segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo IX)




Oito meses tinham já passado sobre o feliz dia em que José chegou a Nazaré com a sua família, sanos e salvos os humanos, apesar dos muitos perigos, menos bem o burro que coxeava um pouco da mão direita, quando houve notícia de que o rei Herodes morrera em Jericó, num dos seus palácios, onde agonizante se tinha recolhido, caídas as primeiras chuvas, para fugir às crueldades do inverno, que em Jerusalém não poupa gente enferma e delicada. Diziam também os avisos que o reino, órfão de tão grande senhor, fora dividido por três dos filhos que lhe restaram depois das razias familiares, a saber, Herodes Filipe, que ficará a governar os territórios que estão a leste da Galileia, Herodes Ântipas, que terá a vara do mando em Galileia e Pereia, e Arquelau, a quem coube Judeia, Samaria e Idumeia. Um dia destes, um almocreve de passagem, desses com jeito para contar histórias, tanto das reais como das inventadas, fará, à gente de Nazaré, o relato do funeral de Herodes, de que tinha sido, jurava, presencial testemunha, Ia posto num sarcófago de ouro todo a brilhar de pedrarias, a carroça, que dois bois brancos puxavam, era também dourada, coberta por panos de púrpura, e de Herodes, também envolto em púrpura, não se distinguia mais que o vulto e uma coroa no lugar da cabeça, os músicos que iam atrás, tocando pífaros, e as carpideiras a seguir aos músicos, é que tinham de respirar o cheiro pestilento que lhes dava em cheio nos narizes, na beira da estrada estava eu e quase me saía o estômago pela boca, e depois vinham os guardas do rei, a cavalo, à frente da tropa, armada de lanças, espadas e punhais, como se fossem para a guerra, passavam e não acabavam de passar, tal uma serpente de que não vemos nem a cabeça nem o rabo e que ao mover-se é como se não tivesse fim, entra-nos no coração o medo, assim eram aquelas tropas marchando atrás de um morto, mas também em direcção à sua própria morte, aquela de cada um, que mesmo quando parece demorar-se sempre acaba por bater-nos à porta, São horas, diz ela, pontual, sem diferença, tanto faz com reis ou com escravos, um que ia lá adiante, carne morta e corrupta, na cabeça do cortejo, outros no couce da procissão, comendo o pó de um exército inteiro, por enquanto vivos, mas já à procura, todos eles, do lugar onde ficarão para sempre. Este almocreve, pela amostra, mais bem estaria, peripatético, passeando sob os capitéis coríntios duma academia do que tocando burros pelos caminhos de Israel, dormindo em caravançarais fedorentos ou contando histórias a campónios, como estes de Nazaré.

Entre os assistentes, no largo em frente da sinagoga, estava José, calhou vir a passar por ali e deixou-se ficar a ouvir, em verdade não fora muita a atenção que começara por dar aos pormenores descritivos do cortejo fúnebre, ou sim, alguma lhes tinha dado, mas logo se lhe varreram quando o aedo passou abertamente ao estilo elegíaco, realmente o carpinteiro tinha fundadas e quotidianas razões para ser mais sensível a essa corda da harpa do que a qualquer outra. Aliás, bastava olhar para ele, esta cara não engana, uma coisa era a sua antiga compostura, a gravidade e ponderação com que buscava compensar os seus poucos anos, outra coisa, muito diferente, pior, é esta expressão de amargura que prematuramente lhe está cavando rugas a um lado e a outro da boca, fundas como talhos não cicatrizados. Mas o que há de realmente inquietante no rosto de José é a expressão do seu olhar, se não seria mais exacto dizer a falta de expressão, pois os seus olhos dão ideia de estarem mortos, cobertos de uma poalha de cinza, debaixo da qual, como uma brasa inextinguível, brilhasse um fulgor inflamado de insônia. É verdade, José quase não dorme. O sono é o seu inimigo de todas as noites, com ele tem de lutar como pela própria vida, e é uma guerra que sempre perde, mesmo que alguns combates vença, pois infalivelmente chega um momento em que o corpo exausto se entrega e adormece, para, acto contínuo, ver surgir na estrada um destacamento de soldados, no meio dos quais vai cavalgando José, algumas vezes fazendo molinetes com a espada por cima da cabeça, e é então, quando já o pavor começa a enrolar-se nas defesas conscientes do desgraçado, que o comandante da expedição lhe pergunta, Tu, aonde vais, ó carpinteiro, o pobre não quer responder, resiste com as poucas forças que lhe restam, ainda as do espírito, que o corpo sucumbiu, mas o sonho é mais forte, abre-lhe com mãos de ferro a boca cerrada, e ele, já soluçando e à beira de despertar, tem de dar a horrível resposta, a mesma, Vou a Belém matar o meu filho. Não perguntemos a José se ele se lembra de quantos bois puxaram a carroça de Herodes morto, e se eram brancos ou malhados, agora, voltando a casa, só tem pensamentos para as últimas palavras do conto do almocreve, quando ele disse que aquele mar de gente que ia no funeral, escravos, soldados, guardas reais, carpideiras, tocadores de pífaro, governadores, príncipes, futuros reis, e todos nós, onde quer que estejamos e quem quer que sejamos, não fazemos mais na vida do que procurar o lugar onde iremos ficar para sempre. Nem sempre é assim, cismava José, com uma amargura tão funda que nela não entrara a resignação que dulcifica as maiores dores e apenas podia revestir-se do espírito de renúncia de quem deixou de contar com remédio, nem sempre é assim, repetia, muitos houve que nunca saíram do lugar onde nasceram e a morte foi lá buscá-los, com o que se prova que a única coisa realmente firme, certa e garantida é o destino, é tão fácil, santo Deus, basta ficar à espera de que todo o da vida se cumpra e já poderemos dizer, Era o destino, foi o destino de Herodes morrer em Jericó e ser levado de carroça para o seu palácio e fortaleza de Herodium, mas às crianças de Belém poupou-lhes a morte todas as viagens. E aquela de José, que ao princípio, vendo os factos pelo lado optimista, parecia fazer parte de um desígnio transcendente para salvar as inocentes criaturas, afinal não serviu de nada, pois o nosso carpinteiro ouviu e calou, foi a correr salvar o filho e deixou os dos outros entregues ao fatal destino, nunca palavra veio tão a propósito. Por isso José não dorme, ou sim dorme e em ânsias desperta, atirado para uma realidade que não o faz esquecer-se do sonho, a ponto de poder-se dizer que, acordado, sonha o sonho de quando dorme, e, dormindo, ao mesmo tempo que busca desesperadamente fugir-lhe, já sabe que é para tornar a encontrá-lo, outra vez e sempre, este sonho é uma presença sentada no limiar da porta que está entre o dormir e o velar, saindo e entrando José tem de enfrentar-se com ela. Entendido já foi que a palavra que define exactamente este novelo é remorso, mas a experiência e a prática da comunicação, ao longo das idades, têm vindo a demonstrar que a síntese não passa duma ilusão, é assim, salvo seja, como uma invalidez da linguagem, não é querer dizer amor e não chegar a língua, é ter língua e não chegar ao amor.

Maria está outra vez grávida. Nenhum anjo em figura de mendigo andrajoso lhe veio bater à porta a anunciar a vinda deste filho, nenhum súbito vento varreu as alturas de Nazaré, nenhuma terra luminosa foi a enterrar ao lado da outra, Maria apenas informou José com as palavras mais simples, Estou grávida, não lhe disse, por exemplo, Olha aqui os meus olhos e vê como brilha neles o nosso segundo filho, e ele não lhe respondeu, Não julgues que não tinha reparado, estava era à espera que tu mo anunciasses, ouviu e calou, apenas disse, Ah, e continuou a empurrar a plaina sobre a tábua, com uma força eficaz mas indiferente, que o pensamento sabemos nós onde está. Também Maria o sabe, desde que numa noite mais atormentada o marido deixou que o seu segredo, até aí bem guardado, saltasse cá para fora, e ela, afinal, não ficou nem sequer surpreendida, uma coisa assim era inevitável, lembremo-nos do que disse o anjo lá na cova, Ouvirás gritar mil vezes a teu lado. Uma boa mulher diria ao seu marido, Deixa lá, o que fizeste, feito está, e além disso o teu primeiro dever era salvar o teu filho, não tinhas outra obrigação, mas a verdade é que, neste sentido comum, Maria deixou de ser a boa mulher que antes havia demonstrado ser, talvez porque ouvira do anjo aquelas outras e severas palavras que, pelo tom, a ninguém pareceram querer excluir, Não sou anjo de perdões. Se Maria estivesse autorizada a falar com José acerca destas secretíssimas coisas, talvez que ele, sendo tão versado nas escrituras, pudesse meditar sobre a natureza de um anjo que, chegado não se sabe donde, vem dizer-nos que o não é de perdões, declaração ao parecer irrelevante, pois é sabido não serem as criaturas angélicas dotadas do poder de perdoar, que só a Deus pertence. Dizer um anjo que não é anjo de perdões, ou nada significa, ou significa demasiado, vamos por hipótese, que é anjo das condenações, é como se exclamasse, Perdoar, eu, que ideia estúpida, eu não perdoo, castigo. Mas os anjos, por definição, tirando aqueles querubins de espada flamejante que foram postos pelo Senhor a guardar o caminho da árvore da vida para que não voltassem pelos frutos dela os nossos primeiros pais, ou os seus descendentes, que somos nós, os anjos, íamos dizendo, não são polícias, não se encarregam das sujas mas socialmente necessárias tarefas de repressão, os anjos existem para tornar-nos a vida fácil, amparam-nos quando vamos a cair ao poço, guiam-nos no perigoso passo da ponte sobre o precipício, puxam-nos pelo braço quando estamos quase a ser atropelados por uma quadriga sem freio ou por um automóvel sem travões. Um anjo realmente merecedor desse nome até podia ter poupado o pobre José a estas agonias, bastava que aparecesse em sonho aos pais dos meninos de Belém, dizendo a cada um, Levanta-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egipto e fica lá até que eu te avise, pois Herodes procurará o menino para o matar, e desta maneira salvavam-se os meninos todos, Jesus escondido na cova com os seus paizinhos, e os outros a caminho do Egipto, donde só regressariam quando o mesmo anjo, tornando a aparecer aos pais deles, dissesse, Levanta-te, toma o menino e sua mãe e vai para a terra de Israel, porque morreram os que atentavam contra a vida do menino. Claro que, por meio deste aviso, na aparência benevolente e protector, o anjo estaria a devolver as crianças a lugares, quaisquer que fossem, onde, no tempo próprio, se encontrariam com a morte final, mas os anjos, mesmo podendo muito, como se tem visto, levam consigo as suas limitações de nascença, nisso são como Deus, não podem evitar a morte. Pensando, pensando, José viria talvez a concluir que o anjo da cova era, afinal, um enviado dos poderes infernais, demônio desta vez em figura de pastor, com o que novamente ficaria demonstrada a fraqueza natural das mulheres e as suas viciosas e adquiridas facilitações quando sujeitas ao assalto de qualquer anjo caído. Se Maria falasse, se Maria não fosse esta arca fechada, se Maria não reservasse para si as peripécias mais extraordinárias da sua anunciação, outro galo cantaria a José, outros argumentos viriam reforçar a sua tese, sendo sem dúvida o mais importante de todos, o facto de o presumível anjo não ter proclamado, Sou um anjo do Senhor, ou, Venho em nome do Senhor, apenas informou, Sou um anjo, acautelando-se logo, Mas não o digas a ninguém, como se tivesse medo de que se soubesse. Não faltará já por aí quem esteja protestando que semelhantes miudezas exegéticas em nada contribuem para a inteligência de uma história afinal arquiconhecida, mas ao narrador deste evangelho não parece que seja a mesma coisa, tanto no que toca ao passado como no que ao futuro há-de tocar, ser-se anunciado por um anjo do céu ou por um anjo do inferno, as diferenças não são apenas de forma, são de essência, substância e conteúdo, é verdade que quem fez uns anjos fez os outros, mas depois emendou a mão.

Maria, tal como seu marido, mas já se sabe que não por idênticas razões, mostra, às vezes, um certo ar absorto, uma expressão de ausência, param-se-lhe as mãos em meio de um trabalho, o gesto interrompido, o olhar distante, de facto nada de estranhável numa mulher neste estado, se não fossem os pensamentos que a ocupam, resumíveis, todos eles, mas com infinitas variações, nesta pergunta, Por que me apareceu o anjo a anunciar o nascimento de Jesus, e agora deste filho não. Maria olha o seu primogênito, que por ali anda gatinhando como fazem todos os crios humanos na sua idade, olha-o e procura nele uma marca distintiva, um sinal, uma estrela na testa, um sexto dedo na mão, e não vê mais do que uma criança igual às outras, baba-se, suja-se e chora como elas, a única diferença é ser seu filho, os cabelos são pretos como os do pai e da mãe, as íris já vão perdendo aquele tom branquiço a que chamamos cor de leite não o sendo, tomam o seu próprio natural, o da herança genética directa, um castanho muito escuro que adquire, aos poucos, à medida que se vai afastando da pupila, uma tonalidade como de sombra verde, se assim podemos definir uma qualidade cromática, porém estas características não são únicas, só têm verdadeira importância quando o filho é nosso ou, porque dela estamos tratando, de Maria. Daqui por algumas semanas este menino fará as suas primeiras tentativas para pôr-se de pé e caminhar, irá de mãos ao chão vezes sem conta e ficará a olhar em frente, a cabeça dificilmente levantada, enquanto ouve a voz da mãe que lhe diz, Vem cá, vem cá, meu menino, e não muito tempo depois sentirá a primeira necessidade de falar, quando alguns sons novos começarem a formar-se na sua garganta, e ao princípio não saberá que fazer com eles, confundi-los-á com os outros que já conhecia e vinha praticando, os do grito e os do choro, porém não tardará a perceber que deve articulá-los de um modo muito diferente, mais compenetrado, imitando e ajudando-se com os movimentos dos lábios do pai e da mãe, até que consiga pronunciar a primeira palavra, qual ela tenha sido não sabemos, talvez papa, talvez papá, talvez mamã, o que sim sabemos é que a partir de agora nunca mais o menino Jesus terá de fazer aquele gesto do indicador da mão direita na palma da mão esquerda se a mãe e as vizinhas tornarem a perguntar-lhe, Onde é que a galinha põe o ovo, é uma indignidade a que se sujeita o ser humano, tratá-lo como um cãozito ensinado a reagir a um estímulo sonoro, voz, assobio ou estalo de chicote. Agora Jesus está capacitado para responder que a galinha pode ir pôr o ovo aonde quiser, desde que não o faça na palma da sua mão. Maria olha o filho, suspira, tem pena de que o anjo não vá voltar, Não voltarás a ver-me tão cedo, disse, se ele aqui estivesse agora não se deixaria intimidar como das outras vezes, apertá-lo-ia com perguntas até rendê-lo, uma mulher com um filho fora e outro à bica não tem nada de cordeiro inocente, aprendeu, à sua própria custa, o que são dores, perigos e aflições, e, com tais pesos colocados no prato do seu lado, pode fazer inclinar a seu favor qualquer fiel de balança. Ao anjo não bastaria ter-lhe dito, O Senhor permita que não vejas o teu filho como a mim me vês agora, que não tenho onde descansar a cabeça, em primeiro lugar teria de explicar quem era o Senhor em nome de quem parecia falar, em segundo lugar se era realmente verdade não ter onde descansar a cabeça, coisa difícil de perceber tratando-se de um anjo, ou se apenas o dizia por estar no seu papel de mendigo, em quarto lugar que futuro anunciava para o seu filho as sombrias e ameaçadoras palavras que pronunciara, e finalmente que mistério era aquele da terra luminosa, enterrada ao lado da porta, e onde nascera, depois do regresso de Belém, uma estranha planta, só caule e folhas, que já tinham desistido de cortar, depois de inutilmente terem tentado arrancá-la pela raiz, porque de cada vez tornava a nascer, e com mais força. Dois dos anciãos da sinagoga, Zaquias e Dotaim, vieram observar o caso, e, embora pouco entendidos em ciências botânicas, puseram-se de acordo para opinar que aquilo devia ser de semente que viera com a terra e que, chegando o seu tempo, rebentara, Como é lei do Senhor da vida, sentenciara Zaquias. Maria habituara-se a ver a teimosa planta, achava até que lhe dava alegria à entrada da porta, enquanto José, inconformado e com novas e palpáveis razões para alimento das suspeitas antigas, transferira a sua bancada de carpinteiro para outro local do pátio e fingia não dar pela detestada presença. Depois de usar o machado e o serrote, experimentara a água a ferver e chegara mesmo a pôr ao redor do caule um colar de carvões ardentes, só não se atrevera, por uma espécie de respeito supersticioso, a meter a enxada à terra e cavar até onde devia encontrar-se a origem do mal, a tigela com a terra luminosa. E nisto estavam quando nasceu o segundo filho, a quem deram o nome de Tiago.

Durante uns poucos de anos não houve mais mudanças na família que nascerem novos filhos, além de duas filhas, e terem perdido os pais deles o último viço que lhes ficara da juventude. Em Maria não havia que estranhar, pois sabe-se como as prenhezes, e de mais sendo tantas, acabam por dar cabo duma mulher, vai-se-lhes aos poucos a beleza e a frescura, se as tinham, emurchecem tristemente a cara e o corpo, basta ver que depois de Tiago nasceu Lísia, depois de Lísia nasceu José, depois de José nasceu Judas, depois de Judas nasceu Simão, depois Lídia, depois Justo, depois Samuel, e se mais algum veio, logo se finou, sem tempo de deixar registro. Os filhos são a alegria dos pais, diz-se, e Maria fazia tudo para parecer contente, mas, tendo de carregar meses e meses no seu cansado corpo tantos frutos gulosos das suas forças, às vezes entrava-lhe na alma uma impaciência, uma indignação à procura da sua causa, mas, sendo o tempo o que era, não pensou em pôr culpas a José, e menos ainda àquele Deus supremo que decide da vida e da morte das suas criaturas, a prova é que mesmo um cabelo da nossa cabeça não cai se não for de sua vontade. José entendia pouco dos comos e porquês de se fazerem filhos, isto é, tinha os rudimentos do prático, empíricos, por assim dizer, mas era a própria lição social, o espectáculo do mundo, que reduzia todos os enigmas a uma evidência só, a de que juntando-se macho e fêmea, conhecendo-a portanto ele a ela, resultavam bastante altas as probabilidades de gerar o homem dentro da mulher um filho, que ao cabo de nove meses, raramente sete, nascia completo. A semente do varão, lançada para dentro do ventre da mulher, levava consigo, miniatural e invisível, o novo ser que Deus tinha escolhido para prosseguir o povoamento do mundo que criara, porém isto não acontecia sempre, a impenetrabilidade dos desígnios de Deus, se precisasse de demonstração, encontrava-a no facto de não ser condição suficiente para gerar um filho, embora necessária absolutamente, derramar-se a semente do varão no interior natural da mulher. Deixando-a correr para o chão, como fizera o infeliz Onan, castigado de morte pelo Senhor por não querer fazer filhos na viúva de seu irmão, era certo e garantido que a mulher não engravidaria, mas quantas e quantas ocasiões, como dizia o outro, vai a fonte ao cântaro, e o resultado três vezes nove vinte e sete. Está provado, pois, que foi Deus quem pôs Isaac na escassa linfa que Abraão ainda estava capaz de produzir, e o empurrou para dentro do ventre de Sara, que já nem regras tinha. Vista a questão deste ângulo, digamos, teogenético, pode-se concluir, sem abusar da lógica que a tudo deve presidir neste mundo e nos outros, que o mesmo Deus era quem com tanta assiduidade incitava e estimulava José a frequentar Maria, por essa maneira o tornando em seu instrumento para apagar, por compensação numérica, os remorsos que andava sentindo desde que permitira, ou quisera, sem se dar ao trabalho de pensar nas consequências, a morte dos inocentes meninos de Belém. Mas o mais curioso, e que mostra quanto os desígnios do Senhor, além de obviamente inescrutáveis, são também desconcertantes, é que José, ainda que de um modo difuso, que mal lhe passava ao nível da consciência, supunha agir por conta própria e, acredite quem puder, com a mesma tensão de Deus, isto é, restituir ao mundo, por um afincado esforço de procriação, se não, em sentido literal, as crianças mortas, tal qual tinham sido, ao menos a contagem certa, de maneira a não se encontrar diferença no próximo recenseamento. O remorso de Deus e o remorso de José eram um só remorso, e se naqueles antigos tempos já se dizia, Deus não dorme, hoje estamos em boas condições de saber porquê, Não dorme porque cometeu uma falta que nem a homem é perdoável. A cada filho que José ia fazendo, Deus levantava um pouco mais a cabeça, mas nunca virá a levantá-la por completo, porque as crianças que morreram em Belém foram vinte e cinco e José não viverá anos suficientes para gerar tão grande quantidade de filhos numa só mulher, nem Maria, já tão cansada, já de alma e corpo tão dorida, poderia suportar tanto. O pátio e a casa do carpinteiro estavam cheios de crianças e era como se estivessem vazios.

Quando chegou aos cinco anos, o filho de José começou a ir à escola. Todas as manhãs, logo ao nascer do dia, a mãe levava-o ao encarregado da sinagoga, que, sendo os estudos do nível elementar, bastava para o efeito, e era ali, na própria sinagoga, feita sala de aula, que ele e os outros rapazinhos de Nazaré, até aos dez anos, realizavam a sentença do sábio, A criança deve criar-se na Tora como o boi se cria no curral. A lição acabava pela hora sexta, que era o nosso meio-dia de agora, Maria já estava à espera do filho, e, coitada, não podia perguntar-lhe como ia nos aproveitamentos, nem esse simples direito ela tem, pois lá diz a máxima terminante do sábio, Melhor fora que a Lei perecesse nas chamas do que entregarem-na às mulheres, também não devendo ser esquecida a probabilidade de que o filho, já razoavelmente informado sobre o verdadeiro lugar das mulheres no mundo, incluindo as mães, lhe desse uma resposta torta, daquelas capazes de reduzir uma pessoa à insignificância, que tem cada qual a sua, veja-se o caso de Herodes, tanto poder, tanto poder, e se agora formos lá vê-lo nem sequer podemos recitar, Jaz morto e apodrece, agora tudo é bafio, pó, ossos sem conserto e trapos sujos. Quando Jesus entrava em casa, o pai perguntava-lhe, Que foi que aprendeste hoje, e o menino, que tivera a sorte de nascer com uma excelente memória, repetia tintim por tintim, sem falhas, a lição do mestre, foram primeiro os nomes das letras do alfabeto, depois as palavras principais e, mais para diante, frases completas da Tora, passagens inteiras, que José acompanhava com movimentos rítmicos da mão direita, ao mesmo tempo em que acenava lentamente a cabeça. Posta de lado, era por esta maneira que Maria ia tomando conhecimento do que não podia perguntar, trata-se de um método antigo das mulheres, aperfeiçoado em séculos e milênios de prática, quando não as autorizam a averiguar por sua conta põem-se a ouvir, e em pouco tempo sabem tudo, chegando até, o que é o cúmulo da sabedoria, a separar o falso do verdadeiro. No entanto, o que Maria não conhecia, ou não conhecia bastante, era o estranho laço que unia o marido àquele filho, ainda que mesmo a um estranho não passasse despercebida a expressão, misto de doçura e mágoa, que tocava o rosto de José quando falava ao seu primogênito, como se estivesse a pensar, Este filho que eu amo é a minha dor. Maria apenas sabia que os pesadelos de José, como uma sarna da alma, não o largavam, mas essas aflições nocturnas, de tão repetidas, tinham-se já tornado num hábito, como dormir voltado para o lado direito ou acordar com sede a meio da noite. E se Maria, como boa e digna esposa, não deixara de preocupar-se com o seu marido, o mais importante de tudo para ela era ver o filho vivo e são, sinal de que a culpa não fora assim tão grande, ou o Senhor já teria mandado castigo, sem pau nem pedra, como é seu costume, haja vista o caso de Job, arruinado, leproso, e mais sempre havia sido varão íntegro e recto, temente a Deus, a sua pouca sorte foi ter-se tornado em involuntário objecto de uma disputa entre Satanás e o mesmo Deus, cada qual agarrado às suas ideias e prerrogativas. E depois admiram-se que um homem desespere e grite, Pereçam o dia em que nasci e a noite em que fui concebido, converta-se ele em trevas, não seja mencionado entre os dias do ano nem se conte entre os meses, e que a noite seja estéril e não se ouça nela nenhum grito de alegria, é verdade que a Job o compensou Deus restituindo-lhe em dobro o que em singelo lhe tirara, mas aos outros homens, aqueles em nome de quem nunca se escreveu nenhum livro, tudo é tirar e não dar, prometer e não cumprir. Nesta casa do carpinteiro, a vida, apesar de tudo, era tranquila, e na mesa, ainda que sem farturas de prosperidade, não faltara nunca o pão de cada dia e o mais de conduto que ajuda a alma a manter-se agarrada ao corpo. Entre os bens de José e os bens de Job, a única semelhança que ainda assim podia encontrar-se era no número de filhos, sete filhos e três filhas tivera Job, sete filhos e duas filhas tinha José, levando o carpinteiro a vantagem de ter posto menos uma mulher no mundo. Mas Job, antes de Deus lhe ter duplicado os bens, já era proprietário de sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas jumentas, sem contar os escravos, em quantidade, e José tem aquele burro que conhecemos e nada mais. Na verdade, uma coisa é trabalhar para sustentar duas pessoas apenas, depois uma terceira, mas essa, no primeiro ano, por via indirecta, outra é ver-se à perna com uma ranchada de filhos, que, crescendo o corpo e a necessidade, reclamam alimentos sólidos e a tempo. E como os ganhos de José não davam para admitir pessoal ao seu serviço, o recurso natural estava nos filhos, por assim dizer, à mão de semear, aliás, também por uma simples obrigação de pai, pois já lá diz o Talmude, Do mesmo modo que é obrigatório alimentar os filhos, também é obrigatório ensinar-lhes uma profissão manual, porque não o fazer será o mesmo que tornar o filho num bandido. E se recordarmos o que ensinavam os rabis, O artesão no seu trabalho não deve levantar-se ante o maior doutor, podemos imaginar com que orgulho profissional começava José a instruir os seus filhos mais velhos, um após outro, à medida que chegavam à idade, primeiro Jesus, depois Tiago, depois José, depois Judas, nos segredos e tradições da arte carpinteira, atento ele, também, à antiga sentença popular que assim reza, O trabalho do menino é pouco, mas quem o desdenha é louco, foi o que depois veio a chamar-se trabalho infantil. A José pai, quando ao trabalho voltava depois da comida da tarde, ajudavam-no os seus próprios filhos, exemplo verdadeiro duma economia familiar que poderia vir a dar excelentes frutos até aos dias de hoje, porventura mesmo uma dinastia de carpinteiros, se Deus, que sabe o que quer, não tivesse querido outra coisa.

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