sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo XV)




Muito se tem falado das coincidências de que a vida é feita, tecida e composta, mas quase nada dos encontros que, dia por dia, vão acontecendo nela, e isso não obstante serem os ditos encontros, quase sempre, os que a mesma vida orientam e determinam, embora, em defesa daquela percepção parcial das contingências vitais, fosse possível argumentar que um encontro é, no seu mais rigoroso sentido, uma coincidência, o que não significa, claro está, que todas as coincidências tenham de ser encontros. No geral dos casos deste evangelho tem havido coincidências avonde, e, quanto aos particulares da vida de Jesus propriamente dita, sobretudo desde que, tendo ele saído de casa, passamos a prestar-lhe uma atenção exclusiva, pode-se observar que não lhe têm faltado os encontros. Deixando de lado a infortunada peripécia com os ladrões de estrada, por não serem ainda futuráveis os efeitos que em futuro próximo e distante ela possa vir a ter, esta primeira viagem independente de Jesus tem-se mostrado assaz rica de encontros, como foi o aparecimento providencial do fariseu filantropo, graças ao qual, não só o por fim fortunoso rapaz logrou tirar a barriga de misérias, como, por ter levado a comer nem mais nem menos que o tempo que levou, chegou ao Templo a boas horas de ouvir as perguntas e escutar as respostas que, por assim dizer, iriam fazer cama à questão que de Nazaré trouxera, sob-responsabilidades e culpas, se ainda estamos lembrados. Dizem os entendidos nas regras de bem contar contos que os encontros decisivos, tal como sucede na vida, deverão vir entremeados e entrecruzar-se com mil outros de pouca ou nula importância, a fim de que o herói da história não se veja transformado em um ser de excepção a quem tudo poderá acontecer na vida, salvo vulgaridades. E também dizem que é esse o processo narrativo que melhor serve o sempre desejado efeito de verossimilhança, pois se o episódio imaginado e descrito não é nem poderá tornar-se nunca em facto, em dado da realidade, e nela tomar lugar, ao menos que seja capaz de o parecer, não como no relato presente, em que de modo tão manifesto se abusou da confiança do leitor, levando-se Jesus a Belém para, sem tir-te nem guar-te, dar de caras, mal chegou, com a mulher que esteve de aparadeira no seu nascimento, como se já não tivessem passado das marcas o encontro e os lamirés adiantados pela outra que vinha de filho ao colo, ali de propósito colocada para as primeiras informações. Porém, o mais difícil de acreditar ainda está para vir, depois que a escrava Zelomi tiver acompanhado Jesus até à cova e o deixar lá, que assim o pediu ele, sem contemplações, Deixa-me só, entre estas escuras paredes, quero, neste grande silêncio, escutar o meu primeiro grito, se os ecos podem durar tanto, estas foram as palavras que a mulher julgou ter ouvido e por isso aqui se registram, embora sejam, em tudo, uma ofensa mais à verossimilhança, devendo nós imputá-las, por precaução lógica, à evidente senilidade da anciã. Foi-se embora Zelomi no seu vacilante andar de velha, passo a passo palpando a firmeza do chão com o cajado seguro a mãos ambas, ora, mais bonita acção teria sido a do rapaz se tivesse ajudado a pobre e sacrificada criatura a regressar a casa, mas a juventude é assim, egoísta, presunçosa, e Jesus, que ele saiba, não tem motivos para ser diferente dos da sua idade.
Está sentado numa pedra, ao lado, em cima doutra pedra, a candeia acesa alumia debilmente as paredes rugosas, a mancha mais escura dos carvões no sítio da fogueira, as mãos caídas, frouxas, o rosto sério, Nasci aqui, pensava, dormi naquela manjedoura, nesta pedra em que me sento sentaram-se meu pai e minha mãe, aqui estivemos escondidos enquanto na aldeia os soldados de Herodes andavam a matar as crianças, por mais que faça não conseguirei ouvir o grito de vida que dei ao nascer, tão-pouco ouço os gritos de morte dos meninos e dos pais que os viam morrer, nada vem romper o silêncio desta cova onde se juntaram um princípio e um fim, pagam os pais pelas culpas que tiverem, os filhos pelas que vierem a ter, assim me foi explicado no Templo, mas se a vida é uma sentença e a morte uma justiça, então nunca houve no mundo gente mais inocente que aquela de Belém, os meninos que morreram sem culpa e os pais que essa culpa não tiveram, nem gente mais culpada terá havido que meu pai, que se calou quando deveria ter falado, e agora este que sou, a quem a vida foi salva para que conhecesse o crime que lhe salvou a vida, mesmo que outra culpa não venha a ter, esta me matará. Na meia escuridão da caverna, Jesus levantou se, parecia que queria fugir, mas não deu mais que dois incertos passos, foram-se-lhe abaixo de repente as pernas, as mãos acudiram-lhe aos olhos para suster as lágrimas que rebentavam, pobre rapaz, ali enroscado e torcendo-se no pó como se sentisse uma infinita dor, eis que o vemos sofrendo o remorso daquilo que não fez, mas de que há-de ser, enquanto viva, ó insanável contradição, o primeiro culpado. Este rio de agônicas lágrimas, digamo-lo já, irá deixar para sempre nos olhos de Jesus uma marca de tristeza, um contínuo, úmido e desolado brilho, como se, em cada momento, tivesse acabado de chorar. Passou o tempo, lá fora o sol foi descaindo, tornaram-se mais longas as sombras da terra, prenunciando a grande sombra que do alto descerá com a noite, e a mudança do céu até no interior da caverna podia ser notada, as trevas já cercam e sufocam a pequeníssima amêndoa luminosa da candeia, é certo que se lhe está acabando o azeite, assim também será quando o sol estiver para apagar-se, então os homens dirão uns para os outros, Estamos a perder a vista, e não sabem que os olhos já não lhes servem de nada. Jesus dorme agora, rendeu-o o misericordioso cansaço destes dias, a morte terrível do pai, a herança do pesadelo, a confirmação resignada da mãe, e depois a penosa viagem até Jerusalém, o Templo assustador, as palavras sem consolação proferidas pelo escriba, a descida para Belém, o destino, a escrava Zelomi vinda do fundo do tempo para lhe trazer o conhecimento final, não admira que o corpo extenuado tivesse feito tombar consigo o mísero espírito, ambos pareciam repousar, mas já o espírito se move e em sonho faz levantar-se o corpo para que vão ambos a Belém, e ali, no meio da praça, confessem a tremenda culpa, Eu sou, dirá o espírito pela voz do corpo, aquele que trouxe a morte aos vossos filhos, julgai-me, condenai este corpo que aqui vos trago, o corpo de que sou o ânimo e a alma, para que o possais atormentar e torturar, pois sabido é que só pelo castigo e pelo sacrifício da carne se poderá alcançar a absolvição e o prêmio do espírito. No sonho estão as mães de Belém com os filhos mortos nos braços, só um deles está vivo e a mãe é aquela mulher que apareceu a Jesus com o filho ao colo, é ela quem responde, Se não podes restituir-lhes a vida, cala-te, diante da morte não se querem palavras. O espírito, humilhando-se, recolheu-se em si mesmo como uma túnica dobrada três vezes, entregando o corpo inerme à justiça das mães de Belém, mas Jesus não virá a saber que poderia levar dali o corpo salvo, era o que a mulher que ainda tinha ao colo o filho vivo se preparava para anunciar-lhe, Tu não tens culpa, vai-te, quando o que a ele pareceu um repentino e ofuscante clarão inundou a caverna e o despertou de golpe, Onde estou, foi o seu primeiro pensamento, e erguendo a custo, do chão pulverulento, os olhos lacrimosos, viu um homem alto, gigantesco, com uma cabeça de fogo, mas logo percebeu que o que julgara ser cabeça era um archote levantado na mão direita quase até ao tecto da cova, a cabeça verdadeira estava um pouco mais abaixo, pelo tamanho podia ser a de Golias, porém a expressão do rosto não tinha nada de furor guerreiro, antes era o sorriso comprazido de quem, tendo procurado, achou. Jesus levantou-se e recuou até à parede da caverna, agora podia ver melhor a cara do gigante, que afinal não o era assim tanto, apenas um palmo mais alto que os homens mais altos de Nazaré, as ilusões de óptica, sem as quais não há prodígios nem milagres, não são uma descoberta da nossa época, basta ver que o próprio Golias só não foi para jogador de basquetebol por ter nascido antes do tempo. Tu quem és, perguntou o homem, mas percebia-se que era só para meter conversa. Entalou o archote numa fenda da rocha, encostou à parede dois paus que trazia consigo, um polido pelo uso, de grossos nós, outro que parecia ter sido acabado de cortar da árvore, ainda com a casca, e depois foi sentar-se na pedra maior, compondo sobre os ombros o vasto manto em que se envolvia. Sou Jesus de Nazaré, respondeu o rapaz, Que vieste aqui fazer, se és de Nazaré, Sou de Nazaré, mas nasci nesta cova, vim cá para ver o sítio onde nasci, Onde tu nasceste mesmo foi na barriga da tua mãe, e aí não poderás ir jamais. Por não ouvidas antes, assim cruas, as palavras fizeram corar Jesus, que se calou. Fugiste de casa, perguntou o homem. O rapaz hesitou, como se estivesse a procurar no seu íntimo se poderia realmente chamar-se fuga a sua saída, e acabou por responder, Sim, Não te entendias com os teus pais, Meu pai já morreu, Ah, fez o homem, mas Jesus experimentou uma estranha e indefinível impressão, a de que ele já o saberia, e não só isto, mas todo o mais, o que fora já dito e o que ainda estava por dizer. Não respondeste à pergunta, tornou o homem, Qual, Se não te entendias com os teus pais, É assunto da minha vida, Fala-me com respeito, rapaz, ou tomo o lugar do teu pai para castigar-te, aqui, não te ouviria nem Deus, Deus é olho, orelha e língua, vê tudo, ouve tudo, e só por não querer é que não diz tudo, Que sabes tu de Deus, moço, O que aprendi na sinagoga, Na sinagoga nunca ouviste dizer que Deus é um olho, uma orelha e uma língua, A conclusão foi minha, se Deus isso não fosse não seria Deus, E por que achas tu que Deus é um olho e uma orelha e não dois olhos e duas orelhas como os temos tu e eu, Para que um olho não pudesse enganar o outro olho, e uma orelha a outra orelha, para a língua não é preciso, é uma só, A língua dos homens também é dúplice, tanto serve para a verdade como para a mentira, A Deus não é permitido mentir, Quem lho impede, O mesmo Deus, ou então negar-se-ia a si mesmo, Já o viste, A quem, A Deus, Alguns o viram e anunciaram. O homem esteve calado a olhar o rapaz como se nele buscasse umas feições conhecidas, e depois disse, Sim, é certo, alguns julgaram vê-lo. Fez uma pausa, e prosseguiu, agora com um sorriso de malícia, Não chegaste a responder-me, A quê, Se te davas mal com os teus pais, Saí de casa porque quis conhecer mundo, A tua língua conhece a arte de mentir, moço, mas eu sei bem quem és, nasceste filho de um carpinteiro de obra grossa chamado José e de uma cardadora de lã chamada Maria, Como o sabes, Um dia soube-o e não o esqueci, Explica-te melhor, Sou pastor, há muitos anos que ando por aí com as minhas ovelhas e cabras, e o bode e o carneiro da cobrição, calhou estar nestes sítios quando vieste ao mundo, e ainda por cá andava quando vieram matar os meninos de Belém, conheço-te desde sempre, como vês. Jesus olhou o homem com temor e perguntou, Que nome é o teu, Para as minhas ovelhas não tenho nome, Não sou uma ovelha tua, Quem sabe, Diz-me como te chamas, Se fazes tanta questão de dar-me um nome, chama-me Pastor, é o suficiente para que me tenhas, se me chamares, Queres levar me contigo, de ajudante, Estava à espera de que mo pedisses, E então, Recebo-te no meu rebanho. O homem levantou-se, tomou o archote e saiu para o ar livre. Jesus seguiu-o. Era noite fechada, a lua ainda não nascera. Juntas à entrada da caverna, sem mais ruído que o leve tilintar das campainhas de algumas, as ovelhas e as cabras, tranquilas, pareciam ter estado à espera da conclusão da conversa entre o seu pastor e o ajuda novo. O homem levantou o archote para mostrar as cabeças negras das cabras, os focinhos alvacentos das ovelhas, os lombos secos e escorridos dumas, as redondas e felpudas garupas doutras, e disse, Este é o meu rebanho, cuida tu de não vires a perder um só destes animais. Sentados à boca da caverna, sob a luz instável do archote, Jesus e o pastor comeram do queijo e do pão duro dos alforjes. Depois o pastor foi dentro e trouxe o pau novo, o que ainda estava encascado. Acendeu uma fogueira e, aos poucos, movendo habilmente o pau entre as chamas, foi-lhe queimando a casca até fazê-la sair em longas tiras, depois alisou-lhe toscamente os nós. Deixou-o a arrefecer por um bocado e tornou a metê-lo no lume, agora movendo-o mais depressa, sem dar tempo a que as labaredas o queimassem, desta maneira escurecendo e enrijecendo a epiderme da madeira, como se sobre a jovem vergôntea se tivessem antecipado os anos. Quando chegou ao fim do trabalho, disse, Aqui tens, forte e direito, o teu cajado de pastor, é o teu terceiro braço. Apesar de não ser de mãos delicadas, Jesus teve de largar o pau para o chão, tão quente estava. Como pôde ele aguentar, pensou, e não encontrava a resposta. Quando, finalmente, a lua nasceu, entraram na cova para dormir. Umas poucas ovelhas e cabras entraram também e deitaram-se ao lado deles. Alvorecia o primeiro luzeiro da manhã, quando o pastor sacudiu Jesus, dizendo-lhe, Levanta-te, rapaz, chega de dormir, o meu gado tem fome, daqui em diante o teu trabalho vai ser levá-lo ao pasto, nunca em tua vida farás coisa mais importante. Lentamente, porque o que regulava a marcha era o passo miudinho e travado do rebanho, posto o pastor lá adiante, o ajuda atrás, foram-se dali todos, os humanos e os animais, numa fresca e transparente madrugada que parecia não ter pressa de fazer nascer o sol, ciosa de uma claridade que era como a de um mundo apenas começado. Bem mais tarde, uma mulher idosa, que a custo caminhava ajudando-se com um bordão como uma terceira perna, veio das escondidas casas de Belém e entrou na caverna. Não ficou muito admirada por não estar ali Jesus, provavelmente já nada teriam para dizer um ao outro. Na meia escuridão habitual da cova brilhava a amêndoa luminosa da candeia, que o pastor reabastecera de azeite.
Daqui a quatro anos Jesus encontrará Deus. Ao fazer esta inesperada revelação, quiçá prematura à luz das regras do bem narrar antes mencionadas, o que se pretende é tão só bem dispor o leitor deste evangelho a deixar-se entreter com alguns vulgares episódios de vida pastoril, embora estes, adianta-se desde já para que tenha desculpa quem for tentado a passar à frente, nada de substancioso venham trazer ao principal da matéria. No entanto, quatro anos sempre são quatro anos, mormente numa idade de tão grandes mudanças físicas e mentais, ele é o corpo que cresce desta desatinada maneira, ele é a barba que começa a sombrear uma pele já de si morena, ele é a voz que se torna funda e grossa como uma pedra rolando pela aba da montanha, ele é a tendência para o devaneio e o sonhar acordado, sempre censuráveis, mormente quando há deveres de vigilância a cumprir, é o caso das sentinelas nos quartéis, castelos e acampamentos, por exemplo, ou, para não sairmos da história, deste novel ajudante de pastor a quem foi dito que não pode largar de vista as cabras e as ovelhas do patrão. Que, a bem dizer, não se sabe quem seja. Pastorear, neste tempo e nestes lugares, é trabalho para servo ou escravo bruto, obrigado, sob pena de castigo, a dar constantes e pontuais contas do leite, do queijo e da lã, sem falar do número de cabeças de gado, o qual sempre deverá estar em aumento, para que possam dizer os vizinhos que os olhos do Senhor contemplam com benignidade o piedoso proprietário de bens tão profusos, o qual, se quer estar conforme com as regras do mundo, mais deverá fiar-se da benevolência do Senhor do que da força genesíaca dos cobridores do seu rebanho. Estranho, porém, é que Pastor, que assim quis ele que lhe chamássemos, não pareça ter um amo que o governe, pois nestes quatro anos não virá ninguém ao deserto a recolher a lã, o leite ou o queijo, nem o maioral deixará o gado para ir dar contas do seu múnus. Tudo estaria certo se o pastor fosse, no sentido conhecido e costumado da palavra, o dono destas cabras e destas ovelhas, mas é muito difícil acreditar que o seja, realmente, quem, como ele, deita a perder quantidades de lã que excedem toda a imaginação, quem, pelos vistos, só tosquia para que não se sufoquem de calor as ovelhas, quem aproveita o leite, se o aproveita, apenas para fabricar o queijo de cada dia e trocar o que sobra por figos, tâmaras e pão, quem, finalmente, e enigma dos enigmas, não vende cordeiro ou cabrito do seu rebanho, nem mesmo na altura da Páscoa, quando, por via da procura, alcançam tão bom preço. Não admira, portanto, que o rebanho cresça sem parar, como se, afincadamente, e com o entusiasmo de quem sabe garantida uma duração justa de vida, cumprisse aquela famosa ordem que o Senhor deu, talvez pouco confiante na eficácia dos doces instintos naturais, Crescei e multiplicai-vos. Nesta grei insólita e vagabunda morre-se de velhice, e é o próprio Pastor, em pessoa, quem, serenamente, ajuda a morrer, matando os, os animais que, por doença ou senilidade, já não podem acompanhar o rebanho. Jesus, a primeira vez que tal aconteceu depois que começara a trabalhar para o pastor, protestou contra a fria crueldade, mas ele respondeu-lhe simplesmente, Ou os mato, como sempre tenho feito, ou os deixo abandonados para morrerem sozinhos nesses desertos, ou detenho o rebanho e fico aqui à espera de que morram, sabendo que, se levarem dias a morrer, acabará o pasto por não chegar para os que ainda estão vivos, diz-me tu como procederias se estivesses no meu lugar, se, como eu, fosses senhor da vida e da morte do teu rebanho. Jesus não soube que responder e, para mudar de assunto, perguntou, Se não vendes a lã, se temos mais leite e mais queijo do que precisamos para viver, se não fazes comércio dos anhos e dos cabritos, para que queres tu o rebanho e o deixas viver e fazes crescer assim, a ponto de um dia, se continuas, ele cobrir todos estes montes e encher a terra inteira, e Pastor respondeu, O rebanho estava aqui, alguém tinha de cuidar dele, defendê-lo das cobiças, calhou ser eu, Aqui, onde, Aqui, além, em toda a parte, Quererás dizer, se não me engano, que o rebanho sempre esteve, sempre foi, Mais ou menos, Foste tu que compraste a primeira ovelha e a primeira cabra, Não, Quem foi, então, Encontrei-as, não sei se foram compradas, e já eram rebanho quando as encontrei, Deram-tas, Ninguém mas deu, eu encontrei-as, elas encontraram-me, Então, és o dono, Não sou o dono, nada do que existe no mundo me pertence, Porque tudo pertence ao Senhor, devias sabê-lo, Tu o dizes, Há quanto tempo és pastor, Já o era quando nasceste, Desde quando, Não sei, talvez cinquenta vezes a idade que tens, Só os patriarcas de antes do dilúvio viveram tantos ou mais anos, nenhum homem dos de agora pode esperar ter tão longa vida, Bem o sei, Se o sabes, mas insistes que viveste todo esse tempo, admitirás que eu pense que não és homem, Admito. Ora, se Jesus, que tão bem encaminhado vinha na ordem e sequência do interrogatório, como se na cartilha socrática tivesse aprendido as artes da maiêutica analítica, se Jesus perguntasse, Que és então, já que homem não és, era muito provável que Pastor condescendesse em responder-lhe com um ar de quem não quer dar extrema importância ao assunto, Sou um anjo, mas não o digas a ninguém. Acontece isto muitas vezes, não fazemos as perguntas porque ainda não estávamos preparados para ouvir as respostas, ou por termos, simplesmente, medo delas. E, quando encontramos coragem para lançá-las, não é raro que não nos respondam, como virá a fazer Jesus quando um dia lhe perguntarem, Que é a verdade. Então se calará até hoje.
Como quer que seja, o que Jesus já sabe, sem precisar de perguntar, é que o seu enigmático companheiro não é um anjo do Senhor, pois os anjos do Senhor cantam em todos os momentos do dia e da noite as glórias do Senhor, não são como os homens, que só o fazem por obrigação e nas ocasiões regulamentares, também é certo que os anjos têm razões mais próximas e justificadas para cantarem tanto, pois que com o dito Senhor vivem eles no céu, por assim dizer de casa-e-pucarinho. O que primeiro Jesus estranhou de todo foi que, saídos da caverna para a madrugada, não tivesse Pastor procedido como ele procedera, bendizendo a Deus por aquelas coisas que sabemos, haver-lhe restituído a alma, haver dado inteligência ao galo, e, porque tivera precisão de ir atrás daquela fraga a mijar e dar de corpo, agradecer-lhe os orifícios e vasos existentes no organismo humano, providenciais no sentido absoluto da palavra, pois que sem eles. Pastor olhou o céu e a terra como faz qualquer um depois de sair da cama, murmurou algumas palavras sobre o bom tempo que os ares prometiam e, levando dois dedos à boca, soltou um assobio estridente que pôs todo o rebanho de pé como um só homem. Nada mais. Pensou Jesus que teria sido um caso de esquecimento, sempre possível quando uma pessoa anda com o espírito ocupado, por exemplo, estar Pastor a pensar na melhor maneira de ensinar o rude ofício a um moço habituado aos confortos duma oficina de carpinteiro. Ora, nós sabemos que, numa situação normal, entre gente comum, Jesus não iria ter de esperar muito para se inteirar do grau efectivo de religiosidade do seu maioral, uma vez que os judeus do tempo emitiam bênçãos aí umas trinta vezes ao dia, por dá cá aquela palha, como bastantemente ao longo deste evangelho se viu, sem necessidade de melhor demonstração agora. Passou-se o dia e nada de bênçãos, veio a noite, dormida ao relento, num descampado, e nem a majestade do céu de Deus foi capaz de acordar na alma e na boca de Pastor uma só palavrinha de louvor e gratidão, afinal o tempo podia estar de chuva e não estava, o que era, a todos os títulos, tanto os humanos como os divinos, sinal indubitável de que o Senhor velava pelas suas criaturas. Na manhã seguinte, depois de comer, e quando o maioral se preparava para dar uma volta ao rebanho em jeito de reconhecimento, a ver se alguma irrequieta cabra não resolvera ir de aventura pelos arredores, Jesus anunciou numa voz firme, Vou-me embora. Pastor parou, olhou-o sem mudar de expressão, apenas disse, Boa viagem, não preciso dizer-te que não és meu escravo nem há contrato legal entre nós, podes partir quando entenderes, Não queres saber por que me vou, A minha curiosidade não é tão forte que me obrigue a perguntar-to, Parto porque não devo viver ao lado duma pessoa que não cumpre as suas obrigações para com o Senhor, Que obrigações, As mais elementares, as que se exprimem pelas bênçãos e pelas graças. Pastor ficou calado, com um meio sorriso que se revelava mais nos olhos que na boca, depois disse, Não sou judeu, não tenho de cumprir obrigações que não são minhas. Jesus recuou um passo, escandalizado. Que a terra de Israel fervilhasse de estrangeiros e seguidores de deuses falsos, por de mais o sabia, mas nunca lhe sucedera dormir ao lado de um deles, comer do seu pão e beber do seu leite. Por isso, como se segurasse diante de si uma lança e um escudo protector, exclamou, Só o Senhor é Deus. O sorriso de Pastor apagou-se, a boca ganhou de súbito um vinco amargo, Sim, se existe Deus terá de ser um único Senhor, mas era melhor que fossem dois, assim haveria um deus para o lobo e um deus para a ovelha, um para o que morre e outro para o que mata, um deus para o condenado, um deus para o carrasco, Deus é uno, completo e indivisível, clamou Jesus, e quase chorava de piedosa indignação, ao que o outro respondeu, Não sei como pode Deus viver, a frase não passou daqui porque Jesus, com a autoridade de um mestre de sinagoga, cortou, Deus não vive, é, Nessas diferenças não sou entendido, mas o que te posso dizer é que não gostaria de me ver na pele de um deus que ao mesmo tempo guia a mão do punhal assassino e oferece a garganta que vai ser cortada, Ofendes a Deus com esses pensamentos ímpios, Não valho tanto, Deus não dorme, um dia te punirá, Ainda bem que não dorme, dessa maneira evita os pesadelos do remorso, Por que me falas tu de pesadelos e remorso, Porque estamos a falar do teu deus, E o teu, quem é, Não tenho deus, sou como uma das minhas ovelhas, Ao menos dão filhos para os altares do Senhor, E eu digo-te que como lobos uivariam essas mães se o soubessem. Jesus ficou pálido, sem resposta. Agora o rebanho rodeava-os, atento, num grande silêncio. O sol já nascera e a sua luz toucava de vermelho-rubi o velo das ovelhas e os cornos das cabras. Jesus disse, Vou-me embora, mas não se moveu. Apoiado ao cajado, tão calmo como se soubesse ter todo o tempo futuro à sua disposição, Pastor esperava. Enfim, Jesus deu alguns passos, abrindo caminho entre as ovelhas, mas parou de repente e perguntou, Que sabes tu de remorso e pesadelos, Que és o herdeiro de teu pai. Estas palavras não as pôde suportar Jesus. No mesmo instante dobraram-se-lhe os joelhos, escorregou-lhe do ombro o alforje, donde, por obra de acaso ou de necessidade, lhe saltaram as sandálias do pai, ao mesmo tempo que se ouvia o ruído da tigela do fariseu ao partir-se. Jesus começou a chorar como uma criança abandonada, porém Pastor não se aproximou, apenas disse lá donde estava, Lembrar-te-ás sempre de que conheço tudo a teu respeito desde que foste concebido, e agora decide-te de uma vez, ou partes, ou ficas, Diz me primeiro quem és, Ainda não é tempo de o saberes, E quando o souber, Se ficares, arrepender-te-ás de não teres partido, se partires, arrepender-te-ás de não ter ficado, Mas se eu me fosse embora não viria a saber quem és, Enganas-te, a tua hora há-de chegar e nessa altura estarei presente para to dizer, posto isto basta já de conversa, o rebanho não pode ficar aqui o dia todo à espera de que tu te resolvas. Jesus recolheu os cacos da tigela, olhou os como se lhe custasse separar-se deles, em verdade não havia motivo para isso, ontem, a esta hora, ainda nem tinha encontrado o fariseu, além disso as tigelas de barro são assim, partem-se com grande facilidade. Largou os fragmentos para o chão como se os semeasse, e foi então que Pastor disse, Terás uma outra tigela, mas essa não se quebrará enquanto vivas. Jesus não o ouviu, tinha as sandálias de José na mão e pensava se não deveria calçá-las, é certo que, tão pouco tempo passado, os pés não podiam ter-lhe crescido à medida, mas o tempo, bem o sabemos, é consoante, parecia a Jesus que andara com as sandálias do pai no alforje durante uma eternidade, forte surpresa era se ainda lhe estivessem largas. Calçou-as e, sem saber por que o fazia, guardou as suas. Disse Pastor, Pés que cresceram não voltam a encolher, e tu não terás filhos que de ti herdem a túnica, o manto e as sandálias, mas Jesus não as lançou fora, o peso delas ajudava o alforje quase vazio a segurar-se no ombro. A resposta que Pastor pedira não precisou ser dada, Jesus tomou o seu lugar atrás do rebanho, divididos os sentimentos entre uma indefinível impressão de terror, como se a sua alma estivesse em perigo, e outra, ainda mais indefinível, de sombria fascinação. Hei-de saber quem tu és, murmurava Jesus enquanto, em meio do pó levantado pelo rebanho, fazia avançar uma ovelha retardatária, e desta maneira se explicava, cria ele, o motivo por que finalmente resolvera ficar com o enigmático pastor.
Este foi o primeiro dia. De assuntos de crença e impiedade, de vida, morte e propriedade, não se voltou a falar, mas Jesus, que passara a observar mesmo os mais simples movimentos e atitudes de Pastor, notou que, coincidindo quase sempre com as vezes em que ele próprio bendizia o Senhor, o seu companheiro baixava-se e assentava suavemente as palmas das duas mãos na terra, curvando a cabeça e fechando os olhos, sem dizer uma palavra. Um dia, quando era ainda menino pequeno, Jesus ouvira contar a uns velhos viajantes que passaram por Nazaré que no interior do mundo existiam enormíssimas cavernas onde se encontravam, como à superfície, cidades, campos, rios, bosques e desertos, e que esse mundo inferior, em tudo cópia e reflexo deste em que vivemos, tinha sido criado pelo Diabo depois de o ter precipitado Deus das alturas do céu, em castigo da sua revolta. E como o Diabo, de quem Deus ao princípio fora amigo, e ele favorito de Deus, comentando-se mesmo no universo que desde os tempos infinitos nunca se vira uma amizade igual àquela, como o Diabo, diziam os velhos, estivera presente no acto do nascimento de Adão e Eva, e tinha podido aprender como se fazia, então repetiu no seu mundo subterrâneo a criação de um homem e de uma mulher, com a diferença, ao contrário de Deus, de não lhes ter proibido nada, razão por que não teria havido, no mundo do Diabo, pecado original. Um dos velhos atreveu-se mesmo a dizer, E como não houve pecado original, também não houve nenhum outro. Depois de os velhos se terem ido embora, expulsos, com a ajuda de algumas pedradas persuasivas, por nazarenos furiosos que enfim tinham percebido aonde queriam os ímpios chegar com a insidiosa conversa, houve um rápido abalo sísmico, coisa ligeira, nada mais que um sinal confirmador vindo das entranhas profundíssimas da terra, foi o que então ocorreu a Jesus pensar, já muito capaz, este pequeno, de ligar um efeito à sua causa, apesar da pouca idade. E agora, perante o pastor ajoelhado, de cabeça baixa, as mãos assim pousadas no chão, de leve, como para tornar mais sensível o contacto de cada grão de areia, de cada pequena pedra, de cada radícula subida à superfície, a lembrança da antiga história despertou na memória de Jesus, e ele acreditou, por momentos, ser este homem um habitante do oculto mundo criado pelo Diabo à semelhança do mundo visível, Que terá vindo cá fazer, pensou, mas a sua imaginação não teve ânimos para ir mais longe. Então, quando Pastor se levantou, perguntou-lhe, Por que fazes isso, Certifico-me de que a terra continua por baixo de mim, Não te chegam os pés para teres a certeza, Os pés não percebem nada, o conhecimento é próprio das mãos, quando tu adoras o teu Deus não é os pés que levantas para ele, mas as mãos, e contudo podias levantar qualquer parte do corpo, até o que tens entre as pernas, se não és um eunuco. Jesus corou violentamente, a vergonha e uma espécie de susto sufocaram-no, Não ofendas o Deus que não conheces, exclamou por fim, e Pastor, acto contínuo, Quem criou o teu corpo, Deus foi quem me criou, Tal como é e com tudo o que tem, Sim, Há alguma parte do teu corpo que tenha sido criada pelo Diabo, Não, não, o corpo é obra de Deus, Então todas as partes do teu corpo são iguais perante Deus, Sim, Poderia Deus rejeitar como obra não sua, por exemplo, o que tens entre as pernas, Suponho que não, mas o Senhor, que criou Adão, expulsou-o do paraíso, e Adão era obra sua, Responde-me direito, rapaz, não me fales como um doutor da sinagoga, Queres obrigar-me a dar-te as respostas que te convêm, e eu recito-te, se for preciso, todos os casos em que o homem, porque assim o ordenou o Senhor, não poderá, sob pena de contaminação e morte, descobrir uma nudez alheia ou a sua própria, prova de que essa parte do corpo é, por si mesma, maldita, Não mais maldita do que a boca quando mente e calunia, e ela serve-te para louvares o teu Deus antes da mentira e depois da calúnia, Não te quero ouvir, Tens de ouvir-me, que mais não seja para atenderes à pergunta que te fiz, Que pergunta, Se Deus poderá rejeitar como obra não sua o que levas entre as pernas, diz sim ou não, Não pode, Porquê, Porque o Senhor não pode não querer o que antes quis. Pastor acenou a cabeça lentamente e disse, Por outras palavras, o teu Deus é o único guarda duma prisão onde o único preso é o teu Deus. Ainda o último eco da tremenda afirmação vibrava nos ouvidos de Jesus quando Pastor, agora num tom de falsa naturalidade, voltou a falar, Escolhe uma ovelha, disse, Quê, perguntou Jesus desnorteado, Digo-te que escolhas uma ovelha, a não ser que prefiras uma cabra, Para quê, Vais precisar dela, se realmente não és um eunuco. A compreensão atingiu o rapaz com a força de um murro. Porém, pior que tudo foi a vertigem de uma horrível voluptuosidade que do afogamento da vergonha e da repugnância num rápido instante emergiu e prevaleceu. Tapou a cara com as mãos e disse numa voz rouca, Esta é a palavra do Senhor Se um homem se ajuntar com um animal, será punido com a morte, e matareis o animal, e também disse Maldito o que peca com um animal qualquer, Disse isso tudo o teu Senhor, Sim, e eu digo-te que te afastes de mim, abominação, criatura que não és de Deus, mas do Diabo. Pastor ouviu e não se moveu, como se estivesse a dar tempo a que as iradas palavras de Jesus produzissem todo o seu efeito, fosse ele qual fosse, assombração de raio, corrosão de lepra, morte súbita do corpo e da alma. Nada aconteceu. Um vento veio correndo entre as pedras, levantou uma nuvem de poeira que atravessou o deserto, e depois nada, o silêncio, o universo calado contemplando os homens e os animais, à espera, talvez, ele próprio, de saber que sentido lhe atribuem, ou encontram, ou reconhecem, uns e outros, e nessa espera se consumindo, já rodeado de cinzas o fogo primordial, enquanto a resposta se busca e tarda. De súbito, Pastor levantou os braços e clamou, em estentórea voz, virado para o rebanho, Ouvide, ouvide, ovelhas que aí estais, ouvide o que nos vem ensinar este sábio rapaz, que não é lícito fornicar-vos, Deus não o permite, podeis estar tranquilas, mas tosquiar-vos, sim, maltratar-vos, sim, matar-vos, sim, e comer-vos, pois para isso vos criou a sua lei e vos mantém a sua providência. Depois deu três longos assobios, agitou por sobre a cabeça o cajado, Andai, andai, gritou, e o rebanho pôs-se em movimento, na direcção por onde tinha desaparecido a coluna de poeira. Jesus ficou ali, parado, a olhar, até quase se perder na distância a alta figura de Pastor e se confundirem com a cor da terra os dorsos resignados dos animais. Não vou com ele, dissera, mas foi. Acomodou o alforje ao ombro, ajustou as correias das sandálias que tinham sido do pai e seguiu de longe o rebanho. Juntou-se a ele quando a noite caiu, apareceu da escuridão para a luz da fogueira, e disse, Aqui estou.


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