Lembro-me de que quando estava na
sétima série o governo do Estado de São Paulo lançou um projeto de incentivo à
leitura: cada aluno recebia um kit de leitura com 03 livros. No meu caso os
livros foram “Vidas Secas”, “Morte e Vida Severina” e “Olhai os Lírios do
Campo”. Nesta época eu já era um devorador de livros, daqueles que preferia
livros a videogames, cinema, bebidas, drogas, e sexo (na época eu ainda não
sabia o que era sexo, então tenho este desconto). Meus olhos devem ter brilhado
da mais pura emoção quando peguei em minhas mãos trêmulas meu kit – uma caixa
de papelão pequena com “Governo do Estado de São Paulo” escrito na capa. E qual
não foi a minha surpresa ao ver os títulos dos livros: todos muito conhecidos
por mim, a “traça humana”.
E me lembro de que quando me pus
a ler as primeiras páginas do meu volume de “Vidas Secas” passei por algo que
nunca até então eu havia vivido: eu não só não entendia o livro, como também
não gostei nenhum pouco dele e, para piorar, odiei-o com todas as minhas forças
(que eram poucas). Era uma afronta por parte do livro fazer aquilo comigo:
enquanto os outros garotos tinham crises por motivos que nunca entendi bem
(garotas, fases difíceis de passar, campeonatos de futebol, fingir que bebia
“pra caralho” e que “pegava todas”), eu tinha minha primeira grande crise
causada por Graciliano Ramos com seu estilo repugnante (era assim como eu o
definia nesta época, mas hoje em dia eu e o Graciliano nos damos muito bem,
obrigado). E qual não foi minha surpresa quando meu professor de português me
disse que aquele era um livro simples e de fácil compreensão. Eis o erro fatal
de todo professor: dizer que isto ou aquilo é fácil, deixa profundamente
deprimido aquele aluno que, não sabendo, esforça-se por aprender. Aquela frase
simples dinamitou meus sonhos como leitor. A Literatura havia acabado para mim,
e eu havia acabado para a Literatura. Relações rompidas, cada um para o seu
canto, e não me liguem mais.
Só depois de muitos anos (na
verdade nem foram tantos assim), no início deste ano é que consegui olhar para
Vidas Secas sem torcer os lábios. Mas muita água passou por baixo desta ponte
durante esse período, muitas tardes e noites com Clarice, Virginia, Saramago,
Dostoievski, Orwell, Dickens, Tolstoi, Poe e companhia limitada me prepararam
para superar meu trauma. Li, e percebi que o livro não era, de fato, tão
difícil quanto eu pensei à época.
Sou um critico ferrenho à
“Literatura” Y.A. (Young Adults = Jovens Adultos). Acho uma “anti-literatura”,
um “lixo” (em alguns casos específicos), algo totalmente fútil. É com vergonha
que digo que sim: eu tenho preconceito literário. Ou melhor, eu tinha
preconceito literário, e vou dizer porque me livrei deste defeito.
Ao ver meu volume de “Vidas
Secas” em minha estante pensei no grande trauma, no grande medo, que uma
leitura deste livro pode gerar em um aluno da sétima série do Ensino
Fundamental de uma escola pública. Distribuir este livro para pré-adolescentes
é quase uma tortura, um crime contra a leitura. Vi este problema cotidianamente
até o fim de meus estudos na escola: o mal incentivo à leitura. Os alunos do
último ano do Ensino Médio pouco sabem ler seguindo pontuação e concordância, é
uma vergonha para qualquer brasileiro que um aluno saiba a escalação da seleção
de futebol, mas não saiba quem foi Machado de Assis ou Érico Veríssimo. Mas por
onde começar?
Nestes casos, é preciso primeiro
“ensinar” o aluno a ler: seguir pontuação, entonação e todo o resto. Depois é
preciso ensinar o que ler e não apenas como ler – é como querer que a primeira
palavra de uma criança seja “Pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico”,
ou a mais conhecida, pero não menos
complicada “Inconstitucionalissimamente” e ainda a quase desconhecida “Hipopotomonstrosesquipedaliofobia”.
Comecemos com o “papai” e com “mamãe”, tanto nas palavras quanto nos livros. E
ai entra o valor dos Y.A’s.
Assim como eu, muitos alunos, com
toda certeza, ficaram ressabiados quanto a leitura daqueles livros, e eu
pergunto: e se fosse a primeira leitura de algum desses alunos? Qual o impacto
de uma pessoa que tem como primeira leitura Graciliano Ramos? O público de uma
sétima série é composto por alunos nos primeiros anos da adolescência, e em se
tratando de uma escola pública, nem todos têm condições de obter hábitos de
leitura – ler é, muitas vezes, um luxo dos mais caros no Brasil. E se a
intenção é fazer com que alunos desenvolvam o gosto pela leitura, dar-lhes
Graciliano Ramos e companhia limitada para ler tem um efeito totalmente
contrário. Por que não Harry Potter, Crepúsculo, o recente The Fault in Our
Stars, entre tantos outros títulos? Estes são assuntos que poderão capturar
muito melhor o jovem leitor. Ler Lispector, Proust, Balzac, Kafka, Pessoa, e os
Imortais da Literatura Universal é contraindicado para iniciantes na leitura:
tais autores capturam o leitor, mas de uma maneira “negativa”, digamos assim,
pois faz com que o leitor fique preso na trama de personagens e situações um
tanto fora dos padrões do jovem leitor atual. Isso não quer dizer que a pessoa
deva parar em Y.As e fazer disso uma única leitura: esta deve ser a primeira de
muitas. Em resumo, os Young Adults devem servir como degrau para elevar o
leitor do rés do chão às alturas literárias. É preciso começar, sim. Mas em
todas as caminhadas, e principalmente nas “caminhadas literárias”, é preciso
começar devagar, seguindo o próprio ritmo, um passo de cada vez.
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