sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo XII)



Quando esta guerra acabar, e não tarda, que já a estamos vendo em seus derradeiros e fatais estertores, far-se-á a contagem final dos que nela perderam a vida, uns tantos aqui, uns tantos além, uns mais perto, outros mais longe, e, se é certo que, com o correr do tempo, o número daqueles que foram mortos em emboscadas ou batalhas campais acabou por perder importância ou esquecer de todo, já os crucificados, à roda de uns dois mil, segundo as estatísticas mais merecedoras de fé, permanecerão na memória das gentes da Judeia e da Galileia, a ponto de ainda deles se falar bastantes anos depois, quando um novo sangue for derramado em nova guerra. Dois mil crucificados é muito homem morto, mas mais haveriam de parecer-nos se os imaginássemos plantados a intervalos de um quilômetro ao longo duma estrada, ou rodeando, é um exemplo, o país que há-de chamar-se Portugal, cuja dimensão, na sua periferia, anda mais ou menos por aí. Entre o rio Jordão e o mar, choram as viúvas e os órfãos, é um antigo costume seu, para isso mesmo é que são viúvas e órfãos, para chorarem, depois é só esperarmos o tempo de os meninos crescerem e irem à guerra nova, outras viúvas e outros órfãos virão tomar-lhes a vez, e se entretanto mudaram as modas, se o luto, de branco, passou a ser negro, ou vice-versa, se sobre os cabelos, que antes eram arrancados, se põe agora uma mantilha bordada, as lágrimas, quando sentidas, são as mesmas.
Maria ainda não chora, mas na sua alma já leva um pressentimento de morte, pois o marido não voltou a casa e em Nazaré diz-se que Séforis foi queimada e há homens crucificados. Acompanhada do filho primogênito, Maria repete o caminho que José fez ontem, com toda a probabilidade, num ponto ou noutro, pousa os pés nas marcas das sandálias do marido, não é estação de chuva, o vento não passa duma brisa suave que mal toca o solo, mas já as pegadas de José são como vestígios de um antigo animal que tivesse habitado estas paragens numa extinta era, dizemos, Foi ontem, e é o mesmo que dizermos, Foi há mil anos, o tempo não é uma corda que se possa medir nó a nó, o tempo é uma superfície oblíqua e ondulante que só a memória é capaz de fazer mover e aproximar. Com Maria e Jesus vão moradores de Nazaré, alguns impelidos pela caridade, outros só curiosos, e há também uns vagos outros parentes de Ananias, mas esses regressarão às suas casas com as dúvidas com que saíram delas, como não o encontraram morto, bem pode ser que esteja vivo, não se lembraram de ir procurar nos escombros do armazém, e, se se lembrassem, quem sabe se reconheceriam o seu morto entre os mortos, todos o mesmo carvão. Quando, a meio do caminho, estes nazarenos se cruzaram com uma companhia de soldados enviada à sua aldeia para buscas, alguns voltarão para trás, preocupados com a sorte dos seus haveres, que nunca se pode prever o que farão soldados a quem, tendo batido eles à porta duma casa, de dentro ninguém lhes respondeu. Quis saber o comandante da força o que ia fazer aquela caterva de rústicos a Séforis, responderam-lhe, A ver o fogo, explicação que satisfez o militar, pois desde a aurora do mundo sempre os incêndios atraíram os homens, há mesmo quem diga que se trata de uma espécie de chamamento interior, inconsciente, uma reminiscência do fogo original, como se as cinzas pudessem ter memória do que queimaram, assim se justificando, segundo a tese, a expressão fascinada com que contemplamos até a simples fogueira a que nos aquecemos ou a luz duma vela na escuridão do quarto. Fôssemos nós tão imprudentes, ou tão ousados, como as borboletas, falenas e outras mariposas, e ao fogo nos lançaríamos, nós todos, a espécie humana em peso, talvez uma combustão assim imensa, um tal clarão, atravessando as pálpebras cerradas de Deus, o despertasse do seu letárgico sono, demasiado tarde para conhecer-nos, é certo, porém a tempo de ver o princípio do nada, agora que tínhamos desaparecido. Maria, embora com uma casa cheia de filhos deixados sem protecção, não voltou atrás, mas vai, ainda assim, relativamente descansada, pois não é todos os dias que numa aldeia entram soldados de peito feito a matar crianças, sem contar que estes nossos romanos, no geral, não só lhes permitem como até as animam a crescer quanto possam, e então logo se vê, depende de terem dócil o coração e em dia os impostos. Já vão sozinhos na estrada a mãe e o filho, os da família de Ananias, por serem uma meia dúzia e virem de conversa, foram-se ficando para trás, e como Maria e Jesus nada mais teriam para dizer-se que palavras de inquietação, o resultado é ir cada um deles calado para não afligir o outro, e o estranho silêncio que parece cobrir tudo, não se ouvem cantar aves, o vento parou de todo, apenas o rumor dos passos, e até este se retrai, intimidado, como um intruso de boa fé que entra numa casa deserta. Séforis apareceu de repente na última volta da estrada, nalgumas casas ainda a arder, tênues colunas de fumo aqui e além, paredes enegrecidas, árvores de alto a baixo queimadas mas conservando a folhagem, agora cor de ferrugem. Deste lado, à nossa mão direita, as cruzes.
Maria largou a correr, mas a distância é demasiada para que possa vencê-la de um fôlego, não tarda que abrande a carreira, com tantos e tão seguidos partos o coração desta mulher facilmente desfalece. Jesus, como filho respeitador, quereria acompanhar sua mãe estar ao lado dela, agora e lá adiante, para gozarem juntos a mesma alegria ou juntos sofrerem o mesmo desgosto, mas ela avança tão devagar, custa-lhe tanto mexer as pernas, assim nunca mais chegamos, minha mãe, ela faz um gesto que significa, Se queres, vai tu, e ele, cortando através do campo, para atalhar caminho, lança-se numa corrida louca, Pai, pai, di-lo com a esperança de que ele ali não esteja, di-lo com a dor de quem já o encontrou. Chegou às primeiras filas, alguns crucificados ainda estão dependurados, a outros retiraram-nos, estão no chão, à espera, são poucos os que têm família a rodeá-los, é que estes rebeldes, na sua maior parte, vieram de longe, pertencem a uma tropa diversa que neste lugar travou a sua última e unida batalha, neste momento estão definitivamente dispersos, cada um por si, na inexprimível solidão da morte. Jesus não vê o pai, o coração quer encher-se-lhe de alegria, mas a razão diz, Espera, ainda não chegamos ao fim, e realmente o fim é agora, deitado no chão está o pai que eu procurava, quase não sangrou, só as grandes bocas das chagas nos pulsos e nos pés, parece que dormes, meu pai, mas não, não dormes, não poderias, com as pernas assim torcidas, já foi caridade terem-te descido da cruz, mas os mortos são tantos que as boas almas que de ti cuidaram não tiveram tempo para endireitarte os ossos partidos. O rapazinho chamado Jesus está ajoelhado ao lado do cadáver, chorando, quer tocar-lhe, mas não se atreve, porém chega o momento em que a dor é mais forte que o temor da morte, então abraça-se ao corpo inerte, Meu pai, meu pai, diz, e outro grito se junta ao dele, Ai José, ai meu marido, é Maria que enfim chegou, exausta, vinha chorando já de longe porque já de longe, vendo parar-se o filho, sabia o que a esperava. O choro de Maria redobra quando ela repara na cruel torção das pernas do marido, na verdade não se sabe, depois de morrer, o que acontece às dores sentidas em vida, principalmente as últimas, é possível que com a morte se acabe realmente tudo, mas também nada nos garante que, ao menos durante umas horas, uma memória de sofrimento não se mantenha num corpo que dizemos morto, não sendo mesmo de excluir ser a putrefacção o último recurso que resta à matéria para, definitivamente, se libertar da dor. Com uma doçura, com uma suavidade que em vida do marido não se atreveria a usar, Maria tentou reduzir os lastimáveis ângulos das pernas de José, que, tendo-lhe ficado a túnica, ao descerem-no da cruz, um pouco arregaçada, lhe davam o aspecto grotesco de um fantoche partido nos engonços. Jesus não tocou no pai, ajudou apenas a mãe a puxar-lhe a túnica para baixo, mesmo assim ficaram à vista as magras canelas do homem, talvez, no corpo humano, a parte que mais pungente impressão de fragilidade nos dá. Os pés, por estarem as tíbias rotas, descaíam lateralmente, mostrando as feridas dos calcanhares, donde era preciso enxotar constantemente as moscas vindas ao cheiro do sangue. As sandálias de José tinham caído ao lado do grosso tronco de que fora o fruto final. Gastas, cobertas de pó, ali poderiam ter ficado ao abandono se Jesus as não tivesse recolhido, fê-lo sem pensar, como se tivesse recebido uma ordem estendeu o braço, Maria nem deu pelo movimento, e prendeu-as no cinto, acaso deveria ser esta a herança simbólica mais perfeita dos primogênitos, há coisas que começam de uma maneira tão simples como esta, por isso se diz ainda hoje, Com as botas do meu pai também eu sou homem, ou, segundo versão mais radical, Com as botas do meu pai é que eu sou homem.
Um pouco afastados, estavam soldados romanos vigiando, prontos a intervir no caso de haver atitudes ou gritos sediciosos por parte daqueles que, chorando e lamentando, cuidavam dos supliciados. Mas esta gente não era de febra guerreira, ou não o demonstravam agora, o que faziam era dizer as suas preces fúnebres, iam de crucificado em crucificado, e nisto tardaram mais de duas horas das nossas, nenhum destes mortos ficou sem o bento viático das orações e das rasgaduras de vestes, do lado esquerdo sendo parentes, do lado direito não o sendo, na tranquilidade da tarde ouviam-se as vozes entoando os versículos, Senhor, que é o homem para que te interesses por ele, que é o filho do homem para que com ele te preocupes, o homem é semelhante a um sopro, os seus dias passam como a sombra, qual é o homem que vive e que não vê a morte, ou poupa a sua alma escapando à sepultura, o homem nascido de mulher é escasso de dias e farto de inquietação, aparece como a flor e como ela é cortada, vai como vai a sombra e não permanece, que é o homem para que te lembres dele, e o filho do homem para que o visites. Contudo, depois deste reconhecimento da irremediável insignificância do homem perante o seu Deus, proferido num tom tão profundo que mais parecia vir da própria consciência do que da voz que serve as palavras, o coro subia e atingia uma espécie de exultação, para proclamar à face do mesmo Deus uma inesperada grandeza, Porém, lembra-te de que pouco menor fizeste o homem do que os anjos, e de glória e honra o coroaste. Quando chegaram a José, a quem não conheciam, e porque era o último dos quarenta, não foram tão demorados, no entanto o carpinteiro levou para o outro mundo tudo quanto precisava, e a pressa justificava-se porque a lei não permite que os crucificados fiquem até ao dia seguinte sem sepultura, e o sol já lá vai descaindo, daqui ao crepúsculo não tarda. Sendo ainda tão novo, Jesus não tinha de rasgar a túnica, estava dispensado dessa demonstração de luto, mas a sua voz, fina, vibrante, ouviu-se por cima das outras quando entoou, Bendito sejas tu, Senhor, nosso Deus, rei do universo, que com justiça te criou, que com justiça te manteve a vida, que com justiça te alimentou, que com justiça te fez conhecer o mundo, que com justiça te há-de fazer ressurgir, bendito sejas tu, Senhor, que os mortos ressuscitas. Deitado no chão, José, se ainda sente as dores dos cravos, talvez possa também ouvir estas palavras, ele saberá que lugar ocupou verdadeiramente a justiça de Deus na sua vida, agora que nem de uma nem de outra pode esperar mais nada. Terminadas as preces, era preciso sepultar os mortos, mas, sendo tantos e vindo tão próxima a noite, não é possível procurar para cada um o seu próprio lugar, túmulos a sério, que se pudessem tapar com uma pedra rodada, e quanto a envolver os corpos com as faixas mortuárias, ou mesmo a simples mortalha, nem pensar. Deliberaram, pois cavar uma vala comprida onde todos coubessem, não foi esta a primeira vez nem há-de ser a última, os corpos descerão à terra vestidos como se encontram, a Jesus deram também uma enxada e ele trabalhou valentemente a terra ao lado dos homens adultos, quis até o destino, que em tudo é mais sábio, que no terreno por ele cavado fosse sepultado o pai, assim se cumprindo a profecia, O filho do homem enterrará o homem, mas ele próprio ficará insepulto. Que estas palavras, à primeira vista enigmáticas, não vos levem a pensamentos superiores, o que aí fica pertence à escala do óbvio, quis apenas dizer que o último homem, por último ser, não terá quem lhe dê sepultura. Ora, não será tal o caso deste rapaz que acaba de enterrar o pai, com ele não se vai acabar o mundo, ainda cá ficaremos milênios e milênios em constante nascer e morrer, e se o homem tem sido, com igual constância, lobo e carrasco do homem, com mais razões ainda continuará a ser o seu coveiro.
O sol já passou para o outro lado da montanha. Há grandes nuvens escuras levantadas sobre o vale do Jordão, movendo-se devagar na direcção do poente, como atraídas por essa última luz que lhes tinge de vermelho o nítido bordo superior. O ar refrescou de repente, é bem possível que esta noite chova, mesmo não sendo o próprio da estação. Os soldados já se retiraram, aproveitam a última luz do dia para regressar ao acampamento que está por aí algures e onde provavelmente já chegaram os seus camaradas de armas que a Nazaré foram de investigadores, uma guerra moderna assim é que se faz, com muita coordenação, não como tem andado a fazê-la o Galileu, o resultado está à vista, trinta e nove guerrilheiros crucificados, o quadragésimo era um pobre inocente, vinha por bem e mal lhe saiu. A gente de Séforis irá procurar ainda na cidade queimada um lugar onde ficar de noite, e amanhã cedo cada família passará revista ao que restar da sua casa, se alguns bens escaparam ao incêndio, e depois ala a buscar vida, que Séforis não foi apenas queimada, tão cedo não vai Roma permitir que a cidade seja reconstruída. Maria e Jesus são duas sombras no meio duma floresta só feita de troncos, a mãe puxa o filho para si, dois medos à procura duma coragem, o céu negro não ajuda, e os mortos debaixo do chão parece quererem reter os pés dos vivos. Jesus disse à mãe, Dormimos na cidade, e Maria respondeu, Não podemos, teus irmãos estão sozinhos e têm fome. Mal viam o chão que pisavam. Finalmente, depois de muito tropeçar e uma vez cair, alcançaram a estrada, que era como o leito seco de um rio abrindo um pálido rasto na noite. Quando já tinham deixado Séforis para trás, começou a chover, primeiro umas gotas pesadas que faziam na poeira espessa do caminho um ruído macio, se tais palavras, emparelhadas, fazem sentido. Depois a chuva carregou, contínua, insistente, em pouco tempo a poeira tornou-se lama, Maria e o filho tiveram de descalçar-se para não perderem as sandálias nesta jornada. Vão calados, a mãe cobrindo a cabeça do filho com o seu manto, não têm nada para dizer um ao outro, talvez até pensem, confusamente, que não é certo estar José morto, que em chegando a casa o irão encontrar atendendo aos filhos o melhor que pode, e que perguntará à mulher, Que ideia foi a vossa de irem à cidade sem que eu vos desse licença, porém já voltaram aos olhos de Maria as lágrimas, e não foi apenas por causa do desgosto e do luto, é também esta infinita canseira, este castigo da chuva, impiedoso, esta noite sem remédio, tudo triste e negro de mais para que José possa estar vivo. Um dia, alguém irá dizer à viúva que um prodígio se deu às portas de Séforis, terem ganho raízes novas e folhas os troncos que serviram ao suplício, e dizer prodígio não é abusar da palavra, em primeiro lugar porque, contra o costume, os romanos não os levaram consigo quando se foram, em segundo lugar por ser impossível que troncos assim cortados, no pé e na cabeça, ainda tivessem dentro seiva e rebentos capazes de tornar paus grosseiros e ensanguentados em árvores vivas. Foi o sangue dos mártires, diziam os crédulos, foi a chuva, rebatiam os cépticos, mas nem o sangue derramado nem a água caída do céu haviam podido fazer verdejar, antes, tantas cruzes abandonadas nos cerros das montanhas ou nas chapadas do deserto. O que ninguém ousou foi dizer que havia sido a vontade de Deus, não só por ser essa vontade, qualquer que ela seja, inescrutável, mas também por não se reconhecerem razões e méritos particulares aos crucificados de Séforis para serem beneficiários de tão singular manifestação da graça divina, muito mais própria de deuses pagãos. Por muito tempo aqui ficarão estas árvores, e o dia chegará em que se terá perdido a memória do que aconteceu, então, dado que os homens para tudo querem explicação, falsa ou verdadeira, inventar-se-ão umas quantas histórias e lendas, ao princípio ainda conservando alguma relação com os factos, depois mais tenuemente, até tudo se transformar em pura fábula. E outro dia chegará em que as árvores morrerão de velhice e serão cortadas, e outro ainda em que, por causa duma autoestrada, ou duma escola, ou duma casa de morar, ou dum centro comercial, ou dum fortim de guerra, as escavadoras revolverão o terreno e farão sair à luz do dia, assim outra vez nascidos, os esqueletos que por dois mil anos ali jazeram. Virão então os antropólogos e um professor de anatomia examinará os restos, para mais tarde anunciar ao mundo escandalizado que, naquele tempo, os homens, afinal, eram crucificados com as pernas encolhidas. E porque o mundo não podia exautorá-lo em nome da ciência, aborreceu-o em nome da estética.
Quando Maria e Jesus chegaram a casa, sem um fio de roupa enxuto em cima do corpo, emporcalhados de lama e tiritando de frio, as crianças estavam mais sossegadas do que se podia ter imaginado, graças ao desembaraço e iniciativa dos mais velhos, Tiago e Lísia, que, percebendo que a noite arrefecera, se lembraram de acender o forno, e assim se aconchegaram todos, tentando compensar os apertos da fome de dentro pelo conforto do calor de fora. Ouvindo o bater da cancela no pátio, Tiago foi abrir a porta, a chuva tornara se num dilúvio donde vinham fugindo a mãe e o irmão, e quando eles entraram foi como se a casa tivesse ficado de repente inundada. As crianças olharam, souberam que o pai não viria quando a porta voltou a fechar-se, mas calaram, e foi Tiago quem fez a pergunta, O pai. O barro do chão absorvia lentamente a água que pingava das túnicas encharcadas, ouvia-se no silêncio o estalar da lenha úmida que ardia na entrada do forno, as crianças olhavam a mãe. E Tiago tornou a perguntar, O pai. Maria abriu a boca para responder, mas a palavra fatal, como o baraço da forca, apertou-lhe a garganta, e foi Jesus quem teve de dizer, O pai morreu, e, sem saber bem por que o fazia, ou por ser essa a prova insofismável da definitiva ausência, retirou do cinto as sandálias molhadas e mostrou-as aos irmãos, Aqui estão. Já as primeiras lágrimas tinham saltado dos olhos dos mais crescidos, mas foi a vista das sandálias vazias que fez alastrar o choro, agora estavam chorando todos, a viúva e os seus nove filhos, e ela não sabia a qual acudir, ajoelhou-se enfim no chão, exaurida de forças, e as crianças vieram para ela e rodearam-na, um cacho vivo que não precisava ser pisado para verter esse branco sangue que é a lágrima. Apenas Jesus se mantivera de pé, apertando as sandálias contra o peito, vagamente pensando que um dia as calçará, neste instante mesmo, se fosse capaz de ousar. Aos poucos, as crianças foram deixando a mãe, os mais crescidos, por essa espécie de pudor que quer que soframos sozinhos, os mais pequenos, porque os irmãos se tinham ido e porque eles próprios não podiam atingir um real sentimento de desgosto, choravam apenas, nisto são as crianças como os velhos, que choram por coisa nenhuma, mesmo quando já deixaram de sentir, ou porque deixaram de sentir. Durante algum tempo ali ficou Maria, de joelhos no meio da casa, como se esperasse uma decisão ou uma sentença, deu-lhe o sinal um longo arrepio, a roupa molhada no corpo, então levantou-se, abriu a arca e tirou uma túnica velha e remendada que fora do marido, entregou-a a Jesus, dizendo, Despe o que tens vestido, põe isto e vai sentar-te ao pé do lume. Depois chamou as duas filhas, Lísia e Lídia, fê-las levantar e segurar uma esteira, a fazer de biombo, e por trás dela mudou também de roupa, após o que, com o pouco de comer que havia em casa, começou a preparar a ceia. Jesus, junto ao forno, aquecia-se com a túnica do pai, que lhe ficava comprida de mangas e de fralda, já se sabe que noutra ocasião os irmãos se teriam rido dele, espantalho que devia parecer, mas hoje não se atreveriam, não só em virtude do grande desgosto, mas também por aquele ar de adulta majestade que se desprendia do rapaz, como se de uma hora para outra tivesse crescido até à sua máxima altura, e esta impressão tornou-se ainda mais forte quando ele, em movimentos lentos e medidos, colocou as úmidas sandálias do pai a jeito de receberem o calor da boca do forno, gesto que não serviria a qualquer fim prático, se já não era deste mundo o dono delas. Tiago, o irmão que vinha a seguir, foi sentar-se ao lado dele, e perguntou em voz baixa, Que foi que aconteceu ao nosso pai, Crucificaram-no com os guerrilheiros, respondeu Jesus também sussurrando, Porquê, Não sei, estavam lá quarenta, e o pai era um deles, Talvez fosse um guerrilheiro, Quem, O pai, Não era, sempre estava aqui, entregue ao seu trabalho, E o burro, encontraram-no, Nem vivo, nem morto. A mãe tinha acabado de preparar a ceia, sentaram-se todos à volta da malga comum e comeram do que havia. No fim, os mais novinhos já cabeceavam de sono, é certo que o espírito ainda estava agitado, mas o corpo cansado reclamava descanso. As esteiras dos rapazes foram estendidas ao longo da parede do fundo, Maria dissera às filhas, Deitem-se aqui comigo, ficou cada uma de seu lado para não haver ciúmes. Pela frincha da porta entrava um ar frio, mas a casa mantinha-se aquecida, havia o calor remanescente do forno, o dos corpos próximos, a família, aos poucos, apesar da tristeza e dos suspiros, ia caindo no sono, Maria dava o exemplo, segurava as lágrimas, queria que os filhos adormecessem depressa, por eles próprios, mas também para poder ficar sozinha com o seu desgosto, de olhos bem abertos para a sua futura vida sem marido e nove filhos para criar. Mas também a ela, em meio de um pensamento, se lhe foi a dor da alma, o corpo indiferente recebeu o sono sem resistir, e agora todos dormem.
A meio da noite, um gemido fez despertar Maria. Pensou que havia sido ela própria, a sonhar, mas não estivera sonhando, e o gemido repetira-se agora, mais forte. Endireitou-se, com cuidado para não acordar as filhas, olhou em redor, mas a luz da candeia não alcançava o fundo da casa, Qual deles será, pensou, mas em seu coração sabia que era Jesus que estava gemendo. Ergueu-se sem ruído, foi buscar a candeia ao prego da porta e, levantando-a acima da cabeça para alumiar melhor, passou em revista os filhos adormecidos, Jesus, é ele que se mexe e murmura, como se estivesse lutando num pesadelo, de certeza que sonha com o pai, um menino desta idade ter visto o que viu, morte, sangue e tortura. Pensou Maria que devia acordá-lo, interromper esta outra forma de agonia, mas não o fez, não queria ouvir o filho contar-lhe o que sonhava, mas esta razão mesma lhe esqueceu quando reparou que Jesus tinha calçadas as sandálias do pai. O insólito do caso desconcertou-a, que estúpida ideia, sem justificação, e também que falta de respeito, usar as sandálias do próprio pai no próprio dia da sua morte. Voltou para a esteira, sem saber já o que pensar, talvez o filho estivesse a repetir em sonho, por obra das sandálias e da túnica, a mortal aventura do pai desde que de casa saiu, e, sendo assim, passara ao mundo dos homens, a que já pertencia pela lei de Deus, mas onde agora se instalava por um novo direito, o de suceder ao pai nos bens, fossem eles somente uma túnica velha e umas sandálias cambadas, e nos sonhos, mesmo para apenas reviver os últimos passos dele na terra. Não pensou Maria que o sonho pudesse ser outro.
O dia amanheceu límpido, sem nuvens, o sol veio quente e luminoso, não havia que temer um retorno da chuva. Maria saiu de casa cedo, com todos os seus filhos varões em idade de ir à escola, e também Jesus, que, como foi dito na altura, já acabou a sua instrução. Ia à sinagoga dizer da morte de José e das presumíveis circunstâncias que para ela teriam concorrido, acrescentando que, apesar de tudo, a ele como aos outros infelizes, ponto não despiciendo, tinham sido feitas as encomendações fúnebres que a pressa e o lugar permitiam, em todo o caso bastantes, em teor e em número, para poder afirmar-se que, no geral, o ritual fora cumprido. No regresso a casa, enfim a sós com o filho mais velho, pensou Maria que era uma boa ocasião para perguntar-lhe por que havia calçado ele as sandálias do pai, mas no último momento um escrúpulo a reteve, o mais provável seria não saber Jesus que explicação dar-lhe e, assim humilhado, ver, pelos olhos da mãe, confundido o seu acto, sem dúvida excessivo, com a falta trivialíssima que é levantar-se de noite uma criança para ir, às escondidas, comer um bolo, podendo sempre, se apanhada, alegar a fome como desculpa, o que do episódio das sandálias não poderá ser dito, salvo tratando-se duma outra espécie de fome, que não saberíamos, nós, explicar. Na cabeça de Maria surgiu depois outra ideia, que o filho era agora o chefe da casa e da família, e, sendo assim, estava bem que ela, sua mãe e sua dependente, se empenhasse em mostrar-lhe respeito e atenção condizentes, como fosse, por exemplo, interessar-se por aquele mal de espírito que lhe afligira o sono, Sonhaste com teu pai, perguntou, e Jesus fez que não ouvira, virou a cara para o outro lado, mas a mãe, firme no propósito, insistiu, Sonhaste, não esperava que o filho lhe respondesse primeiro, Sim, logo a seguir, Não, e que se lhe carregasse a expressão daquela maneira, que parecia que tinha outra vez diante dos olhos o pai morto. Prosseguiram calados o caminho, e em chegando a casa foi-se Maria a cardar uma lã, pensando já que por necessidade do sustento da família deveria começar a fazê-lo mais para fora, aproveitando a boa mão que continuava a ter para o mester. Por sua vez, Jesus, que olhara o céu, a confirmar as boas disposições do tempo, chegou-se ao banco de carpinteiro que fora de seu pai e que estava no alpendre, começando por verificar, uma por uma, as obras interrompidas, e depois o estado das ferramentas, com o que Maria se alegrou muito em seu coração, ao ver que o filho tomava tão a sério, desde este primeiro dia, as suas novas responsabilidades. Quando os mais novos voltaram da sinagoga e todos se juntaram para comer, só um observador atentíssimo notaria que esta família sofrera há poucas horas a perda do seu chefe natural, marido e pai, e, a não ser Jesus, cujas negras sobrancelhas, crispadas, seguem um pensamento escondido, os mais, incluindo Maria, parecem tranquilos, de uma serenidade composta, porque está escrito, Chora amargamente e irrompe em gritos de dor, observa o luto segundo a dignidade do morto, um dia ou dois por causa da opinião pública, depois consola-te da tua tristeza, e escrito está também, Não entregues o teu coração à tristeza, mas afasta-a e lembra-te do teu fim, não te esqueças dele porque não haverá retorno, em nada aproveitarás ao morto e só causarás dano a ti mesmo. Ainda é cedo para o riso, que a seu tempo virá, como os dias vêm após os dias e as estações após as estações, mas a melhor lição é a do Eclesiastes, que disse, Por isso louvei a alegria, visto não haver nada de melhor para o homem, debaixo do sol, do que comer, beber e divertir-se, é isto que o acompanha no seu trabalho, durante os dias que Deus lhe outorgar debaixo do sol. À tarde, Jesus e Tiago subiram à açoteia da casa para tapar com palha amassada em barro as fendas do tecto, pelas quais, durante a noite inteira, a água gotejara, a ninguém há-de surpreender que então não se tenha falado de tão humildes pormenores da nossa vida quotidiana, a morte de um homem, inocente ou não, sempre deverá prevalecer sobre todas as coisas.
Outra noite chegou, outro dia começava, ceou a família como pôde e foi-se deitar nas esteiras. Lá pela madrugada, Maria acordou espavorida, não era ela quem sonhava, não, mas o filho, e agora com choros e gemidos de cortar o coração, de tal modo que acordaram também os irmãos mais velhos, aos outros seria preciso muito mais para os arrancar do sono profundo que é o da inocência nestas idades. Maria correu a acudir ao filho que se debatia, com os braços levantados, como se tentasse defender-se de golpes de espada ou de lança, aos poucos esmoreceu, ou por se terem retirado os salteadores ou por se lhe estar acabando a vida. Jesus abriu os olhos, agarrou-se com força à mãe como se não fosse o homenzinho que é, patrão da sua família, até um homem adulto, se chora, se transforma em criancinha, não o querem confessar, pobres tontos, mas o dorido coração embala-se nas lágrimas. Que tens, meu filho, que tens, perguntou Maria, inquieta, e Jesus não podia responder, ou não queria, uma crispação em que já não havia nada da criança selava-lhe os lábios, Diz-me o que sonhaste, insistiu Maria, e, como tentando abrir-lhe um caminho, Viste o pai, o rapaz fez um brusco gesto negativo, depois soltou-se-lhe dos braços e deixou-se recair na esteira, Vai dormir, disse, e, dirigindo-se aos irmãos, Não é nada, durmam, eu estou bem. Maria voltou para junto das filhas, mas ficou, quase até ao amanhecer, de olhos abertos, atenta, esperando a cada momento que o sonho de Jesus se repetisse, que sonho teria sido esse para tão grande aflição, porém nada veio a acontecer. Não pensou Maria que o filho poderia estar acordado só para impedir-se de voltar a sonhar, o que sim pensou foi na coincidência, em verdade singular, de Jesus, que sempre gozara de sonos tranquilos, ter começado com os pesadelos a seguir à morte do pai, Senhor meu Deus, que não seja o mesmo sonho, implorou, o senso comum dizia-lhe, para sua tranquilidade, que os sonhos não se legam nem se herdam, bem enganada está, que não têm precisado os homens de comunicar uns aos outros os sonhos que sonham para que os andem sonhando iguais de pais em filhos e às mesmas horas. Enfim, amanheceu, iluminou-se a frincha da porta. Quando acordou, Maria viu que o lugar do filho mais velho estava vazio, Aonde terá ido, pensou, levantou-se rapidamente, abriu a porta e espreitou para fora, Jesus estava sentado debaixo do alpendre, na palha do chão, com a cabeça sobre os braços e os braços sobre os joelhos, imóvel. Arrepiada pelo ar frio da manhã, mas também, embora disso mal tivesse consciência, pela visão da solidão do filho, a mãe aproximou-se, Sentes-te doente, perguntou, o rapaz levantou a cabeça, Não, doente não estou, Então, que se passa contigo, São estes meus sonhos, Sonhos, dizes, Um sonho só, o mesmo esta noite e a outra, Sonhaste com o pai na cruz, Já te tinha dito que não, sonho com o pai mas não o vejo, Havias-me dito que não sonhaste com ele, Porque não o vejo, mas tenho a certeza de que está no sonho, E que sonho é esse que te anda a atormentar. Jesus não respondeu logo, olhou a mãe com uma expressão desamparada, e Maria sentiu como se um dedo lhe tocasse o coração, ali estava o seu filho, com aquela cara ainda de menino, o olhar mortiço de não haver dormido, e o primeiro buço de homem, ternamente ridículo, era o seu filho primogênito, a ele se confiava e entregava para o resto dos seus dias, Conta-me tudo, pediu, e Jesus disse, enfim, Sonho que estou numa aldeia que não é Nazaré e que tu estás comigo, mas não és tu porque a mulher que no sonho é minha mãe tem uma cara diferente, e há outros rapazes da minha idade, não sei quantos, e mulheres que são as mães, não sei se as verdadeiras, houve alguém que nos reuniu a todos na praça, e estamos à espera de uns soldados que nos vêm matar, ouvimo-los na estrada, aproximam-se mas não os vemos, nessa altura ainda não estou com medo, sei que é um sonho ruim, nada mais, mas de repente tenho a certeza de que o pai vem lá com os soldados, viro-me para ti, para que me defendas, embora não esteja seguro de que sejas tu, mas tu foste-te embora, e as mães todas foram-se embora, apenas ficamos nós, que então já não somos rapazes, mas meninos muito pequenos, eu estou deitado no chão e começo a chorar, e os outros choram todos, mas eu sou o único cujo pai vem com os soldados, olhamos para a entrada da praça, sabemos que entrarão por ali, e não entram, estamos à espera de que entrem mas não entram, e é ainda pior, os passos aproximam-se, é agora, e não é, não chega a ser, então vejo-me a mim mesmo, como sou agora, dentro da criancinha que também sou, e começo a fazer um grande esforço para sair dela, é como se estivesse atado de pés e mãos, chamo por ti, que te foste, chamo pelo pai, que me vem matar, e assim foi que acordei, esta noite e a outra. Maria arrepiava-se de horror, logo às primeiras palavras, mal percebeu o sentido do sonho, baixara os olhos aflitos, afinal, estava a acontecer o que tanto temera, contra todo o senso comum e a razão Jesus herdara o sonho do pai, não exactamente da mesma maneira, mas como se o pai e o filho, cada um em seu lugar, o estivessem, ao mesmo tempo, sonhando. E tremeu de verdadeiro pavor quando ouviu o filho perguntar-lhe, Que sonho era aquele que o pai tinha todas as noites, Ora, um sonho mau, como qualquer pessoa, Mas esse sonho, que era, Não sei, nunca mo contou, Mãe, não deves esconder a verdade ao teu filho, Não seria bom para ti sabê-lo, Que podes tu saber do que é bom ou mau para mim, Respeita a tua mãe, Sou teu filho, tens o meu respeito, mas agora estás a ocultar de mim o que é da minha vida, Não me obrigues a falar, Um dia perguntei ao pai qual a razão do seu sonho, e ele disse-me que nem eu podia fazer-lhe todas as perguntas, nem ele podia dar-me todas as respostas, Aí tens, aceita as palavras de teu pai, Aceitei-as enquanto viveu, mas agora sou o chefe da família, herdei dele uma túnica, umas sandálias e um sonho, com isto já poderia ir-me ao mundo, porém preciso saber que sonho levaria comigo, Meu filho, talvez não tornes a sonhá-lo. Jesus olhou a mãe de frente, forçou-a a olhá-lo também, e disse, Renunciarei a sabê-lo se na próxima noite o sonho não voltar, se não voltar nunca mais, mas, se ele se repetir, jura-me tu que me dirás tudo, Juro, respondeu Maria, que não sabia já como defender-se da insistência e da autoridade do filho. No silêncio do seu angustiado coração, um apelo subiu para Deus, sem palavras, ou, se as tivesse, poderiam ser, Passa-me, Senhor, a mim, este sonho, que até ao dia da minha morte tenha eu de sofrê-lo em todos os instantes, mas o meu filho, não, o meu filho, não. Disse Jesus, Lembrar-te-ás do que prometeste, Lembrar-me-ei, respondeu Maria, mas consigo mesma ia repetindo, O meu filho, não, o meu filho, não.
O meu filho, sim. Veio a noite, de madrugada um galo preto cantou, e o sonho repetiu-se, o focinho do primeiro cavalo apareceu na esquina. Maria ouviu os gemidos do filho, mas não foi consolá-lo. E Jesus, a tremer, banhado no suor do medo, não precisou perguntar para saber que a mãe também acordara, Que irá ela contar-me, pensou, enquanto Maria, por seu lado, cismava, Como lho contarei, e buscava maneiras de não dizer tudo. De manhã, quando se levantaram, Jesus disse à mãe, Vou contigo levar os meus irmãos à sinagoga, depois virás tu comigo ao deserto, pois temos de falar. A pobre Maria, enquanto preparava a comida dos filhos, caíam-lhe as coisas das mãos, mas o vinho da agonia fora servido, agora havia que bebê-lo. Deixados os mais novos na escola, mãe e filho saíram da aldeia, e ali, no descampado, sentaram-se debaixo duma oliveira, ninguém, a não ser Deus, se por estes lados andar, poderá ouvir o que disserem, as pedras sabemos que não falam, mesmo se as batemos umas contra as outras, e quanto à terra profunda, ela é o lugar onde todas as palavras se tornam em silêncio. Jesus disse, Cumpre o que juraste, e Maria respondeu sem rodear, Teu pai sonhava que ia de soldado, com outros soldados, a matar-te, A matar-me, Sim, Esse é o meu sonho, Sim, confirmou ela, aliviada, Afinal foi simples, pensou, e em voz alta, Agora já sabes, voltemos para casa, os sonhos são como as nuvens, vêm e vão, foi só por muito quereres a teu pai que lhe herdaste o sonho, mas ele não te matou, nem nunca te mataria, e ainda que tivesse sido por uma ordem do Senhor, no último momento o anjo lhe deteria a mão, como fez a Abraão quando ia sacrificar seu filho Isaac, Não fales do que não sabes, cortou secamente Jesus, e Maria viu que o vinho amargo teria de ser bebido até ao fim, Consente, meu filho, que ao menos eu saiba que nada se pode opor à vontade do Senhor, qualquer que seja, e que se o Senhor teve agora uma vontade e logo a seguir vai ter outra, contrária, nem tu nem eu somos parte na contradição, respondeu Maria, e, cruzando as mãos no regaço, ficou à espera. Jesus disse, Responderás a todas as perguntas que eu te fizer, Responderei, disse Maria, Desde quando começou meu pai a ter o sonho, Há muitos anos, Quantos, Desde que nasceste, Todas as noites o sonhou, Sim, creio que todas as noites, nos últimos tempos já não me fazia acordar, uma pessoa acostuma-se, Nasci em Belém de Judeia, Assim é, Que foi que aconteceu no meu nascimento para que meu pai sonhasse que me ia matar, Não foi no teu nascimento, Mas tu disseste, O sonho apareceu umas semanas depois, Que foi que se passou nessa altura, Herodes mandou matar os meninos de Belém com menos de três anos, Porquê, Não sei, O pai sabia, Não, Mas a mim não me mataram, Vivíamos numa cova fora da aldeia, Queres dizer que os soldados não me mataram porque não chegaram a ver-me, Sim, Meu pai era soldado, Nunca foi soldado, Que fazia então, Trabalhava nas obras do Templo, Não compreendo, Estou a responder às tuas perguntas, Se os soldados não chegaram a ver-me, se vivíamos fora da aldeia, se o pai não era soldado, se não tinha responsabilidade, se nem sequer sabia por que motivo mandou Herodes matar os meninos, Sim, teu pai não soube por que motivo Herodes mandou matar os meninos, Então, Nada, se não tens mais perguntas a fazer-me, eu não tenho mais respostas a dar-te, Ocultas-me qualquer coisa, Ou és tu que não és capaz de ver. Jesus ficou calado, sentia sumir-se, como água num chão seco, a autoridade com que falara à mãe, ao mesmo tempo em que, num canto qualquer da sua alma, lhe parecia ver desenroscar-se uma ideia ignóbil, de linhas que se moviam ainda, mas monstruosa logo ao nascer. Na encosta duma colina em frente passava um rebanho de ovelhas, tanto elas como o pastor tinham a cor da terra, eram terra movendo-se sobre terra. O rosto tenso de Maria descobriu-se numa expressão de surpresa, aquele pastor alto, aquele modo de caminhar, tantos anos depois e neste justo momento, que sinal será, afirmou melhor os olhos e duvidou, que agora era um vulgar vizinho de Nazaré levando as suas poucas ovelhas ao pasto, tão enfezadas elas como ele. No espírito de Jesus a ideia acabou de formar-se, quis sair para fora do corpo mas a língua travou-lhe a passagem, enfim, com uma voz temerosa de si mesma disse, O pai sabia que os meninos iam ser mortos. Não perguntou, por isso Maria não teve de responder. Como soube ele, agora sim que era uma pergunta, Estava a trabalhar nas obras do Templo, em Jerusalém, quando ouviu uns soldados que falavam do que iam fazer, E depois, Veio a correr para te salvar, E depois, Pensou que não seria preciso fugirmos e deixamo-nos ficar na cova, E depois, Mais nada, os soldados fizeram o que lhes tinham mandado e foram-se embora, E depois, Depois voltamos para Nazaré, E o sonho começou, A primeira vez foi na cova. As mãos de Jesus subiram de repente até ao rosto como se o quisessem rasgar, a voz soltou-se num grito irremediável, O meu pai matou os meninos de Belém, Que loucura estás dizendo, mataram-nos os soldados de Herodes, Não, mulher, matou-os o meu pai, matou-os José filho de Heli, que sabendo que os meninos iam ser mortos não avisou os pais deles, e quando estas palavras ficaram todas ditas ficou também perdida a esperança de consolação. Jesus lançou-se para o chão, a chorar, Os inocentes, os inocentes, dizia ele, parece incrível que um simples rapaz de treze anos, idade em que o egoísmo facilmente se explica e desculpa, possa ter sofrido tão forte abalo por causa duma notícia que, se tivermos em conta o que sabemos do nosso mundo contemporâneo, deixaria indiferente a maior parte da gente. Mas as pessoas não são todas iguais, excepções há-as para o bem e para o mal, e esta é sem dúvida das melhores, um rapazito a chorar por um antigo erro cometido por seu pai, e que talvez esteja chorando também por si próprio, se, como tem parecido, amava a esse pai duas vezes culpado. Maria estendeu a mão para o filho, quis tocar-lhe, mas ele furtou o corpo, Não me toques, a minha alma tem uma ferida, Jesus, meu filho, Não me chames teu filho, tu também tens culpa. São assim os juízos da adolescência, radicais, na verdade Maria estava tão inocente como os meninos assassinados, os homens, minha irmã, é que decidem de tudo, chegou aqui o meu marido e disse, Vamo-nos embora, depois emendou, Afinal não vamos, e sem mais explicações, foi preciso eu perguntar-lhe, Que gritos são aqueles. Maria não respondeu ao filho, seria tão fácil demonstrar-lhe que não era culpada, mas pensou no marido crucificado, também ele morto inocente, e sentiu, com lágrimas e vergonha, que o amava agora, mais do que quando fora vivo, por isso calou-se, a culpa que um levou pode levá-la outro. Disse Maria, Vamos para casa, não temos mais nada a dizer aqui, e o filho respondeu-lhe, Vai tu, eu fico. Parecia que se perdera o rasto de ovelha ou pastor, o deserto era de facto um deserto, e até as casas além, soltas ao acaso pela encosta abaixo, pareciam grandes pedras talhadas, de um estaleiro abandonado, que aos poucos se fossem enterrando no chão. Quando Maria desapareceu na fundura cinzenta de um vale, Jesus, de joelhos, gritou, e todo o seu corpo lhe ardia como se estivesse a suar sangue, Pai, meu pai, por que me abandonaste, que isto era o que o pobre rapaz sentia, abandono, desespero, a solidão infinda de um outro deserto, nem pai, nem mãe, nem irmãos, um caminho de mortos principiado. De longe, sentado no meio das ovelhas e confundido com elas, o pastor olhava-o.


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