casos tão altamente duvidosos, como este de apresentar-se uma mulher de barriga cheia ao recenseamento, Vimos inscrever-nos, e não ser possível averiguar, in loco, se traz dentro varão ou fêmea, isto sem falar da não desdenhável probabilidade duma ninhada de gêmeos do mesmo ou de ambos os sexos. Como perfeito judeu que se prezava de ser, tanto na teoria como na prática, jamais o carpinteiro pensaria em responder, usando da simples lógica ocidental, que não é àquele que tem de suportar a lei que competirá suprir as falhas que nela forem encontradas, e que se Roma não foi capaz de prever estas e outras hipóteses, então é porque está mal servida de legisladores e hermeneutas. Colocado, portanto, perante a difícil questão, José demorou-se a pensar, buscando na sua cabeça o modo mais subtil de dar-lhe resposta, uma resposta que, demonstrando à assembleia reunida à volta do lume os seus dotes de argumentador, fosse, ao mesmo tempo, formalmente brilhante. Finda a aturada reflexão, e levantando devagar os olhos que, por todo o tempo dela, mantivera fitos nas ondulantes chamas da fogueira, disse o carpinteiro, Se, chegado o último dia do recenseamento, o meu filho não for ainda nascido, será porque o Senhor não quer que os romanos saibam dele e o ponham nas suas listas. Disse Simeão, Forte presunção a tua, que assim te arrogas a ciência do que o Senhor quer ou não quer. Disse José, Deus conhece todos os meus caminhos e conta todos os meus passos, e estas palavras do carpinteiro, que podemos encontrar no Livro de Job, significavam, no contexto da discussão, que ali, diante dos presentes e sem exclusão dos ausentes, José reconhecia e protestava a sua obediência ao Senhor, e humildade, sentimentos, qualquer deles, contrários à pretensão diabólica, insinuada por Simeão, de aspirar a devassar os quereres enigmáticos de Deus. Assim o devia ter entendido o ancião, pois deixou-se ficar calado e à espera, do que se aproveitou José para voltar à carga, O dia do nascimento e o dia da morte de cada homem estão selados e sob a guarda dos anjos desde o princípio do mundo, e é o Senhor, quando lhe apraz, que quebra primeiro um e depois o outro, muitas vezes ao mesmo tempo, com a sua mão direita e a sua mão esquerda, e há casos em que demora tanto a partir o selo da morte que chega a parecer que se esqueceu desse vivente. Fez uma pausa, hesitou um pouco, mas depois rematou, sorrindo com malícia, Queira Deus que esta conversa o não faça lembrar-se de ti. Riram-se os circunstantes, mas por trás da barba, porquanto era manifesto que o carpinteiro não soubera guardar, inteiro, o respeito que a um veterano se deve, mesmo quando a inteligência e a sensatez, por efeito da idade, já não abundem nos seus juízos. O velho Simeão fez um gesto de cólera, dando um repelão à túnica, e respondeu, Porventura terá Deus quebrado o selo do teu nascimento antes do tempo e ainda não devesses estar no mundo, se de maneira tão impertinente e presumida te comportas com os anciãos, que mais viveram e que em todas as coisas sabem mais do que tu. Disse José, Ó Simeão, perguntaste-me como se deveria proceder se o meu filho não tivesse nascido até ao último dia do recenseamento, e a resposta à pergunta não podia eu dar-ta porque não conheço a lei dos romanos, como tu, creio, também não a conheces, Não conheço, Então disse-te, Sei o que disseste, não te canses a repetir-mo, Foste tu quem começou por falar-me com palavras impróprias quando me perguntaste quem me julgava eu para pretender conhecer as vontades de Deus antes de elas se manifestarem, se eu depois te ofendi peço-te que me perdoes, mas a primeira ofensa veio de ti, lembra-te de que, sendo ancião, e por isso meu mestre, não podes ser tu a dar o exemplo da ofensa. Ao redor da fogueira houve um discreto murmúrio de aprovação, o carpinteiro José, claramente, levava o vencimento do debate, a ver agora como se sai Simeão, que resposta lhe dará. E eis como o fez, sem espírito nem imaginação, Por dever de respeito, não tinhas mais que responder à minha pergunta, e José disse, Se eu te respondesse como querias, logo teria ficado a descoberto a vanidade da questão, portanto terás de admitir, por muito que te custe, que foi sinal de maior respeito o que fiz, facilitando-te, mas tu não o quiseste entender, a oportunidade de discorreres sobre um tema que a todos interessaria, a saber, se quereria ou poderia o Senhor, alguma vez, esconder o seu povo dos olhos do inimigo, Agora estás falando do povo de Deus como se fosse o teu filho não nascido, Não ponhas na minha boca, ó Simeão, palavras que eu não disse e não direi, escuta o que é para ser compreendido duma maneira e o que é para ser compreendido doutra. A esta tirada já Simeão não respondeu, levantou-se da roda e foi sentar-se no canto mais escuro, acompanhado dos outros homens da família, obrigados pela solidariedade do sangue, mas no íntimo despeitados pela tristíssima figura que o patriarca fizera na justa verbal. Ali, entre a companhia, cobrindo o silêncio que se sucedeu aos rumores e murmúrios de quem se está acomodando para o repouso, tornou-se outra vez perceptível o surdo marulhar das conversas no caravançarai, cortadas por alguma exclamação mais sonora, pelos resfolgos e fungadelas dos animais, e, a espaços, pelo bramido áspero, grotesco, de um camelo picado do cio. Foi então que, todos juntos, concertando o ritmo da recitação, os viajantes de Nazaré, já sem cuidar da recente discórdia, entoaram em voz baixa, mas ruidosamente sendo tantos, a última e a mais longa de quantas bênçãos ao Senhor vão encaminhadas no decurso do dia, e que assim reza, Louvado sejas tu, Deus nosso, rei do universo, que fazes cair as ataduras do sono sobre os meus olhos e o torpor sobre as minhas pálpebras, e que às minhas pupilas não retiras a luz. Seja da tua vontade, Senhor meu Deus, que agora me deite em paz e amanhã possa acordar para uma vida feliz e pacífica, consente que me aplique no cumprimento dos teus preceitos e não me deixes acostumar a acto algum de transgressão. Não permitas que caia em poder do pecado, da tentação, nem da vergonha. Faz com que em mim tenham vencimento as boas inclinações, não deixes que tenham poder sobre mim as más. Livra-me das ruins inclinações e das doenças mortais, e que eu não seja perturbado por sonhos maus e más cogitações, não seja que eu sonhe com a Morte. Poucos minutos eram passados e já os mais justos, se não os mais cansados, dormiam, alguns sem nenhuma espiritualidade roncando, e os outros não tiveram de esperar muito, ali estavam, sem outro agasalho, na maior parte, que as próprias túnicas, só os velhos e os novinhos, frágeis uns e outros, gozavam do conforto duma dobra de lençol grosso ou duma escassa manta. Faltando-lhe o alimento, a fogueira esmorecia, apenas umas desmaiadas chamas dançavam ainda sobre a última acha recolhida no caminho para este útil fim. Debaixo do arco que abrigava o pessoal de Nazaré, todos dormiam. Todos, à excepção de Maria. Não podendo deitar-se por causa da desconformidade do ventre, que à vista mais parecia conter um gigante, reclinava-se nuns alforjes da equipagem, buscando amparo para os martirizados rins. Como os outros, escutara o debate entre José e o velho Simeão, e alegrara-se com a vitória do marido, como é obrigação de toda a mulher, mesmo em se tratando de pelejas incruentas, como esta foi. Mas já se lhe varrera da lembrança o que tinham discutido, ou a memória do debate se submergira nas sensações que por dentro do seu corpo iam e vinham, iguais às marés do oceano que nunca vira, mas de que alguma vez ouvira falar, fluindo e refluindo, entre o ansioso choque das ondas que eram o filho movendo-se, porém de um modo singular, como se, estando dentro dela, a quisesse levantar, em peso, nos seus ombros. Só os olhos de Maria estavam abertos, brilhando na penumbra, e continuaram a brilhar mesmo depois de o lume se apagar de todo, mas isto não é nenhuma admiração, sucede a todas as mães desde o princípio do mundo, contudo ficámos a sabê-lo definitivamente quando à mulher do carpinteiro José apareceu um anjo, que o era, segundo declaração do próprio, apesar de vir em figura de mendigo itinerante.
Também no caravançarai cantavam galos pelas frescas madrugadas, mas os viajantes, mercadores, almocreves, condutores de camelos, urgidos pelas obrigações, mal esperaram o primeiro canto, e muito cedo principiaram os preparativos da jornada, carregando as bestas com os teres e haveres próprios ou as mercadorias do negócio, e por este modo alevantando no campo um arruído que deixava a perder de vista, ou de ouvidos, para usar a palavra exacta, a algazarra da véspera. Quando estes se tiverem ido, o caravançarai passará algumas horas assaz tranquilas, como um lagarto pardo esparramado ao sol, pois vão ficar ali somente os hóspedes que decidiram descansar um dia inteiro, até que, aproximando-se o fim da tarde, comece a chegar o novo turno de caminheiros, uns mais sujos do que outros, mas todos fatigados, e contudo mantendo intactas e poderosas as cordas vocais, ainda mal vêm entrando e já estão gritando como possessos de mil diabos, salvo seja. Que a companhia de Nazaré vá daqui engrossada, não deve surpreender a ninguém, juntaram-se-lhe mais umas dez pessoas, muito enganado está quem haja imaginado esta terra um deserto, mormente em época tão festival, de recenseamento e Páscoa, consoante foi já explicado.
Entendera José, de si para consigo, que seria de seu dever fazer as pazes com o velho Simeão, não por achar que com a noite os seus argumentos tinham perdido força e razão, mas porque havia sido instruído no respeito dos mais velhos e em particular dos anciãos, que, coitados, tendo vivido uma longa vida, que agora se paga roubando-lhes o espírito e o entendimento, não poucas vezes se vêem desconsiderados pela malta nova. Aproximou-se pois dele e disse, em tom de comedimento, Venho pedir-te desculpa, se te pareci insolente e enfatuado ontem à noite, nunca foi minha intenção faltar-te ao respeito, mas sabes como são as coisas, palavra traz palavra, as boas puxam as más, e acabamos sempre por dizer mais do que queríamos. Simeão ouviu, ouviu, de cabeça baixa, e finalmente respondeu, Estás desculpado. Em troca do seu generoso movimento, era natural que José esperasse uma resposta mais benévola do teimoso velho, e, ainda com a esperança de ouvir palavras que cria merecer, caminhou ao lado dele durante um bom bocado de tempo e de caminho. Mas Simeão, com os olhos postos no pó da estrada, fazia de conta que não dava pela sua presença, até que o carpinteiro, justamente enfadado, esboçou o gesto de quem vai afastarse. Foi então que o velho, como se subitamente o tivesse abandonado o pensamento fixo que o ocupava, deu um passo rápido e deitou-lhe a mão à túnica, Espera, disse. Surpreendido, José virou-se para ele. Simeão parara e repetia, Espera. Foram passando os outros homens e agora estavam estes dois no meio do caminho, como em terra-de-ninguém, entre o grupo dos varões que se ia afastando e o bando das mulheres, lá atrás, cada vez mais perto. Por cima das cabeças podia-se ver o vulto de Maria, balouçandose ao compasso da andadura do burro. Tinham deixado o vale de Isreel. A estrada, ladeando penedias, vencia custosamente a primeira encosta, depois do que se embrenharia nas montanhas de Samaria, pelo lado do poente, ao longo dos espinhaços áridos por trás dos quais, descaindo para o Jordão e arrastando na direcção do sul a sua rasoira ardente, o deserto de Judeia queimava e requeimava a antiquíssima cicatriz duma terra que, havendo sido prometida a uns tantos, nunca viria a saber a quem entregar-se. Espera, disse Simeão, e o carpinteiro obedecera, agora inquieto, temeroso sem saber de quê. As mulheres já vinham perto. Então o velho recomeçou a andar, agarrando-se à túnica de José, como se as forças lhe estivessem fugindo, e disse, Ontem à noite, depois de me retirar para dormir, tive uma visão, Uma visão, Sim, mas não uma visão de ver coisas, como acontece, foi antes como se pudesse ver o que está por trás das palavras, aquelas que disseste, que se o teu filho ainda não tivesse nascido quando chegar o último dia do recenseamento, seria por não querer o Senhor que os romanos saibam dele e o ponham nas suas listas, Sim, eu disse isso, mas tu que viste, Não vi coisas, foi como se, de repente, tivesse a certeza de que seria melhor que os romanos não soubessem da existência do teu filho, que dele ninguém viesse a saber nunca, e que, se tem mesmo de vir a este mundo, ao menos que nele viva sem pena nem glória, como aqueles homens que além vão e essas mulheres que aí vêm, ignorado como qualquer de nós até à hora da sua morte e depois dela, Sendo o pai este nada que sou, um carpinteiro de Nazaré, esse viver que lhe desejas é o que o meu filho pode ter de mais certo, Não és o único a dispor da vida do teu filho, Sim, todo o poder está no Senhor Deus, ele é o que sabe, Assim foi sempre e assim o cremos, Mas fala-me do meu filho, que soubeste do meu filho, Nada, só aquelas mesmas tuas palavras que, num relâmpago, me pareceram conter outro sentido, como se olhando pela primeira vez um ovo tivesse a percepção do pinto que leva dentro, Deus quis o que fez e fez o que quis, é nas suas mãos que está o meu filho, eu nada posso, Em verdade, assim é, mas estes são ainda os dias em que Deus partilha com a mulher a posse da criança, Que depois, se for varão, será minha e de Deus, Ou só de Deus, Todos o somos, Nem todos, alguns há que estão divididos entre Deus e o Demônio, Como sabê-lo, Se a lei não tivesse feito calar as mulheres para todo o sempre, talvez elas, porque inventaram aquele primeiro pecado de que todos os mais nasceram, soubessem dizer-nos o que nos falta saber, Quê, Que partes divina e demoníaca as compõem, que espécie de humanidade transportam dentro de si, Não te compreendo, pareceu-me que estavas falando do meu filho, Não falava do teu filho, falava das mulheres e de como geram os seres que somos, se não será por vontade delas, se é que o sabem, que cada um de nós é este pouco e este muito, esta bondade e esta maldade, esta paz e esta guerra, revolta e mansidão.
José olhou para trás, vinha Maria no seu burro, com um rapazinho posto diante dela, montando escarranchado, à homem, e por um instante imaginou que era já o seu filho, e a Maria viu-a como se fosse a primeira vez, avançando na dianteira da tropa feminina entretanto engrossada. Ressoavam ainda nos seus ouvidos as estranhas palavras de Simeão, porém, custava-lhe a aceitar que uma mulher pudesse ter tanta importância assim, pelo menos esta sua nunca lhe havia dado sinal, medíocre que fosse, de valer mais do que o comum de todas. Ora, foi nesta altura, mas já então ia olhando em frente, que lhe veio à lembrança o caso do mendigo e da terra luminosa. Tremeu da cabeça aos pés, arrepiaram-se-lhe cabelo e carnes, e ainda mais quando, ao voltar-se outra vez para Maria, viu, com os seus olhos claramente visto, caminhando ao lado dela, um homem alto, tão alto que os seus ombros se viam por cima das cabeças das mulheres, e era, por estes sinais sim, o mendigo que nunca pudera ver. Tornou a olhar, e ele lá estava, presença insólita, incongruência total, sem nenhuma razão humana para encontrar-se ali, varão entre mulheres. ia José pedir a Simeão que olhasse também ele para trás, que lhe confirmasse estes impossíveis, mas o velho adiantara-se, dissera o que tinha que dizer e agora juntava-se aos homens da sua família, Ora, foi nesta altura, mas já então ia olhando em frente, que lhe veio à lembrança o caso do mendigo e da terra luminosa. Tremeu da cabeça aos pés, arrepiaram-se-lhe cabelo e carnes, e ainda mais quando, ao voltar-se outra vez para Maria, viu, com os seus olhos claramente visto, caminhando ao lado dela, um homem alto, tão alto que os seus ombros se viam por cima das cabeças das mulheres, e era, por estes sinais sim, o mendigo que nunca pudera ver. Tornou a olhar, e ele lá estava, presença insólita, incongruência total, sem nenhuma razão humana para encontrar-se ali, varão entre mulheres. ia José pedir a Simeão que olhasse também ele para trás, que lhe confirmasse estes impossíveis, mas o velho adiantara-se, dissera o que tinha que dizer e agora juntava-se aos homens da sua família, para retomar o simples papel do mais idoso, que é sempre o que menos tempo dura. Então, o carpinteiro, sem outra testemunha, tornou a olhar na direcção da mulher. O homem já lá não estava.

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