sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo III)




Viviam José e Maria num lugarejo chamado Nazaré, terra de pouco e de poucos, na região de Galileia, em uma casa igual a quase todas, como um cubo torto feito de tijolos e barro, pobre entre pobres. Invenções de arte arquitectônica, nenhumas, apenas a banalidade uniforme de um modelo incansavelmente repetido. Com o propósito de poupar alguma coisa nos materiais, tinham-na construído na encosta da colina, apoiada ao declive, escavado pelo lado de dentro, deste modo se criando uma parede completa, a fundeira, com a vantagem adicional de ficar facilitado o acesso à açoteia que formava o tecto. Já sabemos ser José carpinteiro de ofício, regularmente hábil no mester, porém sem talento para perfeições sempre que lhe encomendem obra de mais finura. Estas insuficiências não deveriam escandalizar os impacientes, pois o tempo e a experiência, cada um com seu vagar, ainda não são bastantes para acrescentar, ao ponto de dar-se por isso no trabalho de todos os dias, o saber oficinal e a sensibilidade estética de um homem que mal passou dos vinte anos e vive em terra de tão escassos recursos e ainda menores necessidades. Contudo, não se devendo medir os méritos dos homens apenas pela bitola das suas competências profissionais, convém dizer que, apesar da sua pouca idade, é este José do mais piedoso e justo que em Nazaré se pode encontrar, exacto na sinagoga, pontual no cumprimento dos deveres, e não tendo sido a sua fortuna tanta que o tivesse dotado Deus duma facúndia capaz de o distinguir dos mortais comuns, sabe discorrer com propriedade e comentar com acerto, mormente se vem a propósito introduzir no discurso alguma imagem ou metáfora relacionadas com o seu ofício, por exemplo, a carpintaria do universo. Porém, porque lhe tivesse faltado na origem o golpe de asa duma imaginação verdadeiramente criadora, nunca na sua breve vida será capaz de produzir parábola que se recorde, dito que merecesse ter ficado na memória das gentes de Nazaré e ser legado aos vindouros, menos ainda um daqueles certeiros remates em que a exemplaridade da lição se percebe logo à transparência das palavras, tão luminosa que no futuro rejeitará qualquer intrometida glosa, ou, pelo contrário, suficientemente obscura, ou ambígua, para tornar-se nos dias de amanhã em prato favorito de eruditos e outros especialistas.
Sobre os dotes de Maria, por enquanto, só procurando muito, e mesmo assim não acharíamos mais do que é legítimo esperar de quem não fez sequer dezasseis anos e, embora mulher casada, não passa duma rapariguinha frágil, por assim dizer dez réis de gente, que também naquele tempo, sendo outros os dinheiros, não faltavam destas moedas. Apesar da fraca figura, Maria trabalha como as mais mulheres, cardando, fiando e tecendo as roupas da casa, cozendo todos os santos dias o pão da família no forno doméstico, descendo à fonte para acarretar a água, depois encosta acima, pelos íngremes carreiros, um gordo cântaro à cabeça, uma infusa apoiada no quadril, e indo depois, ao cair da tarde, por esses caminhos e descampados do Senhor, a apanhar gravetos de lenha e a rapar restolhos, levando por acrescento um cesto com que recolherá as bostas secas do gado, e também esses cardos e espinhosas que abundam nas declivosas alturas de Nazaré, do melhor que Deus foi capaz de inventar para acender um lume e entrançar uma coroa. Todo este arsenal reunido daria uma carga mais própria para ser trazida a casa no lombo do burro, não fosse a poderosa circunstância de estar a besta adstrita ao serviço de José e ao transporte das madeiras. Descalça vai Maria à fonte, descalça vai ao campo, com os seus vestidos pobres que no trabalho mais se sujam e gastam, e que é preciso estar sempre a lavar e remendar, para o marido vão os panos novos e os cuidados maiores, mulheres destas com qualquer coisa se contentam. Maria vai à sinagoga, entra pela porta lateral, que a lei impõe às mulheres, e se, é um supor, lá se encontram ela e trinta companheiras, ou mesmo todas as fêmeas de Nazaré, ou toda a população feminina de Galileia, ainda assim terão de esperar que cheguem ao menos dez homens para que o serviço do culto, em que só como passivas assistentes participarão, possa ser celebrado. Ao contrário de José, seu marido, Maria não é piedosa nem justa, porém não é sua a culpa dessas mazelas morais, a culpa é da língua que fala, senão dos homens que a inventaram, pois nela as palavras justo e piedoso, simplesmente, não têm feminino.
Ora, aconteceu que um belo dia, passadas umas quatro semanas sobre aquela inesquecível madrugada em que as nuvens do céu, de modo extraordinário, apareceram tingidas de violeta, estava José em casa, era isto pela hora do sol-pôr, e estava comendo o seu jantar, sentado no chão e metendo a mão no prato como então era geral costume, e Maria, de pé, esperava que ele acabasse para depois comer ela, e ambos calados, um porque não tinha nada que dizer, outro porque não sabia como dizer o que tinha em mente, aconteceu vir bater à cancela do pátio um pobre desses de pedir, o que, não sendo raridade absoluta, era ali pouco frequente, tendo em vista a humildade do lugar e do comum dos habitantes, sem contar com a argúcia e a experiência da gente pedinchante, sempre que é preciso recorrer ao cálculo de probabilidades, mínimas neste caso. Contudo, das lentilhas com cebola picada e das papas de grão-de-bico que estavam para ser o seu jantar, tirou Maria uma boa porção para uma tigela e foi levá-la ao mendigo, que se sentou no chão, a comer, de fora da porta, donde não passara. Não tinha precisado Maria de pedir licença ao marido de viva voz, ele foi quem lho permitiu ou ordenou com um aceno de cabeça, que já se sabe serem supérfluas as palavras nestes tempos em que um simples gesto basta para matar ou deixar viver, como nos jogos do circo se move o polegar dos césares, apontando para baixo ou para cima. Embora em diferente, também este crepúsculo estava que era uma beleza, com os seus mil fiapos de nuvem esparsos pela amplidão, rosa, nácar, salmão, cereja, são maneiras de falar da terra para que possamos entender-nos, pois estas cores, e todas as outras, não têm, que se saiba, nomes do céu. Sem dúvida estaria o mendigo com fome de três dias, que essa, sim, é fome autêntica, para em tão poucos minutos ter rapado e lambido o prato, e eis que já está batendo à porta para devolver a escudela e agradecer a caridade. Maria veio abrir, o pedinte ali estava, de pé, mas inesperadamente grande, muito mais alto do que antes lhe tinha parecido, afinal é certo o que se diz, que há uma enormíssima diferença entre comer e não ter comido, porquanto a este homem era como se lhe resplandecesse a cara e faiscassem os olhos, ao mesmo tempo que as roupas que vestia, velhas e esfarrapadas, se agitavam sacudidas por um vento que não se sabia donde vinha, e com esse contínuo movimento se nos confundia a vista, a ponto de, em um instante, parecerem os farrapos finas e sumptuosas telas, o que só estando presente se acredita. Estendeu Maria as mãos para receber a tigela de barro, a qual, em consequência duma ilusão de óptica em verdade assombrosa, porventura gerada pelas cambiantes luzes do céu, era como se a tivessem transformado em vaso do mais puro ouro, e, no mesmo instante em que a tigela passava dumas mãos para as outras, disse o mendigo com poderosíssima voz, que até nisto o pobre de Cristo tinha mudado, Que o Senhor te abençoe, mulher, e te dê todos os filhos que a teu marido aprouver, mas não permita o mesmo Senhor que os vejas como a mim me podes ver agora, que não tenho, ó vida mil vezes dolorosa, onde descansar a cabeça. Maria segurava a escudela no côncavo das duas mãos, taça sobre taça, como quem esperava que o mendigo lhe depositasse algo dentro, e ele sem explicação assim fez, que se baixou até ao chão e tomou um punhado de terra, e depois erguendo a mão deixou-a escorregar lentamente por entre os dedos, enquanto dizia em surda e ressoante voz, O barro ao barro, o pó ao pó, a terra à terra, nada começa que não tenha de acabar, tudo o que começa nasce do que acabou. Turbou-se Maria e perguntou, Isso que quer dizer, e o mendigo respondeu apenas, Mulher, tens um filho na barriga, e esse é o único destino dos homens, começar e acabar, acabar e começar, Como soubeste que estou grávida, Ainda a barriga não cresceu e já os filhos brilham nos olhos das mães, Se assim é, deveria meu marido ter visto nos meus olhos o filho que em mim gerou, Acaso não olha ele para ti quando o olhas tu, E tu quem és, para não teres precisado de ouvi-lo da minha boca, Sou um anjo, mas não o digas a ninguém. Naquele mesmo instante, as roupas resplandecentes voltaram a ser farrapos, o que era figura de titânico gigante encolheu-se e mirrou como se o tivesse lambido uma súbita língua de fogo, e a prodigiosa transformação foi mesmo a tempo, graças a Deus, e logo a seguir a prudente retirada, que do portal já vinha acercando-se José, atraído pelo rumor das vozes, mais abafadas do que o natural duma conversação lícita, mas sobretudo pela exagerada demora da mulher, Que mais te queria o pobre, perguntou, e Maria, sem saber que palavras suas poderia dizer, só soube responder, Do barro ao barro, do pó ao pó, da terra à terra, nada começa que não acabe, nada acaba que não comece, Foi isso que ele disse, Sim, e também disse que os filhos dos homens brilham nos olhos das mulheres, Olha para mim, Estou a olhar, Parece-me ver um brilho nos teus olhos, foram palavras de José, e Maria respondeu, Será o teu filho. O crepúsculo tornara-se azulado, ia tomando já a primeira cor da noite, agora via-se que de dentro da tigela irradiava como uma luz negra que desenhava sobre o rosto de Maria feições que nunca haviam sido dela, os olhos pareciam pertencer a alguém muito mais velho. Estás grávida, perguntou enfim José, Sim, estou, respondeu Maria, Por que não mo disseste antes, Ia dizer-to hoje, esperava que acabasses de comer, E então chegou esse pedinte, Sim, De que mais falou, que o tempo deu sem dúvida para mais, Que o Senhor me conceda todos os filhos que tu quiseres, Que tens aí na tigela, para que dessa maneira brilhe, Terra tenho, O húmus é negro, a argila verde, a areia branca, dos três só a areia brilha se lhe dá o sol, e agora é noite, Sou mulher, não sei explicar, ele tomou a terra do chão e lançou-a dentro, ao mesmo tempo disse as palavras, A terra à terra, Sim.
José foi abrir a cancela, olhou a um lado e a outro. Já não o vejo, sumiu-se, disse, mas Maria afastava-se tranquila em direcção à casa, sabia que o mendigo, se era realmente quem anunciara ser, só se quisesse é que deixaria que o vissem. Pousou a tigela no poial do forno, tirou do borralho uma brasa com que acendeu a candeia, soprando-a até levantar uma pequena chama. José entrou, vinha com uma expressão interrogativa, uma mirada perplexa e desconfiada que tentava disfarçar movendo-se com vagares e solenidade de patriarca que não lhe assentavam bem, sendo tão jovem. Discretamente, fazendo por não dar nas vistas, foi espreitar a tigela, a terra luminosa, compondo na cara um ar de cepticismo irônico, porém, se era uma demonstração de varonia o que pretendia, não lhe valeu a pena, Maria tinha os olhos baixos, estava como ausente. José, com um pauzito, remexeu a terra, intrigado por vê-la escurecer quando a movia e depois retomar o brilho, sobre a luz constante, como mortiça, serpenteavam rápidas cintilações, Não compreendo, decerto há um mistério nisto, ou então a terra trazia-a já ele consigo e tu julgaste que a apanhou do chão, são embelecos de mágico, ninguém viu nunca brilhar a terra de Nazaré. Maria não respondeu, comia o pouco que lhe restara das lentilhas com cebola e das papas de grão de bico, acompanhando-as com um pedaço de pão untado de azeite. Ao parti-lo, dissera, como está escrito na lei, porém no tom modesto que convém à mulher, Louvado sejas tu, Adonai, nosso Deus, rei do universo, que fazes sair o pão da terra. Calada, comia, enquanto José, deixando discorrer os pensamentos como se estivesse comentando na sinagoga um versículo da Tora ou a palavra dos profetas, reconsiderava a frase que acabara de ouvir à mulher, a que ele próprio recitara no mesmo acto de partir o pão, e tentava imaginar que cevada seria a que nascesse e frutificasse duma terra que brilhava, que pão daria ela, que luz levaríamos dentro de nós se dele fizéssemos alimento. Tens a certeza de ,que o mendigo apanhou a terra do chão, tornou a perguntar, e Maria respondeu, Sim, tenho a certeza, E não brilhava antes, No chão não brilhava. Tanta firmeza teria de abalar a postura de desconfiança sistemática que deve ser a de qualquer homem quando confrontado com os ditos e feitos das mulheres em geral e da sua em particular, mas, para José, como para qualquer varão daqueles tempos e lugares, era doutrina muito pertinente a que definia o mais sábio dos homens como aquele que melhor saiba pôr-se a coberto das artes e artimanhas femininas. Falar-lhes pouco e ouvi-las ainda menos é a divisa de todo o homem prudente que não tenha esquecido os avisos do rabi Josephat ben Yohanán, palavras sábias entre as que mais o sejam, À hora da morte se hão-de pedir contas ao varão por cada conversa desnecessária que tiver tido com sua mulher. Interrogou-se José sobre se esta conversa com Maria poderia ser contada no número das necessárias, e, tendo concluído que sim, tomando em consideração a singularidade do acontecimento, jurou no entanto a si mesmo não esquecer nunca as santas palavras do rabi seu homônimo, convém dizer que Josephat é o mesmo que José, para não ter de estar com remorsos tardios à hora da morte, praza a Deus seja ela descansada. E, derradeiramente, tendo-se perguntado se deveria levar ao conhecimento dos anciãos da sinagoga o suspeito caso de mendigo desconhecido e terra luminosa, assentou que deveria fazê-lo, para sossego da sua consciência e defesa da paz do lar.
Maria acabou de comer. Levou fora as tigelas para lavá-las, porém não, escusado seria dizê-lo, a que tinha servido ao mendigo. Na casa havia agora duas luzes, a da candeia, lutando trabalhosamente contra a noite que se instalara de vez, e aquela aura luminescente, vibrátil mas constante, como de um sol que não se decidisse a nascer. Sentada no chão, Maria esperava ainda que o marido tornasse a dirigir-lhe a palavra, mas José já não tem mais que dizer-lhe, agora está ocupado a compor mentalmente as frases do discurso que amanhã irá fazer perante o conselho dos anciãos. Aborrece-o não saber exactamente o que se passou entre a mulher e o pedinte, que outras coisas teriam dito um ao outro, mas não quer voltar a perguntar-lhe, porquanto, não sendo de esperar que ela acrescente algo de novo ao que contou já, ele teria de aceitar como verdadeiro o relato duas vezes feito, e se ela, afinal, está a mentir, não o poderá ele saber, mas ela, sim, saberá que mente e mentiu, e rir-se-á dele por baixo do manto, como há boas razões para crer que riu Eva de Adão, de modo mais disfarçado, claro está, pois nessa altura ainda não tinha um manto que a tapasse. Tendo chegado a este ponto, o pensamento de José deu o seguinte e inevitável passo, e eis que lhe está representando agora o misterioso mendigo como um emissário do Tentador, o qual, tendo mudado tanto os tempos e sendo as pessoas hoje mais avisadas, não caiu na ingenuidade de repetir o oferecimento dum simples fruto natural, antes parece que veio trazer a promessa duma terra diferente, luminosa, para isso se servindo, como de costume, da credulidade e da malícia das mulheres. José tem a cabeça em fogo, mas está contente consigo mesmo e com as conclusões a que chegou. Por seu lado, nada sabendo dos meandros de análise demonológica em que se embrenhou a mente do marido, e outro tanto das responsabilidades que lhe estão sendo atribuídas, Maria tenta compreender a estranha sensação de carência que vem experimentando desde que anunciou ao marido a sua gravidez. Não uma ausência interior, por certo, porque de mais sabe ela que se encontra, a partir de agora, e no sentido mais exacto do termo, ocupada, mas precisamente uma ausência exterior, como se o mundo, de um momento para outro, se tivesse apagado ou posto à distância. Recorda, mas é como se estivesse recordando uma outra vida, que depois desta última refeição, e antes de estender as esteiras para dormir, sempre tinha algum trabalho para adiantar, com ele passava o tempo, e agora o que está pensando é que não deveria mover-se do lugar onde se encontra, sentada no chão, olhando a luz que a olha por cima do rebordo da tigela e esperando que o filho nasça. Digamos agora, por respeito à verdade, que o seu pensar não foi assim tão claro, o pensamento, afinal de contas, já por outros, ou o mesmo, foi dito, é como um grosso novelo de fio enrolado sobre si mesmo, frouxo nuns pontos, noutros apertado até à sufocação e ao estrangulamento, está aqui, dentro da cabeça, mas é impossível conhecer-lhe a extensão toda, seria preciso desenrolá-lo, estendê-lo, e finalmente medi-lo, mas isto, por mais que se intente, ou finja intentar, parece que não o pode fazer o próprio sem ajudas, alguém tem de vir um dia dizer por onde se deve cortar o cordão que liga o homem ao seu umbigo, atar o pensamento à sua causa.
Na manhã seguinte, depois duma noite mal dormida, sempre a acordar por obra de um pesadelo em que se via a si mesmo caindo e tornando a cair para dentro de uma imensa tigela invertida que era como o céu estrelado, José foi à sinagoga, a pedir conselho e remédio aos anciãos. O seu insólito caso era de tal maneira extraordinário, ainda que não pudesse imaginar até que ponto, faltando-lhe, como sabemos, o melhor da história, isto é, o conhecimento do essencial, que se não fosse a excelente opinião que dele têm os veteranos de Nazaré, quiçá tivesse de voltar pelo mesmo caminho, corrido, com as orelhas a arder, ouvindo, como um ressoante som de bronze, a sentença do Eclesiástico com que o teriam fulminado, Quem acredita levianamente, tem um coração leviano, e ele, coitado, sem presença de espírito para retorquir, armado do mesmo Eclesiástico, e a propósito do sonho que o perseguira a noite inteira, O espelho e os sonhos são coisas semelhantes, é como a imagem do homem diante de si próprio. Terminado, pois, o relato, olharam os anciãos uns para os outros e depois todos juntos para José, e o mais velho deles, traduzindo numa pergunta directa a discreta suspicácia do conselho, disse, É verdade, inteira verdade e só verdade o que acabas de contar-nos, e o carpinteiro respondeu, Verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade, seja o Senhor minha testemunha. Debateram os anciãos longamente entre eles, enquanto José esperava à parte, e ao fim chamaram-no para anunciar-lhe que, por via de diferenças que persistiam sobre os procedimentos mais convenientes, haviam decidido enviar três emissários a interrogar Maria, directamente, sobre os estranhos acontecimentos, averiguar quem era afinal esse pedinte que ninguém mais vira, a figura que tinha, que exactas palavras pronunciara, se aparecia regularmente por Nazaré a pedir esmola, apurando-se, de passagem, que outras notícias poderia dar a vizinhança acerca do misterioso personagem. Alegrou-se José em seu coração porque, não querendo confessá-lo, intimidava-o a ideia de ter de ir enfrentar-se sozinho com a mulher, por aquele seu modo particular de estar agora, de olhos baixos, é certo, segundo manda a discrição, mas também com uma indisfarçável expressão provocadora, a expressão de quem sabe mais do que tenciona dizer, mas quer que se note. Em verdade, em verdade vos digo, não há limites para a malícia das mulheres, sobretudo as mais inocentes.
Saíram pois os emissários, com José à frente, a indicar o caminho, e eram eles Abiatar, Dotaim e Zaquias, nomes que aqui se deixam registados para estorvar qualquer suspeita de fraude histórica que possa, acaso, perdurar no espírito de todas aquelas pessoas que destes factos e suas versões tenham obtido conhecimento através doutras fontes, porventura mais acreditadas pela tradição, mas não por isso mais autênticas. Enunciados os nomes, provada a existência efectiva de personagens que os usaram, as dúvidas que restem perdem muito da sua força, embora não a legitimidade. Não sendo isto de todos os dias, saírem à rua três anciãos emissários, como se lhes descobria pela dignidade particular da marcha, com as túnicas e as barbas ao vento, em pouco se juntaram ao redor deles alguns garotos, que, cometendo os excessos próprios da sua idade, uns risos, uns gritos, umas correrias, acompanharam os delegados da sinagoga até à casa de José, a quem o ruidoso e denunciador cortejo muito viera enfadando. Atraídas pelo ruído, as mulheres das casas próximas apareceram às portas e, pressentindo novidade, disseram aos filhos que fossem ver que ajuntamento era aquele à porta da vizinha Maria. Penas perdidas foram, que entraram só os homens. A porta fechou-se com autoridade, nenhuma curiosa mulher de Nazaré veio a saber o que em casa do carpinteiro José se passou, até aos dias de hoje. E, tendo de imaginar alguma coisa para alimento da curiosidade insatisfeita, vieram a fazer do mendigo, que nunca chegaram a ver, um ladrão de casas, grande injustiça foi, que o anjo, porém não digais a ninguém que o era, aquilo que comeu não roubou, e ainda deixou penhor sobrenatural. É que, enquanto os dois anciãos de mais idade continuavam a interrogar Maria, foi o menos velho dos três, Zaquias, pelas imediações a recolher lembranças de um mendigo assim,assim, conforme os sinais dados pela mulher do carpinteiro, e nenhuma vizinha soube dar-lhe notícias, que não senhor, ontem não passou por cá nenhum pedinte, e se passou à minha porta não bateu, isso devia de ser ladrão em trânsito, que, encontrando a casa com gente, fingiu ser pobre de pedir e descampou para outra parte, é um truque conhecido desde que o mundo é mundo.
Voltou Zaquias sem novas do pedinte a casa de José ao tempo que Maria repetia pela terceira ou quarta vez o que já sabemos. Estavam todos no interior da casa, ela ali de pé, parecendo ré de um crime, a tigela no chão, e dentro, insistente, como um coração palpitando, a terra enigmática, a um lado José, e os anciãos sentados em frente, como juízes, e dizia Dotaim, o do meio em idade, Não é que não queiramos acreditar no que nos contas, mas repara que és a única pessoa que viu esse homem, se homem era, teu marido nada mais sabe dele que ter-lhe ouvido a voz, e agora aqui vem Zaquias dizer-nos que nenhuma das tuas vizinhas o viu, Serei testemunha diante do Senhor, ele sabe que a verdade fala pela minha boca, A verdade, sim, mas quem sabe se toda a verdade, Beberei a água da prova do Senhor e ele manifestará se sou culpada, A prova das águas amargas é para as mulheres suspeitas de infidelidade, não pudeste ser infiel a teu marido, não te dava o tempo, A mentira, diz-se, é o mesmo que infidelidade, Outra, não essa, A minha boca é tão fiel como eu sou. Tomou então a palavra Abiatar, o mais velho dos três anciãos, e disse, Não te perguntaremos mais, o Senhor te pagará sete vezes pela verdade que tiveres dito ou sete vezes sete cobrará de ti pela mentira com que nos tenhas enganado. Calou-se e continuou calado, depois disse, dirigindo-se a Zaquias e Dotaim, Que faremos nós desta terra que brilha, se aqui não deve ficar como a prudência aconselha, pois bem pode ser que estas artes sejam do demônio. Disse Dotaim, Que torne à terra donde veio, que volte a ser escura como foi antes. Disse Zaquias, Não sabemos quem fosse o mendigo, nem por que quis ser visto apenas por Maria, nem o que significa brilhar um punhado de terra no fundo duma tigela. Disse Dotaim, Levemo-la ao deserto e espalhemo-la ali, longe das vistas dos homens, para que o vento a disperse na imensidão e seja apagada pela chuva. Disse Zaquias, Se esta terra é um bem, não deve ser levada donde está, e se, pelo contrário, é um mal, que fiquem sujeitos a ele só aqueles que foram escolhidos para recebê-la. Perguntou Abiatar, Que propões, então, e Zaquias respondeu, Que se cave aqui um buraco e se deposite a tigela no fundo dele, tapada para que não se misture com a terra natural, um bem, mesmo que enterrado, não se perde, e um mal terá menos poder longe da vista. Disse Abiatar, Que pensas tu, Dotaim, e este respondeu, É justo o que propõe Zaquias, façamos como ele diz. Então Abiatar disse para Maria, Retira-te e deixa-nos proceder, Para onde irei eu, perguntou ela, e José, de súbito inquieto, Se vamos enterrar a tigela, que seja fora de casa, não quero dormir com uma luz sepultada debaixo de mim. Disse Abiatar, Faça-se como dizes, e para Maria, Ficarás aqui. Saíram os homens para o pátio, levando Zaquias a tigela. Pouco depois ouviram-se golpes de enxada, repetidos e duros, era José que estava cavando, e passados uns minutos a voz de Abiatar que dizia, Basta, já tem fundura que chegue. Maria espreitou pela fenda da porta, viu o marido tapar a tigela com um caco curvo de bilha e depois descê-la, a toda a altura do braço, para o interior da cova, enfim levantar-se e, deitando mão outra vez à enxada, começar a puxar a terra para dentro, calcando-a depois com os pés.
Os homens ficaram ainda algum tempo no pátio, falando uns com os outros e olhando a mancha de terra fresca, como se tivessem acabado de esconder um tesouro e quisessem fixar o local na memória. Mas certamente não era disto que falavam, porque de repente ouviu-se, mais forte, a voz de Zaquias, em tom que parecia de repreensão sorridente, Ora tu, José, que carpinteiro me estás saindo, que nem és capaz de fazer uma cama, agora que tens aí a mulher grávida. Riram-se os outros e José com eles, um tanto por comprazer, como alguém que foi apanhado em falta e quer fazer de conta que não. Maria viu-os encaminharem-se para a cancela e saírem, e agora, sentada no poial do forno, passeava os olhos pela casa buscando o sítio onde haverá de pôr a cama, se o marido resolver fazê-la. Não queria pensar na tigela de barro nem na terra luminosa, tão-pouco se o mendigo seria realmente um anjo ou um farsante que viera divertir-se à sua custa. Uma mulher, se lhe prometem uma cama para a sua casa, deve é pensar onde ela vai ficar melhor.


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