quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo XVII)



Como posso ir-me, se tenho os pés neste estado, pensou Jesus vendo afastar-se Pastor para o outro lado do rebanho. Deus, que tão limpamente fizera desaparecer a ovelha, não o beneficiara, de dentro da nuvem, com a graça do seu divino cuspo, para que o mortificado Jesus pudesse, com ele, untar e sarar as feridas por onde o sangue continuava a manar, brilhando sobre as pedras. Pastor não o ajudará, lançou as palavras cominatórias e retirou-se, como quem espera que a sentença seja cumprida e não tenciona estar presente nos preparativos da partida, e muito menos despedir-se. A custo, arrastando-se sobre os joelhos e as mãos, Jesus alcançou o bivaque, onde, a cada paragem, se arrumavam os utensílios do governo do rebanho, os tarros para o leite, as tábuas da espremedura, e também as peles de ovelha e de cabra que iam curtindo, e com que, por troca, adquiriam os bens de que precisavam, uma túnica, um manto, alimentos mais variados. Pensou Jesus que não poderiam culpá-lo se se pagasse do seu salário por suas próprias mãos, talhando das peles de ovelha umas formas de sandálias ou coturnos para envolver os pés, servindo depois para os atilhos umas tiras de pele de cabra, mais manejáveis por terem menos pêlo. Ao ajeitá-las, duvidou se a lã deveria ficar do lado de dentro ou do lado de fora, acabando por usá-la como forro, por dentro, visto o mísero estado em que tinha os pés. O mal vai ser colarem-se-lhe as feridas aos pêlos, mas, como já decidiu que o seu caminho será pela margem do Jordão, bastará que meta os pés calçados na água e aos poucos se lhe dissolverá a goma seca do sangue. O próprio peso das botifarras, que é o que mais parecem, metidas na água e ensopadas, ajudará suavemente a despegarem-se os pés do lanoso chumaço, sem levar consigo as protectoras e benfazejas crostas que aos poucos se vêm formando. Um pouco de sangue levado na corrente era sinal, pela boa cor dele, de que as feridas ainda se não haviam infectado, por muito que custe a acreditar. Jesus, na sua vagarosa caminhada para o norte, fazia pois longos descansos, deixava-se ficar sentado na margem do rio, com os pés suspensos dentro de água, a gozar da frescura e da medicina. Doía-lhe ter sido expulso daquela maneira, depois de haver-se encontrado com Deus, acontecimento inaudito no sentido pleno da palavra, pois, que ele o soubesse, não havia hoje um único homem em todo Israel que pudesse gabar-se de ter visto Deus e sobrevivido. É certo que, aquilo que se chama ver, ele não vira, mas se uma nuvem se nos apresenta no deserto, com a forma de uma coluna de fumo, e diz, Eu sou o Senhor, mantendo depois uma conversação, não apenas lógica e sensata, mas com uma expressão de autoridade sem réplica que só divina podia ser, qualquer dúvida, pequena que fosse, seria ofensa. Que o Senhor era o Senhor demonstrara-o a resposta que dera quando lhe perguntara acerca de Pastor, aquelas palavras despreocupadas, em que era patente haver um pouco de desprezo mas também de intimidade, o que fora reforçado pela recusa de responder se anjo era, ou demônio. Mas o mais interessante era que as palavras de Pastor, duras e aparentemente alheadas da questão central, não faziam mais que confirmar a verdade sobrenatural do encontro, Não te perguntei se encontraste Deus, como se estivesse a dizer, Até aí já eu sei, como se o anúncio o não tivesse surpreendido, como se o soubesse de antemão. Mas o que parecia ser certo era não lhe ter perdoado a morte da ovelha, outro sentido não podiam ter aquelas palavras finais, Não aprendeste nada, vai, e depois retirou-se ostensivamente para o outro extremo do rebanho, mantendo-se ali, de costas voltadas, até ele ter-se ido embora. Ora, numa destas ocasiões, quando Jesus deixava espraiar-se a imaginação em previsões do que viria o Senhor a querer dele quando voltassem a encontrar-se, as palavras de Pastor soaram-lhe repentinamente aos ouvidos, tão claras e distintas como se estivesse mesmo ali ao lado, Não aprendeste nada, e nesse instante o sentimento de ausência, de falta, de solidão, foi tão forte que o seu coração gemeu, ali estava ele, sozinho, sentado na margem do Jordão, olhando os pés na transparência do rio e vendo manar de um dos calcanhares um leve fio de sangue, e lentamente mover-se entre duas águas, de súbito não lhe pertenciam o sangue nem os pés, era seu pai que ali tinha vindo, coxeando com os seus calcanhares furados, a gozar do fresco do Jordão, e dizia-lhe igual que Pastor, Tens de voltar ao princípio, não aprendeste nada. Jesus, como se erguesse do chão uma pesada e longa cadeia de ferro, recordava a sua vida, elo por elo, o anúncio misterioso da sua concepção, a terra iluminada, o nascimento na cova, as crianças mortas de Belém, a crucifixão do pai, a herança dos pesadelos, a fuga de casa, o debate no Templo, a revelação de Zelomi, o aparecimento do pastor, a vida com o rebanho, o cordeiro salvo, o deserto, a ovelha morta, Deus. E como esta última palavra era demasiada para que o seu espírito pudesse ocupar-se dela, fixou-se obsessivamente num pensamento, por que é que um cordeiro que tinha sido salvo da morte veio a morrer ovelha, questão tão estúpida quanto se vê, mas que se compreenderá melhor se for assim traduzida, Nenhuma salvação é suficiente, qualquer condenação é definitiva. O último elo da corrente é este agora, estar na margem do rio Jordão, ouvindo o dolente canto de uma mulher que dali não se pode ver, escondida entre a junça, talvez lavando roupa, talvez banhando-se, e Jesus quer perceber como isto é tudo o mesmo, o cordeiro vivo que se transformou em ovelha morta, os seus pés sangrando do sangue de seu pai, e a mulher que canta, nua, deitada de costas sobre a água, os peitos duros levantados fora dela, o púbis negro soerguendo-se na ondulação da aragem, não é verdade que Jesus alguma vez tivesse visto, até hoje, uma mulher nua, mas se um homem, apenas partindo duma simples coluna de fumo, pode pôr-se a futurar o que será estar com Deus em o dia chegando a um e a outro, não se compreenderia que as minúcias de uma mulher nua, supondo que a palavra é própria, não pudessem ser imaginadas e criadas duma música que se lhe ouve cantar, mesmo sem sabermos se as palavras nos são dirigidas. José já não está aqui, regressou à vala comum de Séforis, de Pastor não assoma nem a ponta do cajado, e Deus, se está em toda a parte, como se diz, não escolheu uma coluna de fumo para mostrar-se, talvez esteja naquela água que corre, a mesma onde se banha a mulher. O corpo de Jesus deu um sinal, inchou no que tinha entre as pernas, como acontece a todos os homens e a todos os animais, o sangue correu veloz a um mesmo sítio, a ponto de se lhe secarem subitamente as feridas, Senhor, que forte é este corpo, mas Jesus não foi dali à procura da mulher, e as suas mãos repeliram as mãos da tentação violenta da carne, Não és ninguém se não te quiseres a ti mesmo, não chegas a Deus se não chegares primeiro ao teu corpo. Quem disse estas palavras, não se sabe, porém Deus não as diria, não são contas do seu rosário, de Pastor, sim, poderiam ser, se não estivesse tão longe daqui, talvez, no fim das contas, fossem as palavras da canção que a mulher cantava, nesse momento pensou como podia ser agradável ir lá pedir-lhe que lhas explicasse, mas a voz já se não ouvia, porventura a tinha levado consigo a corrente, ou a mulher, simplesmente, saíra da água para enxugar-se e vestir-se, assim calando o seu corpo. Jesus enfiou as pantufas ensopadas e pôs-se de pé, fazendo esparrinhar a água para os lados, como uma esponja. Muito irá rir a mulher, se para estes lados está vindo, ao encontrar-se com as grotescas patorras, mas pode bem ser que esse riso de troça não dure muito, quando os olhos dela subirem pelo corpo de Jesus acima, adivinhando as formas que a túnica esconde, e se detiverem a olhar os olhos dele, doridos por causas antigas e agora, por uma razão nova, ansiosos. Com poucas ou nenhumas palavras, o corpo dela tornará a despir-se, e quando tiver acontecido o que destes casos sempre se deverá esperar, ela retirar-lhe-á as sandálias com grande cuidado, curará as feridas pondo em cada pé um beijo e envolvendo-os depois, como um ovo ou um casulo, nos seus próprios cabelos úmidos. Pelo caminho não vem ninguém, Jesus olha em redor, suspira, busca um recanto escondido e para lá se encaminha, mas de súbito pára, lembrou-se a tempo de que o Senhor tirou a vida a Onan por derramar o seu sêmen no chão. Ora, tivesse Jesus dado outra mais analítica volta ao episódio clássico, o que, aliás, concordaria com os seus processos mentais, e talvez o não detivesse a impiedosa severidade do Senhor, e isto por duas razões, sendo a primeira razão não haver ali cunhada com quem devesse, pela lei, dar posteridade a um irmão morto, e sendo a segunda razão, acaso mais forte que a outra, ter o Senhor, segundo lho fizera saber no deserto, algumas firmes ainda que não reveladas ideias quanto ao seu futuro, e não ser portanto crível nem lógico que se esquecesse das promessas feitas, deitando tudo a perder só porque uma mão sem governo tinha ousado chegar-se aonde não devia, sabendo o Senhor o que são as necessidades do corpo, não é só o trivial do comer e do beber, trivial, havendo, dizemos, outros jejuns existem que não são menos custosos de aturar. Estas e outras semelhantes reflexões, que deveriam ajudar Jesus a levar por diante o humaníssimo movimento de procurar, para certo fim, um refúgio longe das vistas, acabaram por ter efeito contraproducente, distraiu-se o pensamento do que tinha em mente, achou-se envolvido nos meandros do seu próprio pensar, o resultado foi ir-se-lhe a vontade do que queria, de desejo nem falemos, que, sendo pecaminoso, um simples nada o faz hesitar e esmorecer. Resignado com a sua própria virtude, Jesus pôs o alforje ao ombro, empunhou o cajado e meteu pés ao caminho.
No primeiro dia desta viagem ao longo da margem do Jordão, o hábito de quatro anos de isolamento levara Jesus a apartar-se dos raros lugares povoados que por ali havia. Porém, à medida que se aproximava do lago de Genesaré, tornou-se cada vez mais difícil, para ele, rodear as aldeias, tanto mais que as cercavam campos cultivados, nem sempre cômodos de atravessar, tanto pelos desvios que era obrigado a fazer como pelas desconfianças que o seu ar de vagabundo despertava nos lavradores. Decidiu-se pois Jesus a ir ao mundo, e a verdade é que não desgostou do que viu, só o importunava muito o ruído, de que quase se esquecera. Na primeira destas aldeias em que entrou, um bando estúrdio de rapazes fez-lhe uma assuada tremenda às botas, boa coisa foi, afinal, porque Jesus tinha dinheiro suficiente para comprar umas sandálias novas, recordemos que não toca no dinheiro que traz, desde aquele que lhe foi dado pelo fariseu, viver quatro anos com tão pouco e não ter precisado de o gastar, foi máxima riqueza, não há que rogar mais ao Senhor. Agora, compradas as sandálias, ficou-lhe o tesouro reduzido a duas moedas de pouco valor, mas a penúria não o aflige, já pouco lhe falta para chegar ao seu destino, Nazaré, a casa, aonde é certo que vai regressar porque um dia, ao deixá-la, e parecia que para sempre a deixava, dissera, Duma maneira ou doutra, sempre voltarei. Vem sem pressa, bordejando as mil curvas do Jordão, também é verdade que o estado em que tinha os pés não lhe permitiria grandes façanhas andarilhas, mas a razão principal do vagar residia na sua própria certeza de chegar, como se pensasse, É como se já lá estivesse, mas um outro sentimento, esse menos consciente, lhe retardava ainda os passos, qualquer coisa que se poderia exprimir por palavras como estas, Quanto mais depressa chegar, mais depressa torno a partir. Subia ao longo da margem do lago, em direcção ao norte, já está à altura de Nazaré, se quisesse chegar rapidamente a casa não teria mais que rodar os calcanhares no sentido do sol-poente, mas as águas do lago retêm-no, azuis, largas, tranquilas. Gosta de sentar-se na margem a olhar a manobra dos pescadores, alguma vez, em pequeno, veio a estas paragens, acompanhando os pais, mas nunca se detivera a olhar com atenção a faina destes homens que deixam atrás de si todos os cheiros do peixe, como se eles próprios fossem habitantes do mar. Enquanto por aqui andou, Jesus ganhou o sustento ajudando no que sabia, que era nada, e no que podia, que era pouco, puxar um barco para terra ou empurrá-lo para a água, dar uma mão a uma rede que transbordava, os pescadores viam-lhe a cara de necessidade e davam-lhe dois ou três peixes espinhosos, chamados tilápias, como salário. Ao princípio, tímido, Jesus ia assá-los e comê-los à parte, mas, tendo-se demorado por ali três dias, logo ao segundo o quiseram chamar os pescadores para que com eles arranchasse. E no último dia já Jesus foi ao mar, na barca de dois irmãos que se chamavam Simão e André, mais velhos do que ele, nenhum dos dois tinha menos de trinta anos. No meio das águas, Jesus, sem experiência do ofício, ele próprio rindo da sua falta de habilidade, atreveu-se, incitado pelos seus novos amigos, a lançar a rede, naquele largo gesto que, olhado de longe, se parece com uma bênção ou um desafio, sem outro resultado que quase ter caído à água de uma das vezes em que o tentou. Simão e André riram muito, já sabiam que Jesus só percebia de cabras e ovelhas, e Simão disse, Melhor vida seria a nossa se este outro gado se deixasse levar e trazer, e Jesus respondeu, Pelo menos não se perdem, não se tresmalham, estão aqui todos na concha do mar, todos os dias a fugir da rede, todos os dias a cair nela. A pesca não tinha sido frutuosa, o fundo do barco estava pouco menos que vazio, e André disse, Mano, vamos para casa, que este dia já deu o que tinha a dar. Simão assentiu, Tens razão, mano, vamos lá. Enfiou os remos nos toletes e ia dar a primeira das remadas que os levariam à margem, quando Jesus, não creiamos que por inspiração ou pressentimento de marca maior, foi um modo, apenas, ainda que inexplicável, de demonstrar a sua gratidão, propôs que se fizessem três últimas tentativas, Quem sabe se o rebanho dos peixes, conduzido pelo seu pastor, terá vindo cá para o nosso lado. Simão riu, Essa é outra vantagem que têm as ovelhas, poderem ser vistas, e para André, Lança lá a rede, se não se ganha, também não se perde, e André lançou a rede e a rede veio cheia. Arregalaram-se de espanto os olhos dos dois pescadores, mas o assombro transformou-se em portento e maravilha quando a rede, lançada mais uma vez e outra ainda, voltou cheia duas vezes. De um mar que tão deserto de pescado antes parecera, como a água duma infusa posta à boca da fonte límpida, saíam, com nunca vista profusão, torrentes luzidias de guelras, dorsos e barbatanas em que a vista se confundia. Perguntaram Simão e André como soubera ele que o peixe ali chegara de um momento para o outro, que olhar de lince se apercebera do movimento profundo das águas, e Jesus respondeu que não, que não sabia, fora apenas uma ideia, experimentar a sorte uma última vez antes de regressarem. Não tinham os dois irmãos motivos para duvidar, o acaso faz destes e outros milagres, mas Jesus, dentro de si, estremeceu, e no silêncio da sua alma perguntou, Quem fez isto. Disse Simão, Ajuda aqui a escolher, ora, a oportunidade é boa para explicar que não foi neste mar de Genesaré que nasceu a ecumênica sentença, Tudo o que vem à rede é peixe, aqui os critérios são diferentes, peixe será o que a rede trouxe, mas a lei é claríssima neste ponto, como em todos, Eis aquilo que podereis comer dos diversos animais aquáticos, podeis comer tudo o que, nas águas, mares ou rios, tem barbatanas e escamas, mas tudo o que não tem barbatanas e escamas, nos mares ou nos rios, quer o que pulula na água, quer os animais que nela vivem, são abomináveis para vós, e abomináveis continuarão a ser, não comeis a sua carne e considerai os seus cadáveres como abomináveis, tudo o que, nas águas, não tem barbatanas e escamas, será para vós abominável. Os peixes réprobos, de pele lisa, aqueles que não podem ir à mesa do povo do Senhor, foram assim restituídos ao mar, muitos deles, mesmo, já tinham ganho o costume e não se preocupavam quando os levava a rede, sabiam que pronto tornariam à água, sem risco de morrerem sufocados. Em sua cabeça de peixes criam beneficiar duma benevolência especial do Criador, senão mesmo de um amor particular, o que os levou, ao cabo do tempo, a considerarem-se superiores aos outros peixes, os que ficavam nas barcas, que muitas e graves faltas esses deviam ter cometido a coberto das escuras águas para que Deus, assim, sem piedade, os deixasse morrer.
Quando enfim chegaram à margem, com mil artes e cuidados para não irem a pique, pois a superfície do lago lambia a borda do barco como se o quisesse engolir, a surpresa das gentes não teve explicação. Quiseram saber como aquilo acontecera, sabendo-se que os outros pescadores tinham regressado com o fundo seco, mas, de tácito e comum acordo, nenhum dos três afortunados falou das circunstâncias da pescaria prodigiosa, Simão e André para não verem publicamente diminuídos os seus méritos de práticos, Jesus por não querer que os outros pescadores o metessem, como um chamariz, nas respectivas companhas, o que, dizemos nós, seria de inteira justiça, para se acabar, de vez, com as diferenças entre filhos e enteados que tanto mal têm trazido ao mundo. Por este pensar é que Jesus anunciou, nessa noite, que na manhã seguinte partiria para Nazaré, onde o esperava a família, depois de quatro anos de ausências e de andanças que podiam dizer-se do demônio, tão afadigadas foram. Lamentaram muito Simão e André uma decisão que os privava do melhor olheiro de gado aquático de que havia memória nos anais de Genesaré, lamentaram-na também dois outros pescadores, Tiago e João, filhos de Zebedeu, moços um pouco simples, a quem, por brincadeira, costumavam perguntar, Quem é o pai dos filhos de Zebedeu, os pobres ficavam interditos, perdidos de si mesmos, e nem o facto de saberem a resposta, como está claro que sabiam, sendo eles os filhos, nem isto os poupava a um instante de perplexidade e de angústia. A pena que sentiam da saída de Jesus não era só por assim se lhes escapar a oportunidade duma famosa pescaria, mas porque, sendo novos, João era mesmo mais novo que Jesus, teriam gostado de formar com ele uma tripulação de juvenis para disputar com a geração mais velha. A sua simplicidade de espírito não era necedade nem retraso mental, iam era pela vida como se sempre estivessem a pensar noutra coisa, por isso começavam por hesitar quando se lhes perguntava como se chamava o pai dos filhos de Zebedeu e não percebiam por que se ria a gente com tanto gosto quando, triunfalmente, respondiam, Zebedeu. João ainda foi fazer uma tentativa, chegou-se a Jesus e disse-lhe, Fica connosco, a nossa barca é maior que a de Simão, apanharemos mais peixe, e Jesus, sábio e piedoso, respondeu-lhe, A medida do Senhor não é a medida do homem, mas a da sua justiça. Embatucou João, foi-se embora de cabeça baixa, e sem diligências doutros interessados se passou o serão. No dia seguinte, Jesus despediu-se dos primeiros amigos que criara nos seus dezoito anos de vida, e, de farnel aviado, virando costas a este mar de Genesaré, onde, ou muito se enganava, ou lhe fizera Deus um sinal, orientou enfim os passos para as montanhas, caminho de Nazaré. Quis, porém, o destino que, passando ele pela cidade de Magdala, se lhe rebentasse ali, do pé, uma ferida que andava renitente em sarar, e em tal jeito que parecia o sangue não querer estancar-se. Também quis o destino que o perigoso acidente tivesse ocorrido à saída de Magdala, mesmo em frente, por assim dizer à porta, de uma casa que ali havia, afastada das outras, como se não quisesse aproximar-se delas, ou elas a repelissem. Vendo que o sangue não dava mostras de querer parar, Jesus chamou, Ó de dentro, disse, e, acto contínuo, uma mulher apareceu à porta, como se justamente estivesse à espera de que a chamassem, embora, por um leve ar de surpresa que começou por aparecer-lhe na cara, pudéssemos ser levados a pensar que estaria antes habituada a que lhe entrassem pela casa dentro, sem bater, o que, se bem considerarmos as coisas, teria menos razão de ser que em outro qualquer caso, pois esta mulher é uma prostituta e o respeito que deve à sua profissão manda-lhe que feche a porta de casa quando recebe um cliente. Jesus, que estava sentado no chão, comprimindo a desatada ferida, olhou de relance a mulher que se lhe acercava, Ajuda-me, disse, e, tendo segurado a mão que ela lhe estendia, conseguiu pôr-se de pé e dar uns passos, coxeando. Não estás em estado de andar, disse ela, entra, que eu trato-te dessa ferida. Jesus não disse nem sim nem não, o odor da mulher entontecia-o, a ponto de ter-lhe desaparecido, de um momento para o outro, a dor que lhe dera ao abrir-se a chaga, e agora, com um braço por cima dos ombros dela e sentindo a sua própria cintura cingida por outro que evidentemente não podia ser seu, apercebeu-se do tumulto que lhe trespassava o corpo em todas as direcções, se não fosse mais exacto dizer sentidos, porque neles, ou em um que tem esse nome, mas que não é o ver nem o ouvir nem o cheirar nem o gostar nem o tocar, podendo no entanto levar de cada um deles uma parte, aí é que ia bater tudo, salvo seja. A mulher ajudou-o a entrar para o pátio, trancou a porta e fê-lo sentar-se, Espera, disse. Foi dentro e voltou com uma bacia de barro e um pano branco. Encheu de água a bacia, molhou o pano e, ajoelhando-se aos pés de Jesus, sustendo na palma da mão esquerda o pé ferido, lavou-o cuidadosamente, limpando-o da terra, amaciando a crosta estalada através da qual surdia, com o sangue, uma matéria amarela, purulenta, de mau aspecto. Disse a mulher, Não vai ser com água que te curarás, e Jesus disse, Só te peço que me ates a ferida de modo a poder chegar a Nazaré, depois lá me trato, ia a dizer, Minha mãe trata-me, mas emendou porque não queria parecer aos olhos desta mulher como um rapazinho que, por dar uma topada numa pedra, vai a chorar, Mãezinha, mãezinha, à espera do afago, um sopro suave no dedo ofendido, um toque dulcificante dos dedos, Não é nada, meu menino, já passou. Daqui a Nazaré ainda tens muito que andar, mas se é assim que queres, espera só que te ponha um unguento, disse a mulher, e entrou em casa, onde iria demorar-se um pouco mais que antes. Jesus olhou em redor o pátio, surpreendido porque em sua vida nunca vira nada tão limpo e arrumado. Está desconfiado de que a mulher é uma prostituta, não por particular habilidade sua em adivinhar profissões à primeira vista, ainda não há muitos dias ele próprio poderia ter sido identificado pelo cheiro a gado cabrum que  tresandava, e agora todos dirão, É pescador, foi-se aquele cheiro, outro veio, que não tresanda menos. A mulher cheira a perfume, mas Jesus, apesar da sua inocência, que não é ignorância, pois não lhe faltaram ocasiões de ver como procediam bodes e carneiros, tem bom senso que chegue para considerar que cheirar bem do corpo não é razão suficiente para afirmar que uma mulher é prostituta. Na verdade, uma prostituta deveria era cheirar ao que frequenta, a homem, como o cabreiro cheira a cabra e o pescador a peixe, mas talvez, sabe-se lá, essas mulheres se perfumem tanto justamente por quererem esconder, disfarçar ou, mesmo, esquecer o cheiro do homem. A mulher reapareceu com um pequeno boião e vinha a sorrir como se alguém, dentro de casa, lhe tivesse contado uma história divertida. Jesus via-a aproximar-se, mas, se os olhos o não estavam enganando, ela vinha muito devagar, como acontece às vezes nos sonhos, a túnica movia-se, ondulava, modelando ao andar o balanço rítmico das coxas, e os cabelos pretos da mulher, soltos, dançavam-lhe sobre os ombros como o vento faz às espigas da seara. Não havia dúvida, a túnica, mesmo para um leigo, era de prostituta, o corpo de bailarina, o riso de mulher leviana. Jesus, em aflição, pediu à sua memória que o socorresse com algumas apropriadas máximas do seu célebre homónimo e autor, Jesus, filho de Sira, e a memória serviu-o bem, murmurando-lhe discretamente, do lado de dentro do ouvido, Foge do encontro duma mulher leviana, para não caíres nas suas ciladas, e logo, Não andes muito com uma bailarina, não suceda que pereças por causa dos seus encantos, e finalmente, Nunca te entregues às prostitutas, para que não te percas a ti e aos teus haveres, perder-se este Jesus de agora bem poderá acontecer, sendo homem e tão novo, mas, quanto aos haveres, esses já sabemos que não correm perigo porque os não tem, pelo que ele próprio se achará salvo, em chegando a hora, quando a mulher, antes de fechar o contrato, lhe perguntar, Quanto tens. Preparado para tudo está, portanto, Jesus, e por isso não o apanha de surpresa a pergunta que ela lhe fez enquanto, agora posto o pé dele sobre o joelho dela, lhe cobria de unguento a ferida, Como te chamas, Jesus, foi o que respondeu, e não disse de Nazaré, porque já antes o tinha declarado, como ela, por ser aqui que vivia, não disse de Magdala, quando, ao perguntar-- lhe ele por sua vez o nome, respondeu que Maria. Com tantos movimentos e observações, acabou Maria de Magdala de fazer o penso ao dorido pé de Jesus, rematando-o com uma sólida e pertinente atadura, Aí tens, disse ela, Como te devo agradecer, perguntou Jesus, e pela primeira vez os seus olhos tocaram os olhos dela, negros, brilhantes como carvões de pedra, mas onde perpassava, como uma água que sobre água corresse, uma espécie de voluptuosa velatura que atingiu em cheio o corpo secreto de Jesus. A mulher não respondeu logo, olhava-o, por sua vez, como se o avaliasse, a pessoa que era, que de dinheiros bem se via que não estava provido o pobre moço, e por fim disse, Guarda-me na tua lembrança, nada mais, e Jesus, Não esquecerei a tua bondade, e depois, enchendo-se de ânimo, Nem te esquecerei a ti, Porquê, sorriu a mulher, Porque és bela, Não me conheceste no tempo da minha beleza, Conheço-te na beleza desta hora. O sorriso dela esmoreceu, extinguiu-se, Sabes quem sou, o que faço, de que vivo, Sei, Não tiveste mais que olhar para mim e ficaste a saber tudo, Não sei nada, Que sou prostituta, Isso sei, Que me deito com homens por dinheiro, Sim, Então é o que eu digo, sabes tudo de mim, Sei só isso. A mulher sentou-se junto dele, passou-lhe suavemente a mão pela cabeça, tocou-lhe na boca com a ponta dos dedos, Se queres agradecer-me, fica este dia comigo, Não posso, Porquê, Não tenho com que pagar-te, Grande novidade, Não te rias de mim, Talvez não creias, mas olha que mais facilmente me riria de um homem com a bolsa cheia, Não é só a questão do dinheiro, Que é, então. Jesus calou-se e voltou a cara para o lado. Ela não o ajudou, podia ter-lhe perguntado, És virgem, mas deixou-se ficar calada, à espera. Fez-se silêncio, tão denso e profundo que parecia que apenas os dois corações soavam, mais forte e rápido o dele, o dela inquieto com a sua própria agitação. Jesus disse, Os teus cabelos são como um rebanho de cabras descendo das vertentes pelas montanhas de Galaad. A mulher sorriu e ficou calada. Depois Jesus disse, Os teus olhos são como as fontes de Hesebon, junto à porta de Bat-Rabim. A mulher sorriu de novo, mas não falou. Então Jesus voltou lentamente o rosto para ela e disse, Não conheço mulher. Maria segurou-lhe as mãos, Assim temos de começar todos, homens que não conheciam mulher, mulheres que não conheciam homem, um dia o que sabia ensinou, o que não sabia aprendeu, Queres tu ensinar-me, Para que tenhas de agradecer-me outra vez, Dessa maneira, nunca acabarei de agradecer-te, E eu nunca acabarei de ensinar-te. Maria levantou-se, foi trancar a porta do pátio, mas primeiro dependurou qualquer coisa do lado de fora, sinal que seria de entendimento, para os clientes que viessem por ela, de que se havia cerrado a sua fresta porque chegara a hora de cantar, Levanta-te, vento do norte, vem tu, vento do meio-dia, sopra no meu jardim para que se espalhem os seus aromas, entre o meu amado no seu jardim e coma dos seus deliciosos frutos. Depois, juntos, Jesus amparado, como fizera antes, ao ombro de Maria, esta prostituta de Magdala que o curou e o vai receber na sua cama, entraram em casa, na penumbra propícia de um quarto fresco e limpo. A cama não é aquela rústica esteira estendida no chão, com um lençol pardo lançado por cima, que Jesus viu sempre em casa dos pais enquanto lá viveu, esta é um verdadeiro leito como o outro de que alguém disse, Adornei a minha cama com cobertas, com colchas bordadas de linho do Egipto, perfumei o meu leito com mirra, aloés e cinamomo. Maria de Magdala conduziu Jesus até junto do forno, onde o chão era de ladrilhos de tijolo, e ali, recusando o auxílio dele, por suas mãos o despiu e lavou, às vezes tocando-lhe o corpo, aqui e aqui, e aqui, com as pontas dos dedos, beijando-o de leve no peito e nas ancas, de um lado e do outro. Estes roces delicados faziam estremecer Jesus, as unhas da mulher arrepiavam-no quando lhe percorriam a pele, Não tenhas medo, disse Maria de Magdala. Enxugou-o e levou-o pela mão até à cama, Deita-te, eu volto já. Fez correr um pano numa corda, novos rumores de águas se ouviram, depois uma pausa, o ar de repente tornou-se perfumado e Maria de Magdala apareceu, nua. Nu estava também Jesus, como ela o deixara, o rapaz pensou que assim é que devia estar certo, tapar o corpo que ela descobrira teria sido como uma ofensa. Maria parou ao lado da cama, olhou-o com uma expressão que era, ao mesmo tempo, ardente e suave, e disse, És belo, mas para seres perfeito, tens de abrir os olhos. Hesitando, Jesus abriu-os, imediatamente os fechou, deslumbrado, tornou a abri-los e nesse instante soube o que em verdade queriam dizer aquelas palavras do rei Salomão, As curvas dos teus quadris são como joias, o teu umbigo é uma taça arredondada, cheia de vinho perfumado, o teu ventre é um monte de trigo cercado de lírios, os teus dois seios são como dois filhinhos gêmeos de uma gazela, mas soube-o ainda melhor, e definitivamente, quando Maria se deitou ao lado dele, e, tomando-lhe as mãos, puxando-as para si, as fez passar, lentamente, por todo o seu corpo, os cabelos e o rosto, o pescoço, os ombros, os seios, que docemente comprimiu, o ventre, o umbigo, o púbis, onde se demorou, a enredar e a desenredar os dedos, o redondo das coxas macias, e, enquanto isto fazia, ia dizendo em voz baixa, quase num sussurro, Aprende, aprende o meu corpo. Jesus olhava as suas próprias mãos, que Maria segurava, e desejava tê-las soltas para que pudessem ir buscar, livres, cada uma daquelas partes, mas ela continuava, uma vez mais, outra ainda, e dizia, Aprende o meu corpo, aprende o meu corpo.. Jesus respirava precipitadamente, mas houve um momento em que pareceu sufocar, e isso foi quando as mãos dela, a esquerda colocada sobre a testa, a direita sobre os tornozelos, principiaram uma lenta carícia, na direcção uma da outra, ambas atraídas ao mesmo ponto central, onde, quando chegadas, não se detiveram mais do que um instante, para regressarem com a mesma lentidão ao ponto de partida, donde recomeçaram o movimento. Não aprendeste nada, vai-te, dissera Pastor, e quiçá quisesse dizer que ele não aprendera a defender a vida. Agora Maria de Magdala ensinara-lhe, Aprende o meu corpo, e repetia, mas doutra maneira, mudando-lhe uma palavra, Aprende o teu corpo, e ele aí o tinha, o seu corpo, tenso, duro, erecto, e sobre ele estava, nua e magnífica, Maria de Magdala, que dizia, Calma, não te preocupes, não te movas, deixa que eu trate de ti, então sentiu que uma parte do seu corpo, essa, se sumira no corpo dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe agitando-se, e que de súbito se escapava gritando, impossível, não pode ser, os peixes não gritam, ele, sim, era ele quem gritava, ao mesmo tempo que Maria, gemendo, deixava descair o seu corpo sobre o dele, indo beber-lhe da boca o grito, num sôfrego e ansioso beijo que desencadeou no corpo de Jesus um segundo e interminável frêmito.
Durante todo o dia, ninguém veio bater à porta de Maria de Magdala. Durante todo o dia, Maria de Magdala serviu e ensinou o rapaz de Nazaré que, não a conhecendo nem de bem nem de mal, lhe viera pedir que o aliviasse das dores e curasse das chagas que, mas isso não o sabia ela, tinham nascido doutro encontro, no deserto, com Deus. Deus dissera a Jesus, A partir de hoje pertences-me pelo sangue, o Demônio, se o era, desprezara-o, Não aprendeste nada, vai-te, e Maria de Magdala, com os seios escorrendo suor, os cabelos soltos que parecem deitar fumo, a boca túmida, olhos como de água negra, Não te prenderás a mim pelo que te ensinei, mas fica comigo esta noite. E Jesus, sobre ela, respondeu, O que me ensinas, não é prisão, é liberdade. Dormiram juntos, mas não apenas nessa noite. Quando acordaram, já manhã alta, e depois de uma vez mais os seus corpos se terem buscado e achado, Maria foi ver como estava a ferida do pé de Jesus, Tem melhor ar, mas não devias ir ainda para a tua terra, vai-te fazer mal o caminho, com esse pó, Não posso ficar, e se tu mesma dizes que estou melhor, Ficar, podes, a questão é que tenhas a vontade, quanto à porta do pátio, estará fechada por todo o tempo que quisermos, A tua vida, A minha vida, nesta hora, és tu, Porquê, Respondo-te com as palavras do rei Salomão, o meu amado meteu a mão pela abertura da porta e o meu coração estremeceu, E como posso ser o teu amado se não me conheces, se sou apenas alguém que te veio pedir ajuda e de quem tiveste pena, pena das minhas dores e da minha ignorância, Por isso te amo, porque te ajudei e te ensinei, mas tu a mim é que não poderás amar-me, pois não me ensinaste nem ajudaste, Não tens nenhuma ferida, Encontrá-la-ás, se a procurares, Que ferida é, Essa porta aberta por onde entravam outros e o meu amado não, Disseste que sou o teu amado, Por isso a porta se fechou depois de entrares, Não sei nada que possa ensinar-te, só o que de ti aprendi, Ensina-me também isso, para saber como é aprendê-lo de ti, Não podemos viver juntos, Queres dizer que não podes viver com uma prostituta, Sim, Por todo o tempo que estiveres comigo, não serei uma prostituta, não sou prostituta desde que aqui entraste, está nas tuas mãos que continue a não o ser, Pedes-me demasiado, Nada que não possas dar-me por um dia, por dois dias, pelo tempo que o teu pé leve a sarar, para que depois se abra outra vez a minha ferida, Levei dezoito anos para chegar aqui, Alguns dias mais, não te farão diferença, ainda és novo, Tu também és nova, Mais velha do que tu, mais nova do que a tua mãe, Conheces a minha mãe, Não, Então por que disseste, Porque eu nunca poderia ter um filho que tivesse hoje a tua idade, Que estúpido sou, Não és estúpido, apenas inocente, Já não sou inocente, Por teres conhecido mulher, Não o era já quando me deitei contigo, Fala-me da tua vida, mas agora não, agora só quero que a tua mão esquerda descanse sobre a minha cabeça e a tua direita me abrace.
Jesus ficou uma semana em casa de Maria de Magdala, o tempo necessário para que debaixo da crosta da ferida se formasse a nova pele. A porta do pátio esteve sempre fechada. Alguns homens impacientes, picados de cio ou de despeito, vieram bater, ignorando deliberadamente o sinal que devia mantê-los afastados. Queriam saber quem era esse que se demorava tanto, e algum mais gracioso atirou por cima dos muros um dichote, Ou será porque não pode, ou será porque não sabe, abre-me a porta, Maria, que eu explico lhe como se faz, e Maria de Magdala veio ao pátio para responder, Quem quer que sejas, o que pudeste não voltarás a poder, o que fizeste não o farás mais, Maldita mulher, Vai-te, que bem enganado vais, não encontrarás no mundo mulher mais bendita do que eu sou. Fosse por este incidente ou porque assim tinha de ser, ninguém mais veio bater-lhes à porta, em todo o caso o mais provável foi que nenhum daqueles homens, moradores de Magdala ou passantes informados, tivesse querido arriscar-se a ouvir a praga que os condenaria à impotência, pois é geral convicção que as prostitutas, sobretudo as de alto coturno, diplomadas ou de largo currículo, sabendo tudo sobre as artes de alegrar o sexo de um homem, também são muito competentes para reduzi-lo a uma soturnidade irremediável, cabisbaixo, sem ânimo nem apetites. Gozaram, pois, Maria e Jesus de tranquilidade durante aqueles oito dias, durante os quais as lições dadas e recebidas acabaram por passar a um discurso só, composto de gestos, descobertas, surpresas, murmúrios, invenções, como um mosaico de tésseras que não são nada uma por uma e tudo acabam por ser depois de juntas e postas nos seus lugares. Mais de uma vez, Maria de Magdala quis voltar àquela curiosidade de saber da vida do amado, mas Jesus mudava de conversa, respondia, por exemplo, Entro no meu jardim, minha irmã, minha esposa, colho a minha mirra e o meu bálsamo, como o favo com o meu mel e bebo o meu vinho com o meu leite, e, tendo-o dito tão apaixonadamente, logo passava da recitação do versículo ao acto poético, em verdade, em verdade te digo, querido Jesus, assim não se pode conversar. Mas um dia Jesus resolveu falar do seu pai carpinteiro e da sua mãe cardadora de lã, dos seus oito irmãos, e que segundo o costume, tinha começado por aprender o ofício paterno, mas depois fora pastor durante quatro anos, que estava ali de regresso a casa, andara uns dias com pescadores, mas não chegara o tempo para aprender deles a arte. Quando Jesus isto contou, era um fim de tarde, estavam no pátio a comer, e de vez em quando levantavam a cabeça para ver o rápido voo das andorinhas que passavam soltando os seus gritos estrídulos, pelo silêncio que se fez entre os dois pareceu que ficara tudo dito, o homem confessara-se à mulher, porém, a mulher, como se nada fosse, perguntou, Só isso, ele fez um sinal afirmativo, Sim, só isto. O silêncio tornou-se completo, os círculos das andorinhas rodavam sobre outras paragens, e Jesus disse, Meu pai foi crucificado há quatro anos em Séforis, chamava-se José, Se não estou enganada, és o primogênito, Sim, sou o primogênito, Então não compreendo por que não ficaste com a tua família, era o teu dever, Houve umas diferenças entre nós, e não me perguntes mais nada, Nada que sobre a tua família seja, mas esses anos de pastor, fala-me desse tempo, Não há nada a dizer, é sempre o mesmo, são as cabras, são as ovelhas, são os cabritos, são os borregos, e leite, muito leite, leite por todos os lados, Gostaste de ser pastor, Gostei, Por que te vieste embora, Aborreci-me, tinha saudades da família, Saudade, que é isso, Pena de estar longe, Estás a mentir, Por que dizes que estou a mentir, Porque vi medo e remorso nos teus olhos. Jesus não respondeu. Levantou-se, deu uma volta pelo pátio, depois parou diante de Maria, Um dia, voltando nós a encontrar-nos, talvez te conte o resto, se então me prometeres que não dirás a ninguém, Poupavas-nos tempo se fosse já, Direi, sim, mas só se nos voltarmos a encontrar, Esperas que nessa altura eu já não seja prostituta, por agora não podes ter confiança nesta, pensas que seria capaz de vender os teus segredos por dinheiro ou dá-los a um qualquer que aí viesse, por divertimento, em troca duma noite de amor mais gloriosa do que as que eu te dei e tu me deste, Não é essa a razão por que prefiro calar-me, Pois eu digo-te que Maria de Magdala estará ao pé de ti, prostituta ou não, quando precisares dela, Quem sou eu para merecer isso, Tu não sabes quem és. Nessa noite, o antigo pesadelo voltou, depois de ter sido, apenas, nos últimos tempos, como uma angústia vaga que se infiltrava nos interstícios dos sonhos comuns, por fim habitual e suportável. Mas esta noite, talvez por ser a última que Jesus dormia naquela cama, talvez porque ele falou de Séforis e dos crucificados, o pesadelo, como uma serpente gigantesca que estivesse a acordar da hibernação, começou a desenrolar lentamente os anéis, a levantar a horrível cabeça, e Jesus acordou aos gritos, coberto de suores frios, Que tens, que tens, perguntava-lhe Maria, aflita, Um sonho, nada mais que um sonho, defendeu-se ele, Conta-mo, e esta palavra simples foi dita com tanto amor, com tanta ternura, que Jesus não pôde segurar as lágrimas e, depois das lágrimas, as palavras que quisera esconder, Sonho que meu pai me vem matar, É teu pai que está morto, tu estás aqui, vivo, Eu sou uma criança, estou em Belém da Judeia e meu pai vem matar-me, Porquê em Belém, Foi lá que nasci, Talvez penses que teu pai não queria que tivesses nascido, é o que o sonho está a dizer, Tu não sabes nada, Não, não sei, Houve crianças em Belém que morreram por causa de meu pai, Matou-as ele, Matou-as porque não as salvou, não foi a mão dele que usou o punhal, E no teu sonho és uma dessas crianças, Tenho morrido mil mortes, Pobre de ti, pobre Jesus, Foi por causa disto que saí de casa, Compreendo, enfim, Julgas que compreendes, Que mais falta, O que ainda não te posso dizer, O que me dirás se nos voltarmos a encontrar, Sim. Jesus adormeceu com a cabeça no ombro de Maria, respirando sobre o seu seio. Ela ficou acordada em todo o resto da noite. Doía-lhe o coração porque a manhã não tardaria a separá-los, mas a sua alma estava serena. O homem que repousava a seu lado era, sabia-o, aquele por quem tinha esperado toda a vida, o corpo que lhe pertencia e a quem o seu corpo pertencia, virgem o dele, usado e sujado o dela, mas há que ver que o mundo tinha começado, o que se chama começar, faz apenas oito dias, e só esta noite é que se achou confirmado, oito dias é nada se os compararmos a um futuro por assim dizer intacto, de mais sendo tão novo este Jesus que me apareceu, e eu, Maria de Magdala, eu aqui estou, deitada com um homem, como tantas vezes, mas agora perdida de amor e sem idade.
A manhã gastaram-na a preparar a viagem, que parecia que ia o rapaz para o cabo do mundo, quando não chega a duzentos estádios o que vai ter de andar, nada que um homem de normal constituição não possa fazer entre o sol do meio-dia e o crepúsculo da tarde, mesmo levando em conta que de Magdala a Nazaré nem tudo é caminho chão, por ali não faltam encostas escarpadas e pedregosos descampados. E toma tu cuidado, que andam nesses sítios bandos da guerra contra os romanos, dizia Maria, Ainda, perguntou Jesus, Tens vivido longe, isto aqui é a Galileia, E eu sou galileu, não me farão mal, Galileu não és, se foste nascer a Belém de Judeia, Meus pais conceberam-me em Nazaré, e eu, verdadeiramente, nem em Belém nasci, nasci foi numa cova, no interior da terra, e agora até me chega a parecer que voltei a nascer, aqui, em Magdala, De uma prostituta, Para mim, não és prostituta, disse Jesus, com violência, É o que tenho sido. Ficou um largo silêncio depois destas palavras, Maria à espera de que Jesus falasse, Jesus dando voltas a uma inquietação que não conseguia dominar. Por fim, perguntou, Aquilo que penduraste na porta para que nenhum homem entrasse, vais retirá-lo. Maria de Magdala olhou-o com uma expressão séria, logo sorriu, com malícia, Não poderia ter dentro de casa dois homens ao mesmo tempo, Isso que quer dizer, Que tu te vais, mas que continuas aqui. Fez uma pausa e rematou, O sinal que está dependurado na porta, continuará lá, Pensarão que estás com um homem, Se o pensarem, pensarão bem, porque estarei contigo, Ninguém mais aqui entrará, Tu disseste-o, esta mulher a quem chamam Maria de Magdala deixou de ser prostituta quando aqui entraste, De que vais viver, Só os lírios do campo crescem sem trabalhar nem fiar. Jesus tomou-lhe as mãos e disse, Nazaré não é longe de Magdala, um destes dias virei visitar-te, Se me procurares, aqui me encontrarás, O meu desejo será encontrar-te sempre, Encontrar-me-ias mesmo depois de morreres, Queres dizer que vou morrer antes de ti, Sou mais velha, de certeza morrerei primeiro, mas, se acontecesse morreres tu antes de mim, eu continuaria a viver, só para que me pudesses encontrar, E se fores tu a primeira a morrer, Bendito seja quem te trouxe a este mundo quando eu ainda estava nele. Depois disto, Maria de Magdala serviu de comer a Jesus, e ele não precisou dizer-lhe, Senta-te comigo, porque desde o primeiro dia, na casa fechada, este homem e esta mulher tinham dividido e multiplicado entre si os sentimentos e os gestos, os espaços e as sensações, sem excessivos respeitos de regra, norma ou lei. Com certeza, não saberiam como responder-nos se agora lhes perguntássemos de que modo se comportariam se não se achassem protegidos e à solta nestas quatro paredes, entre as quais puderam, por uns poucos dias, talhar um mundo à simples imagem e semelhança de homem e mulher, bem mais dela do que dele, diga-se de passagem, mas, tendo sido ambos tão peremptórios quanto aos seus futuros encontros, basta que tenhamos a paciência de esperar o lugar e a hora em que, juntos, se enfrentarão com o mundo de fora da porta, este dos que já se perguntam com inquietação, Que se passa ali dentro, e não é nas conhecidas folestrias de quarto e cama que estão a pensar. Depois de terem comido, Maria calçou as sandálias a Jesus e disse-lhe, Tens de ir, se queres chegar a Nazaré antes da noite, Adeus, disse Jesus, e, tomando o alforje e o cajado, saiu para o pátio. O céu estava nublado por igual, como um forro de lã suja, ao Senhor não devia ser fácil perceber, do alto, o que andavam a fazer as suas ovelhas. Jesus e Maria de Magdala despediram-se com um abraço que parecia não ter fim, também se beijaram, mas com menos demora, não admira, o costume do tempo não era tanto esse.


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