segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo VI)




Tinham atravessado, a caminho do sul, toda a região de Samaria, e fizeram-no em marchas forçadas, com um olho atento à estrada e o outro, inquieto, perscrutando as cercanias, temerosos dos sentimentos de hostilidade, porém mais exacto seria dizer aversão, dos habitantes daquelas terras, descendentes em malfeitorias e herdeiros em heresias dos antigos colonos assírios que a estas paragens vieram em tempo de Salmanasar, o rei de Nínive, depois da expulsão e dispersão das Doze Tribus, e que, tendo algo de judeus, mas muito mais de pagãos, apenas reconhecem como lei sagrada os Cinco Livros de Moisés e protestam que o lugar escolhido por Deus para o seu templo não foi Jerusalém, mas sim, imagine-se, o monte Gerizim, que está nos seus territórios. Andaram depressa os de Galileia, mas ainda assim tiveram de passar duas noites em campo inimigo, ao relento, com vigias e roldas, não fosse dar-se o caso de os malvados atacarem pela calada, capazes como são das piores acções, chegando ao extremo de recusarem uma sede de água a quem, de puro tronco hebreu, por necessidade dela se estivesse finando, não valendo referir alguma excepção conhecida, por não ser mais do que isso, uma excepção. E a tal ponto foi a ansiedade dos viajantes durante o trajecto que, contrariando o costume, os homens se dividiram em dois grupos, à frente e atrás das mulheres e crianças, para guardá-las de insultos ou coisa pior. Afinal, estariam os de Samaria de humor pacífico nestes dias, o certo é que, além dos encontrados no caminho, também de viagem, que satisfaziam o seu rancor lançando aos galileus olhares de escárnio e algumas palavras malsonantes, nenhuma quadrilha formal e organizada se precipitou das encostas ao assalto ou apedrejou de emboscada o assustado e inerme destacamento.
Um pouco antes de chegarem a Ramalá, onde os crentes mais fervorosos ou de mais apurado olfacto juravam sentir já o santíssimo odor de Jerusalém, largaram o grupo o velho Simeão e os seus, que, como foi dito antes, em uma aldeia destes sítios vêm recensear-se. Ali, no meio do caminho, com grande profusão de bênçãos, fizeram os viajantes as suas despedidas, as mães de família encheram Maria de mil e uma recomendações filhas da experiência, e lá se foram todos, uns descendo ao vale onde pronto poderão repousar das fadigas de quatro dias a andar, outros para Ramalá, em cujo caravançarai passarão ainda a noite que vem chegando. E em Jerusalém, finalmente, se hão-de separar os que restam do grupo que partiu de Nazaré, a maior parte para Bercheva, ainda com dois dias de viagem pela frente, e o carpinteiro e sua mulher que ficarão logo ali, em Belém. No meio da confusão dos abraços e adeuses, José chamou de parte Simeão e, com muita deferência, quis saber se naquele meio-tempo lhe ocorrera alguma lembrança mais da visão, Que não foi visão, já te disse, Fosse o que fosse, a mim o que me interessa é saber que destino vai ter o meu filho, Se nem o teu próprio destino podes conhecer, e estás aí, vivo e falando, como queres pretender saber do que ainda nem existência tem, Os olhos do espírito vão mais longe, por isso imaginei que os teus, abertos pelo Senhor às evidências dos eleitos, tivessem conseguido alcançar o que para mim é pura treva, Talvez que do destino do teu filho não venhas a saber nunca, talvez o teu próprio destino esteja para cumprir-se em breve, não perguntes, homem, não queiras saber, vive apenas o teu dia. E, tendo dito estas palavras, Simeão pôs a mão direita sobre a cabeça de José, murmurou uma bênção que ninguém pôde ouvir e foi juntar-se aos seus, que o esperavam. Por um carreiro sinuoso, em fila, começaram a descer para o vale, onde, no baixo da outra encosta, quase confundida com as pedras que do chão rompiam como fatigados ossos, estava a aldeia de Simeão. José não voltaria a ter notícias dele, apenas, mas muito mais tarde, que tinha morrido antes de recensear-se.
Depois das duas noites passadas à luz das estrelas e ao frio do descampado, já que, por medo de um ataque de surpresa, nem fogueiras tinham acendido, soube bem aos de Nazaré poderem acolher-se uma vez mais ao resguardo das paredes e arcadas de um caravançarai. As mulheres foram ajudar Maria a descer-se do burro, dizendo, piedosas, Mulher, que para breve estás, e a pobre murmurava que sim, devia de estar, como disso era sinal, a todos evidente, o repentino, ou assim parecia, crescimento da barriga. Instalaram-na o melhor que puderam num canto recolhido e foram tratar da ceia que já tardava, da qual vieram a comer todos. Nesta noite não houve conversas, nem recitações, nem histórias contadas à volta da fogueira, como se a proximidade de Jerusalém obrigasse ao silêncio, cada um olhando para dentro de si e perguntando, Quem és tu, que comigo te pareces, mas a quem não sei reconhecer, e não é que o dissessem de facto, as pessoas não se põem assim a falar sozinhas, sem mais nem menos, ou sequer o pensassem conscientemente, porém o certo é que um silêncio como este, quando fixamente olhamos as chamas duma fogueira e calamos, se quisermos traduzi-lo em palavras, não há outras, são aquelas, e dizem tudo. No lugar onde estava sentado, José via Maria de perfil contra o resplendor do lume, o clarão avermelhado; reflectido, iluminava-lhe numa meia-tinta a face deste lado, desenhando-lhe o perfil em luz e contraluz, e ele achou, surpreendido por o estar pensando, que Maria era uma bonita mulher, se já se lhe podia dar esse nome, com aquela cara de menina, sem dúvida tem o corpo agora deformado, mas a memória traz-lhe uma imagem diferente, ágil e graciosa, depressa voltará ao que era, depois de nascer a criança. Pensava José isto, e num repente inesperado foi como se todos os meses passados, de forçada castidade, se tivessem rebelado, despertando a urgência de um desejo que se lhe ia difundindo por todo o sangue, em ondas sucessivas irradiando vagos apetites carnais que principiavam por aturdi-lo, para depois refluírem, mais fortes, escandecidos pela imaginação, ao ponto de partida. Ouviu que Maria soltara um gemido, mas não se aproximou dela. Lembrara-se, e a recordação, como uma chapada de água fria, arrefeceu de golpe as sensações voluptuosas que estivera experimentando, lembrara-se do homem que dois dias antes vira, num rápido instante, caminhar ao lado da mulher, esse mendigo que os perseguia desde o anúncio da gravidez de Maria, pois agora José não tinha dúvidas de que, mesmo não tendo voltado a aparecer até ao dia em que ele próprio pudera vê-lo, o misterioso personagem sempre estivera, ao longo dos nove meses de gestação, nos pensamentos de Maria. Não se atrevera a perguntar à mulher que homem era aquele e se sabia para onde ele fora, que tão depressa se sumira, não queria ouvir a resposta que temia, uma estupefacta pergunta, Homem, que homem, e, se teimasse, o mais certo seria chamar Maria a testemunhar as outras mulheres, Vocês viram algum homem, vinha algum homem no grupo das mulheres, e elas diriam que não e abanariam a cabeça com algum ar de escândalo, e talvez uma delas, mais solta de língua, dissesse, Ainda está para nascer o homem que, sem ser por precisões do corpo, se chegue ao lado das mulheres e com elas fique. O que José não poderia adivinhar é que não haveria malícia alguma na surpresa de Maria, pois ela realmente não vira o mendigo, tivesse ele sido homem de carne e osso ou aparição. Mas, como pode isso ser verdade, se ele estava ali, ao teu lado, se o vi com estes olhos, perguntaria José, e Maria que responderia, firme na sua razão, Em tudo, assim me disseram que está escrito na lei, a mulher deverá ao marido respeito e obediência, portanto não torno a dizer que esse homem não ia ao meu lado, sustentando tu o contrário, afirmo apenas que não o vi, Era o mendigo, E como podes sabê-lo, se não chegaste a vê-lo no dia em que apareceu, Tinha de ser ele, Seria antes alguém que ia no seu caminho, e, porque caminhava mais devagar do que nós, passamos-lhe à frente, primeiro os homens, depois as mulheres, por acaso estaria ao meu lado quando olhaste, foi isso e nada mais, Então, confirmas, Não, somente procuro uma explicação que te satisfaça, como é também dever das boas mulheres. Por entre os olhos semicerrados, quase adormecido, José ainda tenta ler uma verdade no rosto de Maria, mas a face dela tornou-se negra como o outro lado da lua, o perfil apenas uma linha, recortado contra a claridade já esmorecida das últimas brasas. José deixou pender a cabeça como se definitivamente tivesse renunciado a compreender, levando consigo, para dentro do sono, uma ideia em tudo absurda, a de que aquele homem teria sido uma imagem do seu filho feito homem, que viera do futuro para dizer-lhe, Assim eu serei um dia, mas tu não chegarás a ver-me assim. José dormia, com um sorriso resignado nos lábios, mas triste era como se sentiria se ouvisse Maria dizer-lhe, Que o não queira o Senhor, que de ciência certa sei eu que esse homem não tem onde descansar a cabeça. Em verdade, em verdade vos digo que muitas coisas neste mundo poderiam saber-se antes de acontecerem outras que delas são fruto, se, um com o outro, fosse costume falarem marido e mulher como marido e mulher.
No dia seguinte, manhã cedo, abalaram para Jerusalém muitos dos viajantes que tinham passado a noite no caravançarai, mas os grupos de caminhantes, por casualidade, formaram-se de maneira que José, embora mantendo-se à vista dos conterrâneos que iam para Bercheva, acompanhava desta vez a mulher, seguindo ao lado dela, à estribeira, por assim dizer, precisamente como o mendigo, ou quem quer que fosse, fizera no dia anterior. Mas José, neste momento, não quer pensar na misteriosa personagem. Tem a certeza, íntima e profunda, de que foi beneficiário dum obséquio particular de Deus, que lhe permitiu ver o seu próprio filho ainda antes de ser nascido, não envolto em faixas e cueiros de infantil debilidade, pequeno ser inacabado, fétido e ruidoso, mas homem feito, alto um bom palmo mais do que o seu pai e o comum desta raça. José vai feliz por ocupar o lugar de seu filho, é ao mesmo tempo o pai e o filho, e a tal ponto este sentimento é forte que subitamente perde sentido aquele que é seu verdadeiro filho, a criança que ali vai, ainda dentro da barriga da mãe, no caminho de Jerusalém.
Jerusalém, Jerusalém, gritam os devotos viajantes à vista da cidade, de repente levantada como uma aparição no cimo do morro do outro lado, além do vale, cidade em verdade celeste, centro do mundo, agora despedindo mil centelhas em todas a direcções, sob a luz forte do meio-dia, como uma coroa de cristal, mas que sabemos se tornará em ouro puro quando a luz do poente lhe tocar e será branca de leite sob o luar, Jerusalém, ó Jerusalém. O Templo aparece como se nesse mesmo momento Deus ali o tivesse pousado, e o súbito sopro que percorre os ares e vem roçar a cara, os cabelos, as roupas dos peregrinos e viajantes é talvez o movimento do ar deslocado pelo gesto divino, que, se olharmos com atenção as nuvens do céu, podemos ver a imensa mão que se retira, os longos dedos sujos de barro, a palma onde estão traçadas todas as linhas de vida e de morte dos homens e de todos os outros seres do universo, mas também, é tempo de que se saiba, a linha da vida e da morte do mesmo Deus. Os viajantes levantam ao ar os braços que tremem de emoção, as bênçãos saltam, irresistíveis, não já em coro, cada qual entregue ao seu arrebatamento próprio, e alguns, por natureza mais sóbrios nestas místicas expressões, quase não se movem, olham o céu e pronunciam as palavras com uma espécie de dureza, como se neste momento lhes fosse consentido falar de igual para igual ao seu Senhor. A estrada descai em rampa, e à medida que os viajantes vão descendo para o vale, antes de abordarem a nova subida que os levará a esta porta da cidade, o Templo parece erguer-se mais e mais, escondendo, por efeito da perspectiva, a execrada Torre Antônia, onde, mesmo a esta distância, se percebem os vultos dos soldados romanos que vigiam do eirado e rápidas fulgurações de armas. Aqui se despedem os de Nazaré, porque Maria vem exausta e não suportaria o trote seco da sua montada na descida, se ela tivesse de acompanhar o passo rápido, quase carreira precipitada, que passou a ser o de toda esta gente à vista dos muros da cidade.
Ficaram pois José e Maria sozinhos na estrada, ela procurando recobrar as fugidas forças, ele um tanto impaciente pela demora, agora que estão já tão perto do destino. O sol cai a prumo sobre o silêncio que rodeia os viajantes. De súbito, um gemido surdo, irreprimível, sai da boca de Maria. José inquieta-se, pergunta, São as dores que começam, e ela responde, Sim, mas nesse mesmo instante uma expressão de incredulidade espalha-se-lhe no rosto, como se ela tivesse acabado de encontrar-se com algo inacessível à sua compreensão, é que, em verdade, não fora no seu próprio corpo que ela sentira a dor, sentira-a sim, mas como uma dor efectivamente sentida por outrem, quem, o filho que dentro de si está, como é possível suceder tal coisa, que possa um corpo sentir uma dor que não é sua, ainda por cima sabendo que o não é, e, contudo, uma vez mais, sentindo-a como se a sua própria fosse, ou não exactamente desta maneira e por estas palavras, digamos antes, como um eco que, por qualquer estranha perversão dos fenômenos acústicos, se ouvisse com mais intensidade do que o som que o tinha causado. Cauteloso, mal querendo saber, José perguntou, Continua a doer-te, e ela não sabe como responder-lhe, mentirá se disser que não, mentirá se disser que sim, por isso cala, mas a dor está lá, e sente-a, porém é também como se apenas a estivesse olhando, impotente para acudir, no interior do ventre doem-lhe as dores do seu filho, e ela que não lhe pode valer, tão longe está. Não foi gritada nenhuma ordem, José não usou a chibata, mas o certo é que o burro recomeçou a andar mais espevitado de ânimo, sobe por sua conta a ladeira íngreme que leva a Jerusalém, e vai ligeiro, como quem ouviu dizer que tem a manjedoura cheia à sua espera e finalmente descanso de valer a pena, mas o que ele não sabe é que ainda vai ter de calcorrear um bom pedaço de caminho antes de chegar a Belém, e quando lá se encontrar perceberá que as coisas afinal não são tão simples quanto pareciam, claro está que seria muito bonito poder anunciar, Veni, vidi, vici, proclamou-o assim Júlio César no tempo da sua glória e depois foi o que se viu, às mãos do seu próprio filho veio a morrer, sem mais desculpa este que ser apenas adoptivo. Vem de longe e promete não ter fim a guerra entre pais e filhos, a herança das culpas, a rejeição do sangue, o sacrifício da inocência.
Quando já estavam entrando a porta da cidade, Maria não pôde reter um grito de dor, mas este lancinante, como se uma lança a tivesse traspassado. Ouviu-a somente José, tão grande era o ruído que faziam as pessoas, os animais bastante menos, mas tudo junto resultando numa algazarra de mercado que mal deixava perceber o que se dissesse ao lado. José quis ser sensato, Tu não estás em condições de continuar, o melhor será procurarmos pousada aqui, e amanhã irei eu a Belém, ao recenseamento, e direi que estás de parto, vais lá depois se for preciso, que não sei como são as leis dos romanos, talvez seja bastante apresentar-se o chefe de família, sobretudo num caso como este, e Maria respondeu, Já não sinto dores, e assim era, aquela lançada que a fizera gritar tornara-se num picar de espinho, contínuo, sim, mas suportável, algo que só se fazia lembrar, como um cilício. Ficou José o mais aliviado que se pode imaginar, pois o apoquentava a perspectiva de ter de procurar um abrigo no labirinto das ruas de Jerusalém em circunstância de tanta aflição, a mulher em doloroso trabalho de parto, e ele, como qualquer outro homem, apavorado com a responsabilidade, mas sem o querer confessar. Chegando a Belém, pensava, que em tamanho e importância não diferirá muito de Nazaré, as coisas serão certamente mais fáceis, sabido como é que nas povoações pequenas, onde todos se conhecem, a solidariedade costuma ser uma palavra menos vã. Se Maria já não se queixa, ou é que lhe passaram as dores, ou é que consegue aguentá-las, num caso como no outro, tanto faz, ala para Belém. O burro recebe uma palmada nos quartos traseiros, o que, se bem repararmos, é menos um estímulo para que se resolva a espevitar o andamento, decisão assaz difícil na indescritível confusão de trânsito em que foram apanhados, do que a expressão afectuosa do alívio de José. Os comércios invadem as vias estreitas, acotovelam-se gentes de mil raças e línguas, e a passagem, como por milagre, só se desobstrui e facilita quando aparece ao fundo da rua uma patrulha de soldados romanos ou uma cáfila de camelos, então é como se se apartassem as águas do mar Vermelho. Aos poucos, com jeito e paciência, os dois de Nazaré e o seu burro foram deixando para trás este gesticulante e convulsivo bazar, gente ignara e distraída a quem de nada serviria informar, Aquele que além estais vendo é José, e a mulher, a que vai prenha da barriga à boca, sim, o nome dela é Maria, vão os dois a Belém recensear-se, e se é verdade que em nada adiantariam estas nossas benévolas identificações é porque vivemos numa terra de tal modo abundante em nomes predestinados que facilmente por aí se encontram Josés e Marias de todas as idades e condições, por assim dizer ao virar da esquina, e não esqueçamos que estes que conhecemos não devem ser os únicos desse nome à espera de um filho, e também, diga-se tudo, não nos surpreenderia muito se, a estas horas e ao redor destas paragens, nascessem ao mesmo tempo, e apenas com uma rua ou uma seara por meio, duas crianças do mesmo sexo, varões querendo-o Deus, mas que por certo virão a ter diferentes destinos, ainda que, em final tentativa para darmos substância às primitivas astrologias desta antiga idade, viéssemos a dar-lhes o mesmo nome, Yeschua, que é como quem diz, Jesus. E que não se diga que já nos estamos antecipando aos acontecimentos pondo nome numa criança que ainda está por nascer, a culpa tem-na o carpinteiro que de há muito assentou na sua cabeça que esse será o nome do seu primogênito.
Saíram os caminhantes pela porta do sul, tomando a estrada para Belém, ligeiros de ânimo agora por tão perto estarem do seu destino, vão poder descansar das longas e duras jornadas, embora uma outra e não pequena fadiga esteja à espera da pobre Maria, que ela, e ninguém mais, terá o trabalho de parir o filho, sabe Deus onde e como. É que, embora Belém, segundo as escrituras, seja o lugar da casa e linhagem de David a que José afirma pertencer, com o passar do tempo acabaram-se ali os parentes, ou de havê-los não tem o carpinteiro notícia, circunstância negativa que deixa adivinhar, quando ainda vamos na estrada, não poucas dificuldades no alojamento do casal, em verdade José não pode, chegando, bater a uma porta qualquer e dizer, Trago aqui o meu filho que quer nascer, e vir a dona da casa, toda risos e alegrias, Entre, entre, senhor José, a água já está quente, a esteira no chão estendida, a faixa de linho preparada, ponha-se à vontade, a casa é sua. Teria assim sido na idade de ouro, quando o lobo, para não ter de matar o cordeiro, se alimentava de ervas bravas, mas esta idade é dura e de ferro, o tempo dos milagres, ou já passou, ou ainda está para chegar, além disso, milagre, milagre mesmo, por mais que nos digam, não é boa coisa, se é preciso torcer a lógica e a razão própria das coisas para torná-las melhores. A José quase apetece travar o passo para chegar atrasado aos problemas que o esperam, mas lembrar-se de que muito maiores problemas terá se o filho lhe nascer em meio do caminho, fá-lo espevitar o andamento do burro, resignado animal que, de cansado, só ele sabe como vai, que Deus, se de algo sabe, é dos homens, e mesmo assim não de todos, que sem conta são os que vivem como burros, ou ainda pior, e Deus não tem curado de averiguar e prover. Dissera a José um companheiro de viagem haver em Belém um caravançarai, providência social que à primeira vista resolverá o problema de dificuldade de instalação que vimos analisando minuciosamente, mas mesmo um rústico carpinteiro tem direito aos seus pudores, imagina-se a vergonha que para este homem seria ver a sua própria mulher exposta a curiosidades malsãs, um caravançarai inteiro a cochichar grosserias, de mais a mais esses almocreves e condutores de camelos que são tão brutos como as bestas com que andam, estando eles agravados, na comparação, por terem o divino dom da fala e elas não. Resolve pois José que irá pedir conselho e auxílio aos anciãos da sinagoga, e de si para consigo se surpreende por não haver pensado nisso antes. Agora com o coração mais desanuviado de preocupações, pensou que estaria bem perguntar a Maria como ia ela de dores, porém não pronunciou a palavra, lembremo-nos de que tudo isto é sujo e impuro, desde a fecundação ao nascimento, aquele terrífico sexo da mulher, vórtice e abismo, sede de todos os males do mundo, o interior labiríntico, o sangue e as umidades, os corrimentos, o rebentar das águas, as repugnantes secundinas, meu Deus, por que quiseste que os teus filhos dilectos, os homens, nascessem da imundície, quando bem melhor fora, para ti e para nós, que os tivesses feito de luz e transparência, ontem, hoje e amanhã, o primeiro, o do meio e o último, e assim igual para todos, sem diferença entre nobres e plebeus, entre reis e carpinteiros, apenas colocarias um sinal assustador naqueles que, crescendo, estivessem destinados a tornar-se, sem remédio, imundos. Retido por tantos escrúpulos, José acabou por fazer a pergunta num tom de meia indiferença, como se, estando ocupado com matérias superiores, condescendesse em informar-se de servidões miúdas; Como te sentes, disse, e era justamente a ocasião de ouvir uma resposta nova, pois Maria, momentos antes, tinha principiado a notar diferença no teor das dores que estivera experimentando, excelente palavra esta, mas posta ao invés, porque com outra exactidão se diria que as dores é que a estavam, finalmente, a experimentar a ela.
Nesta altura já levavam mais de uma hora de caminho, Belém não podia estar longe. Ora, sem que pudesse perceber-se porquê, porém as coisas não levam sempre, conjuntamente, a sua própria explicação, a estrada estivera deserta desde que os dois tinham saído de Jerusalém, caso digno de estranheza porque, estando Belém tão perto da cidade, o mais natural seria haver aqui um contínuo corrupio de gente e animais. Desde o sítio onde a estrada, poucos estádios depois de Jerusalém, se bifurcava, um ramo para Bercheva, este para Belém, era como se o mundo se tivesse recolhido, dobrado sobre si mesmo, pudesse o mundo ser representado por uma pessoa e diríamos que cobrira os olhos com o manto, escutando apenas os passos dos viajantes, tal com escutamos o canto de pássaros que não podemos ver, ocultos entre os ramos, eles, mas nós também, porque assim nos estarão imaginando as aves escondidas na folhagem. José, Maria e o burro tinham vindo a atravessar o deserto, pois o deserto não é aquilo que vulgarmente se pensa, deserto é tudo quanto esteja ausente dos homens, ainda que não devamos esquecer que não é raro encontrar desertos e securas mortais em meio de multidões. À direita está o túmulo de Raquel, a esposa por quem Jacob teve de esperar catorze anos, aos sete anos de serviço cumprido lhe deram Lia e só depois de outros tantos a mulher amada, que a Belém viria morrer dando à luz a criança a quem Jacob daria o nome de Benjamim, que quer dizer filho da minha mão direita, mas a quem ela, antes de morrer, chamou, com muita razão, Benoni, que significa filho da minha desgraça, permita Deus que isto não seja um agoiro. Agora já se distinguem as primeiras casas de Belém, cor de terra como as de Nazaré, mas estas parecem amassadas de amarelo e cinzento, lívidas sob o sol. Maria vai quase desmaiada, o seu corpo desequilibra-se a cada instante em cima do seirão, José tem de ampará-la, e ela, para poder segurar-se melhor, passa um braço por cima do ombro dele, pena que estejamos no deserto e não esteja aqui alguém para ver tão bonita imagem, tão fora do comum. E assim vão entrando em Belém.
Perguntou José, apesar de tudo, onde estava o caravançarai porque havia pensado que talvez pudessem descansar ali o resto do dia, e a noite, uma vez que, apesar das dores de que Maria continuava a queixar-se, não parecia que a criança estivesse para nascer já. Mas o caravançarai, do outro lado da aldeia, sujo e ruidoso, misto de bazar e estrebaria como todos, embora, por ser ainda cedo, não estivesse cheio, não tinha um sítio recatado livre, e lá para o fim do dia muito pior seria ainda, com a chegada dos cameleiros e almocreves. Tornaram atrás os viajantes, José deixou Maria num pequeno largo entre muros de casas, à sombra duma figueira, e foi-se à procura dos anciãos, como primeiro tinha pensado. Quem estava na sinagoga, um simples zelador, não pôde fazer mais do que chamar um garoto dos que andavam por ali a brincar e mandar-lhe que guiasse o forasteiro a um dos anciãos, que, assim se esperava, providenciaria. Quis a sorte, protectora de inocentes quando deles se lembra, que José, nesta nova diligência, tivesse de passar pelo largo onde deixara a mulher, foi o que valeu a Maria, a maléfica sombra da figueira quase que a estava matando, falta de atenção imperdoável de um e de outro, numa terra em que abundam estas árvores e que tem obrigação de saber o que de mau e de bom se pode esperar delas. Dali foram todos como condenados à procura do ancião, que afinal estava no campo e não voltaria tão cedo, esta foi a resposta que deram a José. Então o carpinteiro encheu-se de coragem e em voz alta perguntou se naquela casa, ou noutra, Se me estão a ouvir, alguém quereria, em nome do Deus que tudo vê, dar guarida a sua mulher, que está para ter um filho, decerto haverá por aí um canto recolhido, que esteiras trazia-as ele, E também onde é que poderei encontrar nesta aldeia uma aparadeira para ajudar ao parto, o pobre José dizia envergonhado estas coisas enormes e íntimas, ainda com mais vergonha por sentir-se corar ao dizê-las. A escrava que o atendia ao portal foi dentro com a mensagem, o pedido e o protesto, demorou-se, e voltou com a resposta de que não poderiam ficar ali, procurassem outra casa, mas não a tivessem por certa, e que a sua senhora mandara dizer que o melhor para eles ainda seria recolherem-se a uma das muitas covas que havia naquelas encostas, E a aparadeira, perguntou José, ao que a escrava respondeu que, autorizando os seus amos e aceitando-a ele, ela mesma poderia ajudar, pois não lhe haviam faltado na casa, em tantos anos, ocasiões de ver e aprender. Em verdade, muito duros são estes tempos, e agora se confirmou, que vindo bater à nossa porta uma mulher que está para ter um filho, lhe recusamos o alpendre do pátio e a mandamos parir numa cova, como as ursas e as lobas. Deu-nos, porém, a consciência um rebate, e, levantando-nos donde estávamos, fomos ver ao portal quem eram esses que buscavam abrigo por razão tão urgente e fora do comum, e quando demos com a dolorosa expressão da infeliz criatura apiedou-se o nosso coração de mulher e com medidas palavras justificamos a recusa por termos a casa cheia, São tantos os filhos e as filhas nesta casa, os netos e as netas, os genros e as noras, por isso não podíeis caber cá, mas a escrava vos levará a uma gruta que nos pertence e que tem servido de estábulo, aí ficareis cômodos, não há lá animais agora, e, tendo isto dito, e escutado os agradecimentos da pobre gente, nos retiramos para o resguardo do nosso lar, experimentando nas profundezas da alma o conforto inefável que dá a paz da consciência.
Com todo este ir e vir, este andar e estar parado, este pedir e perguntar, foi desmaiando o forte azul do céu, e o sol não tarda que se esconda por trás daquele monte. A escrava Zelomi, que esse é o seu nome, vai à frente guiando os passos, e leva um pote com brasas para o lume, uma caçoila de barro para aquecer a água, sal para esfregar o recém-nascido, não vá apanhar alguma infecção. E como de panos vem Maria servida e a faca com que se há-de cortar o cordão umbilical trá-la José no seu alforje, se Zelomi não preferir cortá-lo com os dentes, já a criança pode nascer, afinal um estábulo serve tão bem como uma casa, e só quem nunca teve a felicidade de dormir numa manjedoura ignora que nada há no mundo que se pareça mais com um berço. O burro, pelo menos, não lhe achará diferença, a palha é igual no céu e na terra. Chegaram à cova aí pela hora terça, quando o crepúsculo, suspenso, ainda dourava as colinas, e não foi a demora tanto por causa da distância, mas porque Maria, agora que levava garantida a pousada e pudera, enfim, abandonar-se ao sofrimento, pedia por todos os anjos que a levassem com cuidado, pois cada resvalo dos cascos do asno nas pedras a punha em transes de agonia. Dentro da caverna fazia escuro, a enfraquecida luz exterior detinha-se logo à entrada, porém, em pouco tempo, chegando um punhado de palha às brasas e soprando, com a lenha seca que ali havia, a escrava fez uma fogueira que era como uma aurora. Logo, acendeu a candeia que estava dependurada duma saliência da parede, e, tendo ajudado Maria a deitar-se, foi por água aos poços de Salomão, que ali são perto. Quando voltou, achou José de cabeça perdida, sem saber que fazer, e não devemos censurá-lo, que aos homens não os ensinam a comportar-se utilmente em situações destas, nem eles querem saber, o mais de que hão-de vir a ser capazes é pegar na mão da mulher sofredora e ficar à espera de que tudo se resolva em bem. Maria, porém, está sozinha, o mundo acabaria de assombro se um judeu deste tempo ousasse cometer esse pouco. Entrou a escrava, disse uma palavra animadora, Coragem, depois pôs-se de joelhos entre as pernas abertas de Maria, que assim têm de estar abertas as pernas das mulheres para o que entra e para o que sai, Zelomi já perdera o conto às crianças que vira nascer, e o padecimento desta pobre mulher é igual ao de todas as outras mulheres, como foi determinado pelo Senhor Deus quando Eva errou por desobediência, Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos nascerão entre dores, e hoje, passados já tantos séculos, com tanta dor acumulada, Deus ainda não se dá por satisfeito e a agonia continua. José já ali não está, nem sequer à entrada da cova. Fugiu para não ouvir os gritos, mas os gritos vão atrás dele, é como se a própria terra gritasse, a tais extremos que três pastores que andavam por perto com os seus rebanhos de ovelhas foram para José e perguntaram-lhe, Que é isto, que parece que a terra está gritando, e ele respondeu, É a minha mulher que dá à luz além naquela cova, e eles disseram, Não és destes sítios, não te conhecemos, Viemos de Nazaré de Galileia ao recenseamento, na hora que chegamos cresceram-lhe as dores, e agora está nascendo. O crepúsculo mal deixava ver os rostos dos quatro homens, em pouco tempo todos os traços se iriam apagar, mas as vozes prosseguiam, Tens comida, perguntou um dos pastores, Pouca, respondeu José, e a mesma voz, Quando tudo estiver terminado vem dizer-me e levar-te-ei leite das minhas ovelhas, e logo a segunda voz se ouviu, E eu queijo te darei. Houve um longo e não explicado silêncio antes que o terceiro pastor falasse. Finalmente, numa voz que parecia, também ela, vir de debaixo da terra, disse, E eu pão lhe hei-de levar.
O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo. Envolto em panos, repousa na manjedoura, não longe do burro, porém não há perigo de ser mordido, que ao animal prenderam-no curto. Zelomi saiu fora a enterrar as secundinas, ao tempo que José se vem aproximando. Ela espera que ele entre e deixa-se ficar, respirando a brisa fresca do anoitecer, cansada como se tivesse sido ela a parir, é o que imagina, que filhos seus próprios nunca os teve.
Descendo a encosta, aproximam-se três homens. São os pastores. Entram juntos na cova. Maria está recostada e tem os olhos fechados. José, sentado numa pedra, apoia o braço na borda da manjedoura e parece guardar o filho. O primeiro pastor avançou e disse, Com estas minhas mãos mungi as minhas ovelhas e recolhi o leite delas. Maria, abrindo os olhos, sorriu. Adiantou-se o segundo pastor e disse, por sua vez, Com estas minhas mãos trabalhei o leite e fabriquei o queijo. Maria acenou com a cabeça e voltou a sorrir. Então, o terceiro pastor chegou-se para diante, num momento pareceu que enchia a cova com a sua grande estatura, e disse, mas não olhava nem o pai nem a mãe da criança nascida, Com estas minhas mãos amassei este pão que te trago, com o fogo que só dentro da terra há o cozi. E Maria soube quem ele era.

Nenhum comentário:

Postar um comentário