Atrás de tempo, tempo vem, é sentença conhecida e de
muita aplicação, porém não tão óbvia quanto pode parecer a quem se satisfaça
com o significado próximo das palavras, quer soltas, uma por uma, quer juntas e
articuladas, pois tudo vai é da maneira de dizer, e esta varia com o sentimento
de quem as expresse, não é o mesmo pronunciá-las alguém que, correndo-lhe mal a
vida, espere dias melhores, ou atirá-las como ameaça, como prometida vingança
que o futuro haverá de cumprir. O caso mais extremo seria o de uma pessoa que,
sem fortes e objectivas razões de queixa quanto à sua saúde e bem-estar,
suspirasse melancolicamente, Atrás de tempo, tempo vem, só por ser de natureza
pessimista e atreita a prever o pior. Não seria de todo crível que Jesus, na
sua idade, andasse com estas palavras na boca, qualquer que fosse o sentido em
que as usasse, mas nós, sim, que, como Deus, tudo sabemos do tempo que foi, é e
há-de ser, nós podemos pronunciá-las, murmurá-las ou suspirá-las enquanto o
vamos vendo entregue à sua faina de pastor, por essas montanhas de Judá, ou
descendo, no tempo próprio, ao vale do Jordão. E não tanto por de Jesus se
tratar, mas porque todo o ser humano tem por diante, em cada momento da sua
vida, coisas boas e coisas más, atrás de umas, outras, atrás de tempo, tempo.
Sendo Jesus o evidente herói deste evangelho, que nunca teve o propósito
desconsiderado de contrariar o que escreveram outros e portanto não ousará
dizer que não aconteceu o que aconteceu, pondo no lugar de um Sim um Não, sendo
Jesus esse herói e conhecidas as suas façanhas, ser-nos-ia muito fácil chegar
ao pé dele e anunciar-lhe o futuro, o bom e maravilhoso que será a sua vida,
milagres que darão de comer, outros que restituirão a saúde, um que vencerá a
morte, mas não seria sensato fazê-lo, porque o moço, ainda que dotado para a
religião e entendido em patriarcas e profetas, goza do robusto cepticismo
próprio da sua idade e mandar-nos-ia passear. Mudará de ideias, claro está,
quando se encontrar com Deus, mas esse decisivo acontecimento não é para
amanhã, daqui até lá ainda Jesus vai ter de subir e descer muito monte, mungir
muita cabra e muita ovelha, ajudar a fabricar o queijo, ir à troca de produtos
às aldeias. Também matará animais doentes ou estropiados, e chorará por eles.
Mas o que nunca lhe irá acontecer, sosseguem os espíritos sensíveis, é cair na
horrível tentação de usar, como lhe propôs o malicioso e pervertido Pastor, uma
cabra ou uma ovelha, ou as duas, para descarga e satisfação do sujo corpo com
que a límpida alma tem de viver. Esqueçamo-nos, por não ser aqui lugar de
análises íntimas, só possíveis em tempos futuros a este, de que, quantas e
quantas vezes, para poder exibir e gabar-se de um corpo limpo, a alma a si
mesma se carregou de tristeza, inveja e imundície.
Pastor e Jesus, passados aqueles enfrentamentos
éticos e teológicos dos primeiros dias, contudo ainda por algum tempo
recidivantes, levaram sempre, enquanto juntos, uma boa vida, o homem ensinando
sem impaciências demais velho as artes da pastorícia, o rapaz aprendendo-as
como se a sua vida fosse depender maximamente delas. Jesus aprendeu a lançar o
cajado, rodopiando e zumbindo pelo ar até ir cair nos lombos dumas ovelhas que,
por distracção ou atrevimento, se afastavam do rebanho, mas essa foi uma dorida
aprendizagem, porque um dia, não estando ainda seguro da técnica, atirou o pau
demasiado por baixo, com o trágico resultado de, na trajectória, apanhar em
cheio o tenro pescocinho de um cabrito de poucos dias, que no mesmo instante
ali morreu. Acidentes destes podem ocorrer a qualquer pessoa, até um pastor
veterano e diplomado não está livre de lhe acontecer um azar, mas o pobre
Jesus, que já tantas dores transporta consigo, parecia uma estátua da amargura
quando levantou do chão, ainda quente, o cabritinho. Não havia nada a fazer, a
própria cabra mãe, depois de farejar por um momento o filho, afastou-se e
continuou a pastar, rapando a erva rasa e dura, que repuxava com secos
movimentos da cabeça, aqui devemos citar o conhecido refrão, Cabra que berra,
bocada que erra, que é outra maneira de dizer o mesmo, Chorar e comer não faz
bom viver. Pastor veio ver o que sucedera, O mal é dele, que morreu, tu não
fiques triste, Matei-o, lamentou-se Jesus, e era tão pequeno, Sim, se fosse um
bode feio e fedorento não terias pena, ou não terias tanta, põe-no no chão, que
eu trato dele, e tu vai-te além, está lá uma ovelha em jeito de parir, Que vais
fazer, Esfolá-lo, que é que julgas, vida não posso dar-lha, não sou competente
em obras milagrosas, Faço jura de não comer dessa carne, Comer o animal que
matamos é a única maneira de respeitá-lo, mau é comerem uns o que outros
tiveram de matar, Não o comerei, Pois não comas, mais fica para mim, Pastor
tirou a faca da cinta, olhou Jesus e disse, Mais tarde ou mais cedo, também
isto terás de aprender, ver como são feitos por dentro aqueles que foram
criados para nos servir e alimentar. Jesus virou a cara para o lado e deu um
passo para retirar-se, mas Pastor, que detivera o movimento da faca, ainda
disse, Os escravos vivem para servir-nos, talvez devêssemos abri-los para
sabermos se levam escravos dentro, e depois abrir um rei para ver se tem outro
rei na barriga, e olha que se encontrássemos o Diabo e ele deixasse que o
abríssemos, talvez tivéssemos a surpresa de ver saltar Deus lá de dentro.
Falamos, antes, de recidivas dos choques de ideias e convicções entre Jesus e
Pastor, e este é um exemplo. Mas Jesus, com o tempo, aprendera que a melhor
resposta seria calar, não se dar por achado perante as provocações, mesmo
brutais, como esta, e ainda assim vai com sorte, podia ter sido bem pior,
imagine-se o escândalo se Pastor se lembrava de abrir Deus para ver se o Diabo
lá estava dentro. Jesus foi à procura da ovelha que estava a parir, ao menos
ali não o esperavam surpresas, apareceria um cordeiro igual a todos,
verdadeiramente à imagem e semelhança da mãe, por sua vez retrato fiel das suas
irmãs, há seres assim, não levam dentro de si senão isso, a certeza de uma
pacífica e não interrogativa continuidade. A ovelha já parira, no chão o anho
parecia feito só de pernas, e a mãe tentava ajudá-lo a erguer-se dando-lhe
leves empurrões com o focinho, mas o pobre, estonteado, apenas sabia fazer
movimentos bruscos com a cabeça como se procurasse o melhor ângulo de visão
para entender o mundo em que nascera. Jesus ajudou-o a firmar-se nas patas,
ficaram-lhe as mãos úmidas dos humores da matriz da ovelha, mas ele não se
importou nada, é o que faz viver no campo com animais, cuspo e baba é tudo o
mesmo, este cordeiro vem em boa altura, tão bonito, com o pêlo frisado, já a
sua boca rósea e frenética buscava o leite onde o havia, naquelas tetas que ele
nunca vira antes, com as quais não podia ter sonhado no útero da mãe, em
verdade nenhuma criatura pode queixar-se de Deus, se logo ao nascer já vem a
saber tantas coisas úteis. Lá adiante Pastor levantava a pele do cabrito
esticada numa armação de paus em forma de estrela, o corpo esfolado, agora
dentro do alforje, embrulhado num pano, será salgado quando o rebanho parar
para passar a noite, menos a parte de que Pastor entender fazer a sua ceia, que
Jesus já disse que não comerá duma carne a que, sem querer, tirou a vida. Para
a religião que cultiva e os costumes a que obedece, estes escrúpulos de Jesus
são subversivos, haja vista a matança desses outros inocentes todos os dias
sacrificados nos altares do Senhor, maiormente em Jerusalém, onde as vítimas se
contam por hecatombes. No fundo, talvez que o caso de Jesus, à primeira vista
incompreensível nas circunstâncias de tempo e de lugar, seja apenas uma questão
de sensibilidade, por assim dizer, em carne viva, recordemos quão próxima está
ainda a trágica morte de José, quão próximas as revelações insuportáveis do que
aconteceu em Belém vai fazer quinze anos, caso para admirar é que este rapaz
mantenha o seu juízo inteiro, que não tenha sido tocado nas polias e roldanas
do miolo, apesar daqueles sonhos que não o largam, ultimamente não temos falado
deles, mas continuam. Quando o sofrimento passa a mais, indo ao ponto de
transmitir-se ao próprio rebanho que acorda, noite alta, julgando que o vêm
matar, Pastor acorda-o suavemente, Que é isso, que é isso, diz, e Jesus sai do
pesadelo para os braços dele, como se do seu desgraçado pai se tratasse. Um
dia, logo ao princípio, Jesus contou a Pastor o que sonhava, tentando, porém,
disfarçar as raízes e as causas da sua nocturna e quotidiana agonia, mas Pastor
disse, Deixa, não vale a pena contares-mo, sei tudo, até aquilo que estás a
tentar esconder-me. Foi isto naqueles dias em que Jesus recriminava Pastor pela
sua falta de fé e pelos defeitos e maldades que se deduziam e reconheciam no
seu comportamento, incluindo, perdoe-se-nos que voltemos ao assunto, o sexual.
Mas Jesus, vendo bem, não tinha ninguém no mundo, se exceptuarmos a família, de
que se afastou e de que quase anda esquecido, salvo a mãe, que sempre é a mãe,
aquela que nos deu o ser, e a quem algumas vezes na vida apeteceu dizer, Antes
não tivesses dado, além da mãe, só a irmã Lísia, não se sabe porquê, a memória
tem destas coisas, razões suas próprias para lembrar-se e esquecer-se. Sendo
estas coisas o que são, Jesus acabou por sentir-se bem na companhia de Pastor,
imaginemo-lo por nós, a consolação que será não vivermos sozinhos com a nossa
culpa, ter ao lado alguém que a conhecesse e que, não tendo de fingir perdoar o
que perdão não possa ter, supondo que estaria em seu poder fazê-lo, procedesse
connosco com rectidão, usando de bondade e de severidade segundo a justiça de
que seja merecedora aquela parte de nós que, cercada de culpas, conservou uma
inocência. Isto nos ocorreu explicar agora, aproveitando o a propósito, para
que com mais facilidade se pudessem entender as razões, e recebê-las por boas,
por que Jesus, em tudo tão diferente e contrário ao seu rude hospedeiro, virá
afinal a ficar com ele até ao anunciado encontro com Deus, de que tanto há a
esperar, pois Deus não iria aparecer a um simples mortal sem ter para isso
fortes razões.
Antes, porém, vão querer as circunstâncias, os
acasos e as coincidências de que tanto se tem falado, que Jesus encontre sua
mãe e alguns dos seus irmãos em Jerusalém, por ocasião desta primeira Páscoa
que ele julgava ir viver longe da família. Que Jesus quisesse celebrar a Páscoa
em Jerusalém, poderia ter sido, para o pastor, causa de estranheza e motivo de
liminar recusa, estando eles no deserto e precisando o rebanho de tanta cópia
de assistência e cuidados, sem contar, claro está, que não sendo Pastor judeu
nem tendo outro deus para honrar, podia, que mais não fosse por antipática
embirração, dizer, Pois não vai, não senhor, aqui é que é o seu lugar, patrão
sou eu e não vou de férias. Ora, há que reconhecer que não foi assim, Pastor
apenas perguntou, Voltas, se bem que, pelo tom de voz, parecia estar seguro de
que Jesus voltaria, e foi o que o rapaz respondeu, sem hesitação, mas
surpreendido, ele sim, por lhe ter saído tão pronta a palavra, Volto, Escolhe
então aí um cordeiro limpo e são e leva-o para o sacrifício, já que vocês são dados
a esses usos e costumes, mas isto disse-o Pastor a experimentar, queria ver se
Jesus era capaz de conduzir à morte um cordeiro daquele rebanho que tanto
trabalho lhes dava a guardar e defender. A Jesus ninguém o avisou, não se lhe
chegou de mansinho um anjo, dos outros pequenos e quase invisíveis, a
sussurrar-lhe ao ouvido, Cuidado, olha que é uma armadilha, não te fies, esse
sujeito é capaz de tudo. A sua simples sensibilidade é que lhe encontrou a boa
resposta, ou teria sido, quem sabe, a lembrança do cabrito morto e do anho
nascido, Não quero cordeiro deste rebanho, disse, Porquê, Não levaria à morte o
que ajudei a criar, A mim parece-me isso muito bem, mas já pensaste, creio, que
em outro rebanho o haverás de buscar, Não posso evitá-lo, os cordeiros não
descem do céu, Quando queres partir, Amanhã cedo, E voltas, Volto. Sobre este
assunto não disseram mais palavra, apesar de nos ficarem dúvidas de como irá
Jesus, que não é rico e trabalha pela comida, comprar o cordeiro pascal.
Estando ele tão livre de tentações que custem dinheiro, é de presumir que ainda
traga consigo aquelas poucas moedas que o fariseu lhe deu há quase um ano, mas
esse pouco é pouco mesmo, sabido, como foi dito já, que nesta época do ano os
preços do gado em geral, e especialmente dos cordeiros, disparam para alturas
tão especulativas que é, verdadeiramente, um Deus nos acuda. Apesar do que de
mau lhe tem sucedido, apeteceria dizer que a este rapaz uma boa estrela o cuida
e defende, se não fosse suspeitosíssima debilidade, sobretudo em boca de
evangelista, este ou outro qualquer, acreditar que corpos celestes tão
afastados do nosso planeta possam produzir efeitos decisivos na existência de
um ser humano, por muito que a esses astros tenham invocado, estudado e
relacionado os solenes magos que, se é verdade o que se diz, teriam andado por
estes paramos aqui há uns anos, sem mais consequência que ver o que viram e ir
à vida. O que este discurso longo e trabalhoso pretende afinal dizer é que o
nosso Jesus há-de encontrar, de certeza, maneira de apresentar-se dignamente no
Templo com o seu borreguito, cumprindo o que se espera do bom judeu que tem
provado ser, em tão difíceis condições como foram os valentes enfrentamentos
que sustentou com Pastor.
Por este tempo gozava o rebanho dos abundantes
pastos do vale de Ayalon, que está entre as cidades de Gezer e Emaús. Em Emaús
tentou Jesus ganhar algum dinheiro com que pudesse comprar o cordeiro de que
precisava, mas rapidamente chegou à conclusão de que um ano de pastor o
especializara de tal maneira que o tornara inapto para outros ofícios,
incluindo o de carpinteiro, em que, aliás, não chegara a progredir coisa que se
visse, por falta de tempo. Meteu-se por isso ao caminho que sobe de Emaús para
Jerusalém, deitando contas à sua difícil vida, comprar já sabemos que não pode,
roubar já sabíamos que não quer, e mais milagre seria do que sorte achar ele um
cordeiro que na estrada de Emaús se tivesse perdido. Não faltam aqui os
inocentes, vão com uma corda ao pescoço atrás das famílias, ou ao colo se lhes
calhou o conforto de um dono piedoso, mas, como meteram nas suas juvenis
cabeças que saíram a passeio, vão excitados, nervosos, querem saber tudo, e,
porque não podem fazer perguntas, usam os olhos, como se eles bastassem para
entender um mundo feito de palavras. Jesus sentou-se numa pedra, à beira do caminho,
a pensar na maneira de resolver o problema material que o está impedindo de cumprir
um dever espiritual, vã esperança, por exemplo, seria aparecer-lhe aí outro
fariseu, ou o mesmo, se de tais actos faz prática quotidiana, a perguntar, ele
sim, com palavras, Precisas de um cordeiro, como antes lhe tinha perguntado,
Tens fome. Da primeira vez, Jesus não precisou esmolar para que lhe fosse dado,
agora, sem a certeza de que lhe darão, vai ser obrigado a pedir. Já tem a mão
estendida, postura que de tão eloquente dispensa explicações, e tão forte em
expressão que o mais comum é desviarmos dela os olhos como os desviamos duma
chaga ou duma obscenidade. Algumas moedas foram deixadas cair por viandantes menos
distraídos na concha da mão de Jesus, mas tão poucas que não vai ser por este
andar que o caminho de Emaús chegará às portas de Jerusalém. Somados o dinheiro
que já tinha e o que lhe deram, não dá nem para metade de um cordeiro, e é por de
mais sabido que o Senhor não aceita nos seus altares nada que não esteja
perfeito e completo, por isso é que rejeita o animal cego, aleijado ou
mutilado, sarnento ou com verrugas, imagine-se o escândalo no Templo se nos
apresentássemos ao sacrifício com os quartos traseiros de um animal, e ainda
assim sob condição de que os testículos dele não estivessem pisados, esmagados,
quebrantados ou cortados, caso em que a exclusão estaria igualmente certa.
Ninguém se lembra de perguntar a este rapaz para que quer ele o dinheiro, isto
se começou a escrever no exacto instante em que um homem de muita idade, com
uma comprida barba branca, se aproximava de Jesus, deixando a sua numerosa família,
que, por deferência para com o patriarca, parou no meio da estrada, à espera. Pensou
Jesus que vinha ali outra moeda, mas enganou-se. O velho perguntou-lhe, Quem és
tu, e o rapaz levantou-se para responder, Sou Jesus de Nazaré, Não tens
família, Tenho, Por que não estás então com ela, Vim trabalhar de pastor para a
Judeia, e esta foi uma maneira mentirosa de dizer a verdade ou de pôr a verdade
a servir a mentira. O velho olhou-o com uma expressão de curiosidade
insatisfeita e perguntou, enfim, Por que pedes tu esmola, se tens um ofício,
Trabalho pela comida, e não tenho dinheiro que chegue para comprar o cordeiro
da Páscoa, Por isso pedes, Sim. O velho fez sinal a um dos homens do grupo, Dá
um cordeiro a este rapaz, compramos outro em chegando ao Templo. Os anhos eram
seis, atados a uma mesma corda, o homem soltou o último e foi levá-lo ao velho,
que disse, Aqui tens o teu cordeiro, assim não achará o Senhor falta nos
sacrifícios desta Páscoa, e sem esperar pelos agradecimentos foi juntar-se à
família que o recebeu sorridente e com aplauso. Jesus deu-lhes as graças quando
já não podiam ouvi-las, e não se sabe como nem porquê a estrada ficou deserta
nesse instante, entre uma curva e outra curva não havia mais que estes dois, o
rapaz e o cordeiro, encontrados finalmente no caminho de Emaús por obra da
bondade de um judeu velho. Jesus segura a ponta do baraço que prendera o anho à
corda, o animal olhou o seu novo dono e baliu, fez mé-é-é-é naquele jeito
tímido e trêmulo dos cordeiros que vão morrer jovens por os amarem tanto os
deuses. Este som, quantas mil vezes ouvido durante a sua novel actividade de
pastor, tocou o coração de Jesus em ponto de sentir que se lhe dissolviam de
pena os membros, ali estava, como nunca antes desta maneira absoluta, senhor da
vida e da morte de outro ser, este cordeiro branco, imaculado, sem vontade nem
desejos, que levantava para ele um focinho interrogativo e confiante,
via-se-lhe a língua rósea quando balia, e era róseo, por baixo da penugem, o
interior das orelhas, e róseas ainda as unhas, que nunca hão-de vir a endurecer
e a mudar para cascos um nome por enquanto comum aos homens. Jesus acariciou a cabeça
do cordeiro, que correspondeu levantando-a e roçando-lhe a palma da mão com o
nariz úmido, fazendo-o estremecer. O encantamento desfez-se como principiara,
ao fundo da estrada, do lado de Emaús, apareciam já outros peregrinos num
tropel esvoaçante de túnicas, alforjes e bordões, com outros cordeiros e outros
louvores ao Senhor. Jesus pegou no seu anho ao colo, como uma criança, e
começou a caminhar.
Não voltara a Jerusalém desde aquele distante dia em
que aqui o trouxera a necessidade de saber quanto valem culpas e remorsos, e
como se hão-de eles suportar na vida, se partilhados, como os bens da herança,
ou por inteiro guardados, como cada um a sua própria morte. A multidão nas ruas
parecia um rio de lama pardacenta que ia desaguar na grande esplanada fronteira
à escadaria do Templo. Com o cordeiro nos braços, Jesus assistia ao desfilar da
gente, uns que iam, outros que vinham, aqueles levando os animais ao
sacrifício, estes já sem eles, de rosto alegre, gritando Aleluia, Hosana, Ámen,
ou não o dizendo por não ser o próprio da ocasião, como próprio também não
seria sair-se alguém a exclamar Evoé ou berrando Rip hip hurrah, ainda que, no
fundo, as diferenças entre estas expressões não sejam tão grandes quanto parecem,
empregamo-las como se fossem quintessências do sublime, e depois, com a
continuação do tempo e do uso, ao repeti-las, perguntamo-nos, Para que serve
isto, afinal, e já não sabemos responder. Por cima do Templo, a alta coluna de
fumo, enovelada, contínua, mostrava a toda a terra em redor que quantos ali
tinham ido a sacrificar eram directos e legítimos descendentes de Abel, aquele
filho de Adão e Eva que ao Senhor, naquele tempo, oferecera primogênitos do seu
rebanho e as gorduras deles, favoravelmente recebidos, enquanto seu irmão Caim,
não tendo para apresentar mais do que simples frutos da terra, viu que o
Senhor, sem que se soubesse até hoje porquê, deles desviou os olhos e para ele
não olhou. Se esta foi a causa de matar Caim a Abel, hoje podemos viver descansados,
que não se matarão estes homens uns aos outros, pois todos sacrificam, por
igual, o mesmo, é ver como as gorduras crepitam, como as carnes rechinam, Deus,
nas empíreas alturas, respira, comprazido, os odores da carnagem. Jesus apertou
o cordeiro contra o peito, não compreende por que não aceita Deus que no seu
altar se derrame uma concha de leite, sumo da existência que passa de um ser a
outro ser, ou nele se espalhe, com um gesto de semeador, um punhado de trigo,
matéria entre todas substantiva do pão imortal. O seu cordeiro, que ainda há
pouco foi oferta admirável de um velho a um rapaz, não verá pôr-se o sol deste
dia, é tempo de subir a escada do Templo, tempo de levá-lo ao cutelo e ao fogo,
como se não fosse merecedor de viver ou tivesse cometido, contra o eterno
guardião dos pastos e das fábulas, o crime de beber do rio da vida. Então
Jesus, como se uma luz houvesse nascido dentro dele, decidiu, contra o respeito
e a obediência, contra a lei da sinagoga e a palavra de Deus, que este cordeiro
não morrerá, que o que lhe tinha sido dado para morrer continuará vivo, e que,
tendo vindo a Jerusalém para sacrificar, de Jerusalém partirá mais pecador do
que quando cá entrou, já não lhe bastavam as faltas antigas, agora caiu em mais
esta, o dia chegará, porque Deus não esquece, em que terá de pagar por todas
elas. Durante um momento, o temor do castigo fê-lo hesitar, mas a mente, numa
rapidíssima imagem, representou-lhe a visão aterradora de um mar de sangue
infinito, o sangue dos inumeráveis cordeiros e outros animais sacrificados
desde a criação do homem, que para isso mesmo é que a humanidade foi posta
neste mundo, para adorar e sacrificar. A tal ponto o perturbaram estas
imaginações que lhe pareceu ver a escadaria do Templo alagada de vermelho, escorrendo
em toalhas de degrau em degrau, e ele próprio ali, com os pés no sangue,
levantando ao céu, degolado, morto, o seu cordeiro. Abstraído, Jesus era como
se estivesse no interior duma bolha de silêncio, mas de repente a bolha
estalou, rompeu-se em pedaços, e ele achou-se outra vez mergulhado no meio da
algazarra das palavras, das bênçãos, dos apelos, dos gritos, dos cânticos, das
vozes patéticas dos cordeiros, e, num instante que fez calar tudo isto, o
mugido profundo, três vezes repetido, do chofar, o longo e espiralado chifre do
carneiro, feito trombeta. Envolvendo o anho no alforje, como para defendê-lo
duma ameaça agora iminente, Jesus correu para fora da esplanada, perdeu-se nas
ruas mais estreitas, sem se preocupar com a direcção em que ia. Quando deu por
si, estava no campo, saíra da cidade pela porta do norte, a de Ramalá, a mesma
por onde entrara quando viera de Nazaré. Sentou-se debaixo duma oliveira, à
beira da estrada, e retirou o cordeiro do alforje, ninguém se estranharia de o
ver ali, pensariam, Está a descansar da caminhada, a ganhar forças para ir ao
Templo levar o cordeiro, bonito é ele, não saberemos, nós, se, na ideia de quem
o pensou, o bonito é o anho, ou é Jesus. Temos cá a nossa opinião, que os dois
o são, mas, se tivéssemos de votar, assim à primeira vista, daríamos a maçã ao
cordeiro, porém com uma condição, não crescer. Jesus está deitado de costas,
segura a ponta do baraço para que o cordeiro não fuja, mas nem seria precisa a
precaução, que as forças do pobrezinho estão por um fio, não é só a pouca
idade, é também a agitação, esta correria, este contínuo levar e trazer, sem
falar do pouco alimento que lhe foi deixado hoje pela manhã, que não convém nem
é decente ir-se alguém, borrego seja ou mártir, a morrer de barriga cheia. Deitado
está pois Jesus, aos poucos calmou-se-lhe a respiração, e olha o céu por entre
as ramagens da oliveira que o vento move suavemente, fazendo dançar sobre os
seus olhos os raios de sol que passam pelos interstícios das folhas, deve ser
mais ou menos a hora sexta, a luz zenital reduz as sombras, ninguém diria que a
noite virá apagar, com o seu lento sopro, este deslumbramento de agora. Jesus
já descansou, agora fala ao cordeiro, Vou-te levar para o rebanho, diz, e
começa a levantar-se. Na estrada passam algumas pessoas, outras vêm atrás, e
quando Jesus põe os olhos nestas leva um sobressalto, o seu primeiro movimento
é para fugir, mas claro que não o fará, como se atreveria, se quem ali vem é
sua mãe com alguns dos seus irmãos, os mais velhos, Tiago, José e Judas, também
vem Lísia, mas essa é mulher, leva menção à parte, não a que lhe caberia
naturalmente se seguíssemos a ordem dos nascimentos, entre Tiago e José. Ainda
não o viram. Jesus desce à estrada, tem outra vez o cordeiro ao colo, mas agora
suspeita-se que o faz para ter os braços ocupados. O primeiro que dá por ele é
Tiago, levanta um braço, depois fala precipitadamente para a mãe, e Maria olha,
agora apressam todos o passo, por isso Jesus sente-se obrigado a fazer também a
sua parte de caminho, porém, tendo o cordeiro ao colo, não pode correr, tanto
tempo isto leva a explicar que parece que não queremos que estes se encontrem,
mas não é isso, o amor maternal, fraternal e filial dar-lhes-ia asas, mas há
reservas, certos constrangimentos, sabemos como se separaram, não sabemos que
efeitos causaram tantos meses de afastamento e falta de notícias. Andando,
sempre se acaba por chegar, aí estão eles, frente a frente, Jesus diz, A tua
bênção, mãe, e a mãe diz, O Senhor te abençoe, meu filho. Abraçaram-se, depois
foi a vez dos irmãos, Lísia veio no fim, posto o que, bem o tínhamos previsto,
ninguém soube o que havia de dizer, Maria não ia perguntar ao filho, Que
surpresa, por aqui, nem ele à mãe, Estava longe de te encontrar, por que vieste
à cidade, o cordeiro de um e o cordeiro dos outros, que o traziam, falavam por
si, é a Páscoa do Senhor, a diferença é que um vai morrer e o outro já se
salvou. Nunca mais deste notícia de ti, disse Maria enfim, e neste momento
soltaram-se-lhe as fontes dos olhos, era o seu primogênito que ali estava, tão
alto, a cara já de homem, com uns começos de barba, e a pele escura de quem
leva a vida debaixo do sol, de frente para o vento e a poeira do deserto. Não
chores, mãe, tenho o meu trabalho, sou pastor, Pastor, Sim, Cuidava eu que
terias seguido o ofício que teu pai te ensinou, Calhou ser pastor, é o que sou,
Quando voltas para casa, Ah, isso não sei, um dia, Ao menos, vem com a tua mãe
e os teus irmãos, vamos juntos ao Templo, Não vou ao Templo, mãe, Porquê, ainda
tens aí o teu cordeiro, Este cordeiro não vai ao Templo, Tem defeito, Nenhum
defeito, este cordeiro só morrerá quando chegar a sua hora natural, Não te
compreendo, Não precisas compreender, se salvo este cordeiro é para que alguém
me salve a mim, Então, não vens com a tua família, Já ia de partida, Para onde
vais, Vou para onde pertenço, para o rebanho, E onde anda ele, Agora está no
vale de Ayalon, Onde fica esse vale de Ayalon, Do outro lado, Do outro lado de
quê, De Belém. Maria recuou um passo, tornou-se pálida, podia-se ver como
envelhecera, apesar de ter apenas trinta anos, Por que falas de Belém,
perguntou, Porque foi lá que encontrei o pastor que me governa, Quem é ele, e
antes que o filho tivesse tempo de responder disse para os outros, Sigam,
esperem por mim na porta, depois agarrou Jesus pela mão, puxou-o para a beira
da estrada, Quem é ele, repetiu, Não sei, respondeu Jesus, Tem nome, Se o tem,
não mo disse, chamo-lhe Pastor, nada mais, Como é, Grande, Onde estavas quando
o encontraste, Na cova onde nasci, Quem te lá levou, Uma escrava chamada Zelomi
que esteve no meu nascimento, E ele, Ele, quê, Que te disse, Nada que tu não
saibas. Maria deixou-se cair no chão como se uma mão poderosa a tivesse
empurrado, Esse homem é um demônio, Como sabes, disse-to ele, Não, a primeira
vez que o vi disse-me que era um anjo, mas que o não dissesse eu a ninguém,
Quando foi que o viste, No dia em que teu pai soube que eu estava grávida de
ti, apareceu-nos à porta como um mendigo e disse que era um anjo, Viste-o
outras vezes, Na estrada, quando fomos, teu pai e eu, a Belém, para o
recenseamento, na cova onde nasceste, e na noite depois do dia em que te foste
de casa, entrou no pátio, eu pensei que fosses tu, mas era ele, vi-o pela
frincha da porta arrancar a árvore que estava ao lado da entrada, lembras-te, a
árvore que tinha nascido no sítio onde se enterrou a tigela com a terra que
brilhava, Que tigela, que terra, Nunca soubeste, foi o que o mendigo me deu
antes de se ir embora, uma terra que brilhava dentro da tigela onde tinha
comido o que lhe dei, Para da terra ter feito luz, seria realmente um anjo, Ao
princípio acreditei que o fosse, mas o diabo também tem as suas artes. Jesus
tinha-se sentado ao lado da mãe e deixara o cordeiro à vontade, Sim, já
compreendi que, quando um e outro estão de acordo, não se pode distinguir um
anjo do Senhor de um anjo de Satã, disse, Fica connosco, não voltes para esse
homem, pede-to a tua mãe, Prometi que voltaria, cumprirei a minha palavra,
Promessas ao diabo, só se for para enganá-lo, Este homem, que não é homem, bem
o sei, este anjo ou este demônio acompanha-me desde que nasci e eu quero saber
porquê, Jesus, meu filho, vem ao Templo com a tua mãe e com os teus irmãos,
leva esse cordeiro ao altar como é teu dever e destino dele, e pede ao Senhor
que te livre de possessões e maus pensamentos, Este cordeiro morrerá no seu
dia, Este é o seu dia de morrer, Mãe, os cordeiros que de ti nasceram terão de
morrer, mas tu não hás-de querer que morram antes do seu tempo, Cordeiros não
são homens, muito menos se esses homens são filhos, Quando o Senhor mandou a
Abraão que matasse seu filho Isaac, não se percebia então a diferença, Sou uma
simples mulher, não te sei responder, só te peço que abandones esses maus
pensamentos, Ó minha mãe, os pensamentos são o que são, sombras que passam, e
não são bons nem maus em si mesmos, só as acções é que contam, Louvado seja o
Senhor que me deu um filho sábio, a mim que sou uma pobre ignorante, mas sempre
te digo que essa não é ciência de Deus, Também se aprende com o Diabo, E tu
estás em poder dele, Se foi pelo poder dele que este cordeiro teve a sua vida
salva, alguma coisa se ganhou hoje no mundo. Maria não respondeu. Vindo da
porta da cidade, Tiago aproximava-se. Então Maria levantou-se, Encontrei o meu
filho e tornei a perdê-lo, disse, e Jesus respondeu, Se não o tinhas perdido
já, não foi agora que o perdeste. Meteu a mão no alforje, tirou o dinheiro que
juntara, de esmolas todo, É quanto tenho, Tantos meses para tão pouco, Trabalho
pela comida, Muito deves tu querer a esse homem que te governa, para que com
tão pouco te contentes, O Senhor é o meu pastor, Não ofendas a Deus, tu que
vives com um demônio, Quem sabe, minha mãe, quem sabe, pode ser que ele seja um
anjo servidor doutro deus e morando noutro céu, O Senhor disse Eu sou o Senhor,
não terás outro deus além de mim, Ámen, rematou Jesus. Tomou o anho nos braços
e disse, Já aí vem Tiago, adeus, minha mãe, e Maria disse, Parece até que tens
mais amor a esse cordeiro que à tua família, Neste momento, sim, respondeu
Jesus. Sufocada de dor e indignação, Maria deixou-o e correu ao encontro do
outro filho. Não se voltou nunca para trás.
Pelo lado de fora das muralhas, agora por outro
caminho, atravessando os campos, Jesus começou a longa descida para o vale de
Ayalon. Parou numa aldeia, comprou, com o dinheiro que a mãe não tinha querido
aceitar, algum alimento, pão e figos, leite para si e para o cordeiro, era
leite de ovelha, diferenças, se as havia, não se notavam, ao menos neste caso é
possível aceitar que uma mãe valha a outra. A quem estranhasse vê-lo por ali
àquela hora, gastando dinheiro com um cordeiro que já devia estar morto,
poderíamos responder que este rapaz, antes, fora dono de dois cordeiros, que um
deles foi sacrificado e está na glória do Senhor, e que a este o rejeitou o
mesmo Senhor por sofrer de defeito, uma orelha rasgada, Veja, Mas a orelha está
inteira, disseram, Pois se está, eu mesmo a rasgo, diria Jesus, e, pondo o
cordeiro sobre os ombros, seguiu o seu caminho. Avistou o rebanho quando já a última
luz da tarde declinava, mais depressa ainda porque o céu se ensombrecera de
escuras nuvens baixas. Respirava-se na atmosfera a tensão que prenuncia as
trovoadas, e, para confirmá-lo, o primeiro relâmpago rasgou os ares no momento
preciso em que o rebanho apareceu aos olhos de Jesus. Não choveu, era uma
daquelas trovoadas que denominamos secas, que assustam mais do que as outras,
porque perante elas nos sentimos realmente sem defesa, sem a cortina, para lhe
chamarmos assim, e que nunca imaginaríamos protectora, da chuva e do vento, em
verdade esta batalha é um enfrentamento directo, entre um céu que se rasga e
atroa e uma terra que estremece e se crispa, impotente para responder aos
golpes. A cem passos de Jesus, uma luz deslumbrante, insuportável, fendeu de
alto a baixo uma oliveira, que acto contínuo pegou fogo, ardendo com força, tal
um archote de nafta. O choque e o estrondo do trovão, como se o céu se tivesse
rasgado, de uma vez, entre horizonte e horizonte, atiraram Jesus ao chão, sem
conhecimento. Outros dois raios caíram, um aqui, outro além, como duas
decisivas palavras, e depois, aos poucos, os trovões começaram a ouvir-se mais
distantes, até se perderem num murmúrio amável, uma conversa de amigos entre o
céu e a terra. O cordeiro, que saíra ileso da queda, aproximou-se, passado o
susto, e veio tocar com a boca a boca de Jesus, não fungou, não farejou, foi
apenas um toque, e foi, quem somos nós para duvidar, o suficiente. Jesus abriu
os olhos, viu o cordeiro, depois o céu escuríssimo, como uma mão negra que
sufocasse o que restava do dia. A oliveira ardia ainda. Ao mover-se, Jesus
sentiu dores, mas percebeu que era senhor do seu corpo, se tal se pode dizer do
que, com tanta facilidade, pode ser destruído e lançado por terra.
Dificilmente, conseguiu sentar-se, e, mais pelo pressentimento do tacto do que
pela certificação dos olhos, comprovou que não estava queimado nem tolhido, que
não tinha qualquer membro partido, e que, exceptuando uma fortíssima zoeira na
cabeça, que parecia, porém, interminável, um ronco de chofar, estava vivo e
são. Puxou o cordeiro para si e, indo buscar as palavras aonde não sabia que as
tinha, disse, Não tenhas medo, ele só quis mostrar-te que te poderia ter morto,
se quisesse, e a mim veio dizer-me que não fui eu quem te salvou a vida, mas
ele. Um lento e último trovão alastrou no espaço como um suspiro, lá em baixo a
mancha alvacenta do rebanho era um oásis à espera. Lutando ainda contra os
membros entorpecidos, Jesus começou a descer a encosta. O cordeiro, só por
cautela preso pelo baraço, trotava ao seu lado como um cãozito. Atrás deles, a
oliveira ardia. E foi à luz que ela projectava, mais que à do crepúsculo que se
extinguia, que Jesus viu levantar-se na sua frente, como uma aparição, a alta
figura de Pastor, envolto naquele manto que parecia não ter fim, segurando o
cajado com que poderia, se o levantasse, tocar as nuvens. Disse Pastor, Sabia
que a trovoada estava à tua espera, E eu devia sabê-lo, disse Jesus, Que
cordeiro é esse, O dinheiro que tinha não chegava para comprar o cordeiro da
Páscoa, por isso pus-me à beira da estrada a pedir, mas veio um velho e deu-me
este que aqui vês, Por que não o sacrificaste, Não pude, não fui capaz. Pastor
sorriu, Percebo melhor agora, esperou por ti, deixou-te vir em paz até ao rebanho
para mostrar, à minha vista, a sua força. Jesus não respondeu, tinha dito ao
cordeiro mais ou menos o mesmo, mas não queria, ainda mal chegara, alimentar
uma conversa mais sobre as razões de Deus e os seus actos. E agora, esse
cordeiro, que queres fazer com ele, Nada, trouxe-o para que ficasse com o
rebanho, Os cordeiros brancos são todos iguais, amanhã já não o reconhecerás no
meio dos outros, Ele conhece-me, Chegará o dia em que começará a esquecer-te,
além disso vai-se cansar de ser ele sempre a procurar-te, o remédio seria
marcá-lo, dar-lhe um golpe numa orelha, por exemplo, Pobre bichinho, Não sei
porquê, tu também estás marcado, cortaram-te o prepúcio para se saber a quem
pertences, Não é o mesmo, Não devia ser, mas é. Enquanto falavam, Pastor tinha
juntado alguma lenha e agora ocupava-se a acender uma fogueira, petiscando
lume. Disse Jesus, Era mais fácil ir buscar ali um ramo à oliveira que está a
arder, e Pastor respondeu, Ao fogo do céu há que deixá-lo consumir-se por si
mesmo. O tronco da oliveira era agora uma inteira brasa, refulgindo na
escuridão, o vento arrancava-lhe faúlhas, pedaços incandescentes da casca,
gravetos que voavam ardendo e logo se apagavam. O céu mantinha-se pesado,
insolitamente presente. Do que era seu habitual passadio fizeram Pastor e Jesus
ceia, o que levou Pastor a comentar, irônico, Este ano não comes o cordeiro
pascal. Jesus ouviu e calou, mas no seu íntimo não ficou contente, o seu
problema, a partir de agora, iria ser a insolúvel contradição entre comer os
cordeiros e não matar os cordeiros. Então, que lhe fazemos, perguntou Pastor, e
continuou, O cordeiro, marca-se, ou não se marca, Não sou capaz, disse Jesus,
Dá-mo cá, eu trato disso. Com um movimento rápido e firme da faca, Pastor
seccionou a ponta de uma das orelhas, depois, segurando o pequeno pedaço
cortado, perguntou, Que queres que lhe faça, enterro-o, deito-o fora, e Jesus,
sem pensar, respondeu, Dá-mo, e deixou-o cair no fogo. Como fizeram ao teu
prepúcio, disse Pastor. Da orelha do cordeiro gotejava um sangue lento, pálido,
que em pouco tempo se estancaria. Das chamas, com o fumo, espalhava-se o cheiro
inebriante da tenra carne queimada. Assim, ao cabo do longo dia, depois de
tantas horas passadas em demonstrações pueris e presunçosas de um querer
contrário, o Senhor recebia, finalmente, o que lhe era devido, quem sabe se
graças àquele majestoso e atroador aviso dos trovões e coriscos, que, pela via
irresistível das causalidades profundas, teria encontrado o caminho para
fazer-se obedecer pelos renitentes pastores. Caiu a última gota de sangue do
cordeiro, e a terra logo a bebeu, porque não estaria bem, de tão disputado
sacrifício, perder-se o mais precioso.
Ora, foi este, precisamente, o animal, já
transformado pelo tempo numa vulgaríssima ovelha, apenas distinta das outras em
faltar-lhe a ponta duma orelha, que, passados uns três anos, veio a perder-se
em umas agrestes paragens ao sul de Jericó, lindando com o deserto. Num tão
grande rebanho como este, uma ovelha a mais ou a menos parece que tanto faz,
mas este gado, se ainda precisamos lembrá-lo, não é como os outros, tão-pouco
os pastores têm semelhanças com os que conhecemos de ver ou ouvir dizer, pelo
que não se deve estranhar que Pastor, olhando de um cômoro sobranceiro, desse
pela falta duma cabeça de gado sem que, para isso, tivesse tido que contá-las
todas. Chamou Jesus e disse-lhe, A tua ovelha não está no rebanho, vai
procurá-la, e como Jesus, em resposta, não perguntou, E como sabes tu que a
ovelha é a minha, não o perguntaremos nós também. O que, sim, agora importa é
vermos como, apenas entregue à sua pouca ciência dos lugares e à falível
intuição de caminhos onde ninguém os tinha traçado antes, vai Jesus orientar-se
neste redondo completo do horizonte. Vindo eles das bandas férteis de Jericó,
onde não quiseram demorar-se por mais estimarem a tranquilidade de um contínuo
vaguear do que o fácil comércio das gentes, o mais provável seria perder-se a
pessoa, ou a ovelha, sobretudo se de caso pensado o tinham feito, em sítios
onde a canseira de buscar alimento, por excessiva, não fosse agravante da
procurada solidão. Por esta lógica, estava claro que a ovelha de Jesus, de modo
dissimulado, como quem não quer a coisa, se tinha deixado ficar para trás,
devendo estar agora a retouçar nos verdes da fresca margem do Jordão, à vista
de Jericó, por maior segurança. Porém, a lógica não é tudo na vida, e não é
raro que justamente o previsível, que o é por ser o remate mais plausível duma
sequência, ou porque, simplesmente, havia sido já anunciado antes, não é raro, dizíamos,
que o previsível, levado por razões que só ele conhece, acabe por escolher,
para enfim revelar-se, uma conclusão por assim dizer aberrante, quer quanto ao
lugar, quer quanto à circunstância. Se este é o caso, então deverá o nosso
Jesus procurar a sua extraviada ovelha, não naqueles viçosos prados da
retaguarda, mas na árida e requeimada secura do deserto que tem pela frente, de
nada servindo aqui a fácil objecção de que a ovelha não teria decidido
perder-se para ir morrer de fome e de sede, primeiro, porque ninguém sabe o que
se passa realmente no cérebro duma ovelha, segundo, considerando a já referida
imprevisibilidade a que o previsível recorre algumas vezes. Ao deserto irá pois
Jesus, para lá se encaminha já, sem que Pastor se tenha surpreendido com a
resolução, antes, calado, a aprovou, num lento e solene movimento da cabeça
que, estranha ideia, podia ser também tomado como um aceno de despedida.
Este deserto de aqui não é uma daquelas largas,
longas e conhecidas extensões de areia que o mesmo nome usam. Este deserto de
aqui é mais um mar de secas e duras colinas arenosas, encavaladas umas nas
outras, criando um labirinto inextricável de vales, no fundo dos quais mal
sobrevivem umas raras plantas que parecem só feitas de espinhos e cerdas, e a
que talvez pudessem atrever-se as sólidas gengivas duma cabra, mas que
rasgariam, ao primeiro contacto, os beiços sensíveis duma ovelha. Este deserto
de aqui é mais assustador do que os formados apenas de lisas areias ou daquelas
dunas instáveis que mudam constantemente de forma e de feitio, neste deserto
cada colina oculta e anuncia a ameaça que nos espera na colina seguinte, e,
quando a esta chegamos, tremendo, logo sentimos que a ameaça, a mesma, passou
para trás das nossas costas. Aqui, o grito que dermos não responderá, pelo eco,
à voz que o atirou, o que ouviremos, sim, em resposta, é as próprias colinas
gritando, ou o desconhecido, o não sabido, que nelas teima em esconder-se. Eis
que, pois, munido somente do seu cajado e do alforje, Jesus entrou no deserto.
Poucos passos adiante, mal acabara de cruzar o limiar do mundo, percebeu,
subitamente, que as velhas sandálias que haviam sido de seu pai se lhe estavam
desfazendo debaixo dos pés. Muito tinham durado, ainda assim, pela virtude
remendeira das tombas nelas lançadas assiduamente, às vezes in extremis, mas
agora as artes cordoeiras e sapateiras de Jesus já não podiam acudir a
sandálias que tantos e tantos caminhos tinham andado e tanto suor amassado em
pó. Como se estivessem obedecendo a uma ordem, esgarçavam-se os últimos fios,
soltavam-se, frouxas, as tiras, partiam-se sem remédio os atilhos, em menos
tempo do que o que levou a contar ficaram descalços os pés de Jesus, sobre os
restos. Lembrou-se o rapaz, chamamos-lhe assim por hábito adquirido, que aos
dezoito anos, sendo judeu, mais é homem feito e refeito do que mocinho
adolescente, lembrou-se Jesus das suas antigas sandálias, transportadas todo este
tempo no alforje como uma relíquia sentimental do passado, e, movido por uma vã
esperança, tentou calçá-las. Razão tivera Pastor quando lhe disse, Pés que
crescem não voltam a encolher, a Jesus custava-lhe a entender que alguma vez os
seus pés tivessem podido caber nestas sandálias minúsculas. Estava descalço
frente ao deserto, como Adão quando o expulsaram do paraíso, e, tal como ele,
hesitou antes de dar o primeiro doloroso passo sobre o torturado chão que o
chamava. Mas depois, sem ter-se perguntado por que o ia fazer, talvez só porque
de Adão se lembrara, deixou cair o alforje e o cajado, e, levantando a túnica
pela fímbria, fê-la sair por cima da cabeça num só gesto, ficando, como Adão,
nu. Aqui, onde está, já não o vê Pastor, nenhum borrego curioso o seguiu, do ar
veem-no apenas os poucos pássaros que por esta fronteira ainda se atrevem, e os
bichos da terra, que são formigas, alguma escolopendra, um lacrau que, de
susto, levanta o aguilhão venenoso, estes não têm memória de homem nu nestes
sítios, nem sabem para que serve. Se o perguntassem a Jesus, Por que te
desnudaste, talvez ele respondesse de uma maneira incompreensível para o
entendimento de heminópteros, miriápodes e aracnídeos, Ao deserto só é possível
ir nu. Nu, dizemos nós, apesar dos espinhos que rasgam a pele e arrepelam os
pelos do púbis, nu apesar das arestas que cortam e das areias que esfolam, nu
apesar do sol que queima, reverbera e deslumbra, nu, enfim, para procurar a
ovelha perdida, aquela que nos pertence porque com a nossa marca a marcamos. O
deserto abre-se aos passos de Jesus, para logo se fechar, como se lhe cortasse
o caminho de retirada. O silêncio ressoa nos ouvidos com o som de um búzio,
daqueles que vêm mortos e vazios à praia e ali se deixam ficar, a encherem-se
do vasto rumor das ondas, até que alguém passa e os encontra e, levando-os
devagar ao ouvido, põe-se à escuta e diz, O deserto. Os pés de Jesus sangram, o
sol afasta as nuvens para feri-lo de espada nos ombros, os espinhos cortam-lhe
a pele das pernas como unhas sôfregas, as cerdas chicoteiam-no, Ovelha, onde
estás, grita ele, e as colinas passam palavra, Onde estás, onde estás,
dissessem elas isto apenas e saberíamos, enfim, o que é o eco perfeito, mas o
longo e remoto som do búzio sobrepõe-se, murmurando, Deeeeeeuuus, Deeeeeeuuus,
Deeeeeeuuus. Então, como se de súbito as colinas se tivessem arredado do seu
caminho, Jesus saiu do labirinto dos vales para um espaço circular liso e
arenoso onde, no centro exacto, viu a ovelha. Correu para ela, tanto quanto lho
permitiam os pés feridos, mas uma voz deteve-o, Espera. Uma nuvem da altura de
dois homens, que era como uma coluna de fumo girando lentamente sobre si mesma,
estava diante dele, e a voz viera da nuvem. Quem me fala, perguntou Jesus,
arrepiado, mas adivinhando já a resposta. A voz disse, Eu sou o Senhor, e Jesus
soube por que tivera de despir-se no limiar do deserto. Trouxeste-me aqui, que
queres de mim, perguntou, Por enquanto nada, mas um dia hei-de querer tudo, Que
é tudo, A vida, Tu és o Senhor, sempre vais levando de nós as vidas que nos
dás, Não tenho outro remédio, não podia deixar atravancar-se o mundo, E a minha
vida, querê-la para quê, Não é ainda tempo de o saberes, ainda tens muito que
viver, mas venho anunciar-te, para que vás bem dispondo o espírito e o corpo,
que é de ventura suprema o destino que estou a preparar para ti, Senhor, meu
Senhor, não compreendo nem o que dizes nem o que queres de mim, Terás o poder e
a glória, Que poder, que glória, Sabê-lo-ás quando chegar a hora de te chamar
outra vez, Quando será, Não tenhas pressa, vive a tua vida como puderes,
Senhor, eis-me aqui, se nu me trouxeste diante de ti, não demores, dá-me hoje o
que tens guardado para dar-me amanhã, Quem te disse que tenciono dar-te alguma
coisa, Prometeste, Uma troca, nada mais que uma troca, A minha vida por não sei
que pago, O poder, E a glória, não me esqueci, mas se não me dizes que poder, e
sobre quê, que glória, e perante quem, será como uma promessa que veio cedo de
mais, Tornarás a encontrar-me quando estiveres preparado, mas os meus sinais
acompanhar-te-ão desde agora, Senhor, diz-me, Cala-te, não perguntes mais, a
hora chegará, nem antes nem depois, e então saberás o que quero de ti,
Ouvir-te, meu Senhor, é obedecer, mas tenho de fazer-te ainda uma pergunta, Não
me aborreças, Senhor, é preciso, Fala, Posso levar a minha ovelha, Ah, era
isso, Sim, era só isso, posso, Não, Porquê, Porque ma vais sacrificar como
penhor da aliança que acabo de celebrar contigo, Esta ovelha, Sim, Sacrifico-te
outra, vou ali ao rebanho e volto já, Não me contraries, quero esta, Mas
repara, Senhor, que tem defeito, a orelha cortada, Enganas-te, a orelha está
intacta, repara, Como é possível, Eu sou o Senhor, e ao Senhor nada é
impossível, Mas esta é a minha ovelha, Outra vez te enganas, o cordeiro era meu
e tu tiraste-mo, agora a ovelha paga a dívida, Seja como queres, o mundo todo
pertence-te e eu sou o teu servo, Sacrifica então, ou não haverá aliança, Mas
vê, Senhor, que estou nu, não tenho cutelo nem faca, estas palavras disse-as
Jesus cheio de esperança de poder ainda salvar a vida da ovelha, e Deus
respondeu-lhe, Não seria eu o Senhor se não pudesse resolver-te essa
dificuldade, aí tens. Palavras não eram ditas, apareceu aos pés de Jesus um
cutelo novo, Vá, despacha-te, tenho mais que fazer, disse Deus, não posso ficar
aqui eternamente. Jesus empunhou o cutelo, avançou para a ovelha que levantava
a cabeça, hesitante em reconhecê-lo, pois nunca o tinha visto nu, e, como é por
de mais sabido, o olfacto destes animais não vale grande coisa. Estás a chorar,
perguntou Deus, Tenho os olhos sempre assim, disse Jesus. O cutelo subiu, tomou
o ângulo do golpe, e caiu velozmente como o machado das execuções ou a
guilhotina que ainda falta inventar. A ovelha não soltou um som, apenas se
ouviu, Aaaah, era Deus suspirando de satisfação. Jesus perguntou, E agora,
posso-me ir embora, Podes, e não te esqueças, a partir de hoje pertences-me,
pelo sangue, Como devo ir-me de ti, Em princípio, tanto faz, para mim não há
frente nem costas, mas o costume é ir recuando e fazendo vênias, Senhor, Que
enfadonho és, homem, que temos mais agora, O pastor do rebanho, Que pastor, O
que anda comigo, Quê, É um anjo, ou um demônio, alguém que eu conheço, Mas
diz-me, é anjo, é demônio, Já to disse, para Deus não há frente nem costas,
passa bem. A coluna de fumo estava e deixou de estar, a ovelha desaparecera, só
o sangue ainda se percebia, e esse procurava esconder-se na terra.
Quando Jesus chegou ao campo, Pastor olhou-o
fixamente e perguntou, A ovelha, e ele respondeu, Encontrei Deus, Não te
perguntei se encontraste Deus, perguntei-te se achaste a ovelha, Sacrifiquei-a,
Porquê, Deus estava lá, teve de ser. Com a ponta do cajado, Pastor fez um risco
no chão, fundo como rego de arado, intransponível como uma vala de fogo, depois
disse, Não aprendeste nada, vai.
Nenhum comentário:
Postar um comentário