Passados que foram três dias, tendo chegado a acordo
com os clientes que lhe haviam encomendado obras que teriam de esperar o seu
regresso, feitas as despedidas na sinagoga e confiada a casa e os bens visíveis
nela existentes aos cuidados do vizinho Ananias, partiu de Nazaré o carpinteiro
José com sua mulher, caminho de Belém, aonde vai para recensear-se, e a ela também,
em conformidade com os decretos que de Roma vieram. Se, por um atraso nas
comunicações ou enguiço da tradução simultânea, ainda não chegou ao céu notícia
de tais ordens, muito admirado deverá estar o Senhor Deus, ao ver tão radicalmente
mudada a paisagem de Israel, com magotes de gente a viajarem em todas as direcções,
quando o próprio e o natural, nestes dias logo a seguir à Páscoa, seria deslocarem-se
as pessoas, salvo justificadas excepções, de um modo por assim dizer centrífugo,
tomando o caminho de casa a partir de um único ponto central, sol terrestre ou umbigo
luminoso, de Jerusalém falamos, claro está. Sem dúvida, a força do costume,
ainda que falível, e a perspicácia divina, essa absoluta, tornarão fácil o
reconhecimento e identificação, mesmo de tão alto, do lento avanço que mostra o
regresso dos peregrinos às suas cidades e aldeias, mas o que, ainda assim, não
pode deixar de confundir a vista é o cruzar dessas rotas, conhecidas, com
outras que parecem traçadas à aventura e que são, nem mais nem menos, os
itinerários daqueles que, tendo ou não celebrado em Jerusalém a Páscoa do
Senhor, obedecem agora às profanas ordens de César, embora não devesse ser muito
custoso sustentar uma tese diferente, a de ser César Augusto quem, sem o saber,
está afinal obedecendo à vontade do Senhor, se é verdade ter Deus decidido, por
razões que só ele conhece, que José e sua mulher estariam fadados, nesta altura
da vida, a ir a Belém. Extemporâneas e fora de propósito à primeira vista,
estas considerações devem ser recebidas como pertinentíssimas, tendo em conta
que é graças a elas que nos será possível chegar à informação objectiva daquilo
que a alguns espíritos tanto agradaria encontrar aqui, por exemplo, imaginar os
nossos viajantes, sozinhos, atravessando aquelas paragens inóspitas, aqueles
descampados inquietantes, sem vivalma próxima e fraterna, apenas confiados à
misericórdia de Deus e ao amparo dos anjos. Ora, logo à saída de Nazaré se pôde
ver que não vai ser assim, pois com José e Maria viajarão duas outras famílias,
das numerosas, ao todo, entre velhos, crescidos e crianças, cerca de vinte
pessoas, quase uma tribo. Certo é que não se dirigem a Belém, uma delas ficará
a meio caminho, numa povoação perto de Ramalá, e a outra continuará muito para
o sul, até Bercheva, porém, mesmo que hajam de separar-se antes, por irem mais
depressa uns do que outros, hipótese sempre provável, sempre estarão a descer à
estrada novos viajantes, sem contar com os que hão-de vir andando em sentido
contrário, talvez, quem sabe, a recensear-se em Nazaré, donde agora estes estão
saindo. Os homens caminham à frente, num grupo só, e com eles vão os rapazes
que já fizeram treze anos, ao passo que as mulheres, as meninas e as velhas, de
todas as idades, formam outro confuso grupo lá atrás, acompanhadas pelos
garotos pequenos. No momento em que iam pôr o pé na estrada, os homens, em coro
solene, altearam a voz para proferir as bênçãos próprias da circunstância,
repetindo-as as mulheres discretamente, quase em surdina, como quem aprendeu que
não ganha nada em clamar quem de ser ouvido poucas esperanças tenha, mesmo
quando não pediu nem pedirá, e tudo esteja louvando.
Entre as mulheres, a única que vai grávida neste
estado de adiantamento é Maria, e as suas dificuldades são tais que se não fosse
ter a Providência dotado os burros que criou de uma paciência infinita e não
menor fortaleza, poucos passos seriam andados e já esta outra pobre criatura
teria rendido o ânimo, rogando que ali a deixassem ficar, na berma da estrada,
à espera da sua hora, que sabemos está para breve, a ver onde e quando, porém isto
não é gente afeiçoada ao gosto das apostas, neste caso acertar em quando e onde
nascerá o filho de José, sensata religião é esta que proibiu o azar. Enquanto
não chega o momento, e por todo o tempo que ainda tiver de padecer a espera, a
grávida poderá contar, mais do que com as poucas e distraídas atenções do seu
marido, entretido como irá na conversa dos homens, poderá contar, dizíamos, com
a provada mansidão e os dóceis lombos do animal, que vai estranhando, ele
próprio, se mudanças de vida e de carga podem chegar ao entendimento de um
burro, a falta dos golpes de chibata, e sobretudo que lhe esteja sendo
consentido caminhar sem pressas, pelo seu passo natural, seu e dos seus semelhantes,
que alguns como ele vão na jornada. Por causa desta diferença, atrasa-se às vezes
o grupo das mulheres, e, quando tal acontece, os homens, lá adiante, fazem uma paragem
e ficam à espera de que elas se aproximem, porém não tanto que cheguem a reunir-se
umas e outros, estes vão mesmo ao ponto de fingir que pararam somente para descansar,
não há dúvida de que a estrada a todos serve, mas já se sabe que onde cantarem galos
não hão-de as galinhas piar, quando muito cacarejem se puseram ovo, assim o tem
imposto e proclamado a boa ordenação do mundo em que nos calhou viver. Vai pois
Maria embalada na suave andadura do seu corcel, rainha entre as mulheres, que
só ela vai montada, a restante burricada transporta carga geral. E, para que
não sejam tudo sacrifícios, leva ao colo, ora uma, ora outra, três crianças do
rancho, com o que vão folgando as mães respectivas e ela começa a habituar-se
ao carrego que a espera.
Neste primeiro dia de viagem, porque as pernas ainda
não estavam feitas ao caminho, a etapa não foi extremadamente longa, é preciso
não esquecer que vão à mesma companhia velhos e meninos pequenos, uns que,
tendo vivido, gastaram todas as suas forças e agora não podem mais fingir que
as têm, outros que, por não saberem governar as que começam a ter, as esgotam em
duas horas de carreiras desatinadas, como se o mundo estivesse para acabar e
valesse a pena aproveitar os últimos instantes dele. Fizeram alto numa aldeia
grande, chamada Isreel, onde havia um caravançarai, o qual, por serem estes dias,
como dissemos, de intenso tráfego, foram encontrar numa confusão e num alarido que
parecia de doidos, embora, a falar verdade, fosse o alarido maior que a
confusão, porquanto, ao cabo de algum tempo, habituados vista e ouvido,
podia-se pressentir, primeiro, e logo reconhecer, naquele adjunto de gente e de
animais em constante movimento dentro dos quatro muros, uma vontade de ordem
não organizada nem consciente, tal um formigueiro assustado que buscasse
reconhecer-se e recompor-se em meio da sua própria dispersão. Ainda assim,
tiveram as três famílias a sorte de poder acolher-se ao abrigo de um arco,
arrumando-se os homens a um lado e as mulheres a outro, mas isto foi mais
tarde, quando a noite de todo se fechou e o caravançarai, animais e pessoas, se
entregou ao sono. Antes tiveram as mulheres que preparar a comida e encher os odres
no poço, enquanto os homens descarregavam os burros e os levavam a beber, mas numa
ocasião em que não houvesse camelos no bebedouro, porque estes, em não mais que
dois brutos sorvos, punham a caleira da água a seco, e era preciso voltar a
enchê-la vezes sem conta antes que se dessem por satisfeitos. Ao cabo, postos
primeiramente os burros à manjedoura, sentaram-se os viajantes a comer,
principiando pelos homens, que as mulheres já sabemos que em tudo são
secundárias, basta lembrar uma vez mais, e não será a última, que Eva foi
criada depois de Adão e de uma sua costela, quando será que aprenderemos que há
certas coisas que só começaremos a perceber quando nos dispusermos a remontar às
fontes.
Ora, depois de os homens terem comido, e enquanto as
mulheres, lá no seu canto, se alimentavam com o que tinha sobejado, aconteceu
que um ancião entre os anciãos, que vivendo em Belém ia recensear-se a Ramalá e
se chamava Simeão, usando da autoridade que lhe conferia a idade, e da
sabedoria que se acredita ser seu directo efeito, interpelou José sobre como
pensava ele que deveria proceder-se se viesse a verificar-se a hipótese, obviamente
possível, de Maria, porém não lhe pronunciou o nome, não vir a dar à luz antes do
último dia do prazo imposto para o recenseamento. Tratava-se, evidentemente,
duma questão académica, se tal palavra é adequada ao tempo e ao lugar,
porquanto só aos recenseadores, instruídos nas subtilezas processuais da lei
romana, caberia decidir sobre casos tão altamente duvidosos, como este de
apresentar-se uma mulher de barriga cheia ao recenseamento, Vimos
inscrever-nos, e não ser possível averiguar, in loco, se traz dentro varão ou
fêmea, isto sem falar da não desdenhável probabilidade duma ninhada de gêmeos do
mesmo ou de ambos os sexos. Como perfeito judeu que se prezava de ser, tanto na
teoria como na prática, jamais o carpinteiro pensaria em responder, usando da
simples lógica ocidental, que não é àquele que tem de suportar a lei que
competirá suprir as falhas que nela forem encontradas, e que se Roma não foi
capaz de prever estas e outras hipóteses, então é porque está mal servida de
legisladores e hermeneutas. Colocado, portanto, perante a difícil questão, José
demorou-se a pensar, buscando na sua cabeça o modo mais subtil de dar-lhe
resposta, uma resposta que, demonstrando à assembleia reunida à volta do lume
os seus dotes de argumentador, fosse, ao mesmo tempo, formalmente brilhante.
Finda a aturada reflexão, e levantando devagar os olhos que, por todo o tempo
dela, mantivera fitos nas ondulantes chamas da fogueira, disse o carpinteiro,
Se, chegado o último dia do recenseamento, o meu filho não for ainda nascido, será
porque o Senhor não quer que os romanos saibam dele e o ponham nas suas listas.
Disse Simeão, Forte presunção a tua, que assim te arrogas a ciência do que o
Senhor quer ou não quer. Disse José, Deus conhece todos os meus caminhos e
conta todos os meus passos, e estas palavras do carpinteiro, que podemos
encontrar no Livro de Job, significavam, no contexto da discussão, que ali,
diante dos presentes e sem exclusão dos ausentes, José reconhecia e protestava
a sua obediência ao Senhor, e humildade, sentimentos, qualquer deles,
contrários à pretensão diabólica, insinuada por Simeão, de aspirar a devassar
os quereres enigmáticos de Deus. Assim o devia ter entendido o ancião, pois
deixou-se ficar calado e à espera, do que se aproveitou José para voltar à
carga, O dia do nascimento e o dia da morte de cada homem estão selados e sob a
guarda dos anjos desde o princípio do mundo, e é o Senhor, quando lhe apraz,
que quebra primeiro um e depois o outro, muitas vezes ao mesmo tempo, com a sua
mão direita e a sua mão esquerda, e há casos em que demora tanto a partir o
selo da morte que chega a parecer que se esqueceu desse vivente. Fez uma pausa,
hesitou um pouco, mas depois rematou, sorrindo com malícia, Queira Deus que
esta conversa o não faça lembrar-se de ti. Riram-se os circunstantes, mas por
trás da barba, porquanto era manifesto que o carpinteiro não soubera guardar,
inteiro, o respeito que a um veterano se deve, mesmo quando a inteligência e a
sensatez, por efeito da idade, já não abundem nos seus juízos. O velho Simeão
fez um gesto de cólera, dando um repelão à túnica, e respondeu, Porventura terá
Deus quebrado o selo do teu nascimento antes do tempo e ainda não devesses
estar no mundo, se de maneira tão impertinente e presumida te comportas com os
anciãos, que mais viveram e que em todas as coisas sabem mais do que tu. Disse José,
Ó Simeão, perguntaste-me como se deveria proceder se o meu filho não tivesse
nascido até ao último dia do recenseamento, e a resposta à pergunta não podia
eu dar-ta porque não conheço a lei dos romanos, como tu, creio, também não a
conheces, Não conheço, Então disse-te, Sei o que disseste, não te canses a
repetir-mo, Foste tu quem começou por falar-me com palavras impróprias quando
me perguntaste quem me julgava eu para pretender conhecer as vontades de Deus
antes de elas se manifestarem, se eu depois te ofendi peço-te que me perdoes,
mas a primeira ofensa veio de ti, lembra-te de que, sendo ancião, e por isso
meu mestre, não podes ser tu a dar o exemplo da ofensa. Ao redor da fogueira
houve um discreto murmúrio de aprovação, o carpinteiro José, claramente, levava
o vencimento do debate, a ver agora como se sai Simeão, que resposta lhe dará.
E eis como o fez, sem espírito nem imaginação, Por dever de respeito, não
tinhas mais que responder à minha pergunta, e José disse, Se eu te respondesse
como querias, logo teria ficado a descoberto a vanidade da questão, portanto
terás de admitir, por muito que te custe, que foi sinal de maior respeito o que
fiz, facilitando-te, mas tu não o quiseste entender, a oportunidade de discorreres
sobre um tema que a todos interessaria, a saber, se quereria ou poderia o Senhor,
alguma vez, esconder o seu povo dos olhos do inimigo, Agora estás falando do povo
de Deus como se fosse o teu filho não nascido, Não ponhas na minha boca, ó Simeão,
palavras que eu não disse e não direi, escuta o que é para ser compreendido
duma maneira e o que é para ser compreendido doutra. A esta tirada já Simeão
não respondeu, levantou-se da roda e foi sentar-se no canto mais escuro,
acompanhado dos outros homens da família, obrigados pela solidariedade do sangue,
mas no íntimo despeitados pela tristíssima figura que o patriarca fizera na
justa verbal. Ali, entre a companhia, cobrindo o silêncio que se sucedeu aos
rumores e murmúrios de quem se está acomodando para o repouso, tornou-se outra
vez perceptível o surdo marulhar das conversas no caravançarai, cortadas por
alguma exclamação mais sonora, pelos resfolgos e fungadelas dos animais, e, a
espaços, pelo bramido áspero, grotesco, de um camelo picado do cio. Foi então
que, todos juntos, concertando o ritmo da recitação, os viajantes de Nazaré, já
sem cuidar da recente discórdia, entoaram em voz baixa, mas ruidosamente sendo
tantos, a última e a mais longa de quantas bênçãos ao Senhor vão encaminhadas
no decurso do dia, e que assim reza, Louvado sejas tu, Deus nosso, rei do
universo, que fazes cair as ataduras do sono sobre os meus olhos e o torpor sobre
as minhas pálpebras, e que às minhas pupilas não retiras a luz. Seja da tua
vontade, Senhor meu Deus, que agora me deite em paz e amanhã possa acordar para
uma vida feliz e pacífica, consente que me aplique no cumprimento dos teus
preceitos e não me deixes acostumar a acto algum de transgressão. Não permitas
que caia em poder do pecado, da tentação, nem da vergonha. Faz com que em mim
tenham vencimento as boas inclinações, não deixes que tenham poder sobre mim as
más. Livra-me das ruins inclinações e das doenças mortais, e que eu não seja
perturbado por sonhos maus e más cogitações, não seja que eu sonhe com a Morte.
Poucos minutos eram passados e já os mais justos, se não os mais cansados,
dormiam, alguns sem nenhuma espiritualidade roncando, e os outros não tiveram
de esperar muito, ali estavam, sem outro agasalho, na maior parte, que as
próprias túnicas, só os velhos e os novinhos, frágeis uns e outros, gozavam do
conforto duma dobra de lençol grosso ou duma escassa manta. Faltando-lhe o
alimento, a fogueira esmorecia, apenas umas desmaiadas chamas dançavam ainda
sobre a última acha recolhida no caminho para este útil fim. Debaixo do arco
que abrigava o pessoal de Nazaré, todos dormiam. Todos, à excepção de Maria.
Não podendo deitar-se por causa da desconformidade do ventre, que à vista mais
parecia conter um gigante, reclinava-se nuns alforjes da equipagem, buscando
amparo para os martirizados rins. Como os outros, escutara o debate entre José
e o velho Simeão, e alegrara-se com a vitória do marido, como é obrigação de
toda a mulher, mesmo em se tratando de pelejas incruentas, como esta foi. Mas
já se lhe varrera da lembrança o que tinham discutido, ou a memória do debate
se submergira nas sensações que por dentro do seu corpo iam e vinham, iguais às
marés do oceano que nunca vira, mas de que alguma vez ouvira falar, fluindo e
refluindo, entre o ansioso choque das ondas que eram o filho movendo-se, porém de
um modo singular, como se, estando dentro dela, a quisesse levantar, em peso,
nos seus ombros. Só os olhos de Maria estavam abertos, brilhando na penumbra, e
continuaram a brilhar mesmo depois de o lume se apagar de todo, mas isto não é
nenhuma admiração, sucede a todas as mães desde o princípio do mundo, contudo
ficámos a sabê-lo definitivamente quando à mulher do carpinteiro José apareceu
um anjo, que o era, segundo declaração do próprio, apesar de vir em figura de
mendigo itinerante.
Também no caravançarai cantavam galos pelas frescas
madrugadas, mas os viajantes, mercadores, almocreves, condutores de camelos,
urgidos pelas obrigações, mal esperaram o primeiro canto, e muito cedo
principiaram os preparativos da jornada, carregando as bestas com os teres e
haveres próprios ou as mercadorias do negócio, e por este modo alevantando no
campo um arruído que deixava a perder de vista, ou de ouvidos, para usar a palavra
exacta, a algazarra da véspera. Quando estes se tiverem ido, o caravançarai
passará algumas horas assaz tranquilas, como um lagarto pardo esparramado ao
sol, pois vão ficar ali somente os hóspedes que decidiram descansar um dia
inteiro, até que, aproximando-se o fim da tarde, comece a chegar o novo turno
de caminheiros, uns mais sujos do que outros, mas todos fatigados, e contudo
mantendo intactas e poderosas as cordas vocais, ainda mal vêm entrando e já
estão gritando como possessos de mil diabos, salvo seja. Que a companhia de
Nazaré vá daqui engrossada, não deve surpreender a ninguém, juntaram-se-lhe
mais umas dez pessoas, muito enganado está quem haja imaginado esta terra um deserto,
mormente em época tão festival, de recenseamento e Páscoa, consoante foi já explicado.
Entendera José, de si para consigo, que seria de seu
dever fazer as pazes com o velho Simeão, não por achar que com a noite os seus
argumentos tinham perdido força e razão, mas porque havia sido instruído no
respeito dos mais velhos e em particular dos anciãos, que, coitados, tendo
vivido uma longa vida, que agora se paga roubando-lhes o espírito e o entendimento,
não poucas vezes se vêem desconsiderados pela malta nova. Aproximou-se pois
dele e disse, em tom de comedimento, Venho pedir-te desculpa, se te pareci
insolente e enfatuado ontem à noite, nunca foi minha intenção faltar-te ao
respeito, mas sabes como são as coisas, palavra traz palavra, as boas puxam as
más, e acabamos sempre por dizer mais do que queríamos. Simeão ouviu, ouviu, de
cabeça baixa, e finalmente respondeu, Estás desculpado. Em troca do seu
generoso movimento, era natural que José esperasse uma resposta mais benévola
do teimoso velho, e, ainda com a esperança de ouvir palavras que cria merecer,
caminhou ao lado dele durante um bom bocado de tempo e de caminho. Mas Simeão,
com os olhos postos no pó da estrada, fazia de conta que não dava pela sua presença,
até que o carpinteiro, justamente enfadado, esboçou o gesto de quem vai
afastarse. Foi então que o velho, como se subitamente o tivesse abandonado o
pensamento fixo que o ocupava, deu um passo rápido e deitou-lhe a mão à túnica,
Espera, disse. Surpreendido, José virou-se para ele. Simeão parara e repetia,
Espera. Foram passando os outros homens e agora estavam estes dois no meio do
caminho, como em terra-de-ninguém, entre o grupo dos varões que se ia afastando
e o bando das mulheres, lá atrás, cada vez mais perto. Por cima das cabeças
podia-se ver o vulto de Maria, balouçandose ao compasso da andadura do burro.
Tinham deixado o vale de Isreel. A estrada, ladeando penedias, vencia
custosamente a primeira encosta, depois do que se embrenharia nas montanhas de
Samaria, pelo lado do poente, ao longo dos espinhaços áridos por trás dos
quais, descaindo para o Jordão e arrastando na direcção do sul a sua rasoira
ardente, o deserto de Judeia queimava e requeimava a antiquíssima cicatriz duma
terra que, havendo sido prometida a uns tantos, nunca viria a saber a quem
entregar-se. Espera, disse Simeão, e o carpinteiro obedecera, agora inquieto,
temeroso sem saber de quê. As mulheres já vinham perto. Então o velho recomeçou
a andar, agarrando-se à túnica de José, como se as forças lhe estivessem
fugindo, e disse, Ontem à noite, depois de me retirar para dormir, tive uma visão,
Uma visão, Sim, mas não uma visão de ver coisas, como acontece, foi antes como
se pudesse ver o que está por trás das palavras, aquelas que disseste, que se o
teu filho ainda não tivesse nascido quando chegar o último dia do
recenseamento, seria por não querer o Senhor que os romanos saibam dele e o
ponham nas suas listas, Sim, eu disse isso, mas tu que viste, Não vi coisas,
foi como se, de repente, tivesse a certeza de que seria melhor que os romanos
não soubessem da existência do teu filho, que dele ninguém viesse a saber nunca,
e que, se tem mesmo de vir a este mundo, ao menos que nele viva sem pena nem glória,
como aqueles homens que além vão e essas mulheres que aí vêm, ignorado como qualquer
de nós até à hora da sua morte e depois dela, Sendo o pai este nada que sou, um
carpinteiro de Nazaré, esse viver que lhe desejas é o que o meu filho pode ter
de mais certo, Não és o único a dispor da vida do teu filho, Sim, todo o poder
está no Senhor Deus, ele é o que sabe, Assim foi sempre e assim o cremos, Mas
fala-me do meu filho, que soubeste do meu filho, Nada, só aquelas mesmas tuas
palavras que, num relâmpago, me pareceram conter outro sentido, como se olhando
pela primeira vez um ovo tivesse a percepção do pinto que leva dentro, Deus
quis o que fez e fez o que quis, é nas suas mãos que está o meu filho, eu nada
posso, Em verdade, assim é, mas estes são ainda os dias em que Deus partilha
com a mulher a posse da criança, Que depois, se for varão, será minha e de
Deus, Ou só de Deus, Todos o somos, Nem todos, alguns há que estão divididos
entre Deus e o Demônio, Como sabê-lo, Se a lei não tivesse feito calar as
mulheres para todo o sempre, talvez elas, porque inventaram aquele primeiro
pecado de que todos os mais nasceram, soubessem dizer-nos o que nos falta
saber, Quê, Que partes divina e demoníaca as compõem, que espécie de humanidade
transportam dentro de si, Não te compreendo, pareceu-me que estavas falando do
meu filho, Não falava do teu filho, falava das mulheres e de como geram os
seres que somos, se não será por vontade delas, se é que o sabem, que cada um
de nós é este pouco e este muito, esta bondade e esta maldade, esta paz e esta guerra,
revolta e mansidão.
José olhou para trás, vinha Maria no seu burro, com
um rapazinho posto diante dela, montando escarranchado, à homem, e por um
instante imaginou que era já o seu filho, e a Maria viu-a como se fosse a
primeira vez, avançando na dianteira da tropa feminina entretanto engrossada.
Ressoavam ainda nos seus ouvidos as estranhas palavras de Simeão, porém,
custava-lhe a aceitar que uma mulher pudesse ter tanta importância assim, pelo
menos esta sua nunca lhe havia dado sinal, medíocre que fosse, de valer mais do
que o comum de todas. Ora, foi nesta altura, mas já então ia olhando em frente,
que lhe veio à lembrança o caso do mendigo e da terra luminosa. Tremeu da
cabeça aos pés, arrepiaram-se-lhe cabelo e carnes, e ainda mais quando, ao
voltar-se outra vez para Maria, viu, com os seus olhos claramente visto,
caminhando ao lado dela, um homem alto, tão alto que os seus ombros se viam por
cima das cabeças das mulheres, e era, por estes sinais sim, o mendigo que nunca
pudera ver. Tornou a olhar, e ele lá estava, presença insólita, incongruência
total, sem nenhuma razão humana para encontrar-se ali, varão entre mulheres. ia
José pedir a Simeão que olhasse também ele para trás, que lhe confirmasse estes
impossíveis, mas o velho adiantara-se, dissera o que tinha que dizer e agora
juntava-se aos homens da sua família, Ora, foi nesta altura, mas já então ia
olhando em frente, que lhe veio à lembrança o caso do mendigo e da terra
luminosa. Tremeu da cabeça aos pés, arrepiaram-se-lhe cabelo e carnes, e ainda
mais quando, ao voltar-se outra vez para Maria, viu, com os seus olhos claramente
visto, caminhando ao lado dela, um homem alto, tão alto que os seus ombros se viam
por cima das cabeças das mulheres, e era, por estes sinais sim, o mendigo que
nunca pudera ver. Tornou a olhar, e ele lá estava, presença insólita,
incongruência total, sem nenhuma razão humana para encontrar-se ali, varão
entre mulheres. ia José pedir a Simeão que olhasse também ele para trás, que lhe
confirmasse estes impossíveis, mas o velho adiantara-se, dissera o que tinha
que dizer e agora juntava-se aos homens da sua família, para retomar o simples
papel do mais idoso, que é sempre o que menos tempo dura. Então, o carpinteiro,
sem outra testemunha, tornou a olhar na direcção da mulher. O homem já lá não
estava.
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