Como posso ir-me, se tenho os pés neste estado,
pensou Jesus vendo afastar-se Pastor para o outro lado do rebanho. Deus, que
tão limpamente fizera desaparecer a ovelha, não o beneficiara, de dentro da
nuvem, com a graça do seu divino cuspo, para que o mortificado Jesus pudesse,
com ele, untar e sarar as feridas por onde o sangue continuava a manar,
brilhando sobre as pedras. Pastor não o ajudará, lançou as palavras
cominatórias e retirou-se, como quem espera que a sentença seja cumprida e não
tenciona estar presente nos preparativos da partida, e muito menos despedir-se.
A custo, arrastando-se sobre os joelhos e as mãos, Jesus alcançou o bivaque,
onde, a cada paragem, se arrumavam os utensílios do governo do rebanho, os
tarros para o leite, as tábuas da espremedura, e também as peles de ovelha e de
cabra que iam curtindo, e com que, por troca, adquiriam os bens de que
precisavam, uma túnica, um manto, alimentos mais variados. Pensou Jesus que não
poderiam culpá-lo se se pagasse do seu salário por suas próprias mãos, talhando
das peles de ovelha umas formas de sandálias ou coturnos para envolver os pés,
servindo depois para os atilhos umas tiras de pele de cabra, mais manejáveis
por terem menos pêlo. Ao ajeitá-las, duvidou se a lã deveria ficar do lado de
dentro ou do lado de fora, acabando por usá-la como forro, por dentro, visto o
mísero estado em que tinha os pés. O mal vai ser colarem-se-lhe as feridas aos
pêlos, mas, como já decidiu que o seu caminho será pela margem do Jordão,
bastará que meta os pés calçados na água e aos poucos se lhe dissolverá a goma
seca do sangue. O próprio peso das botifarras, que é o que mais parecem,
metidas na água e ensopadas, ajudará suavemente a despegarem-se os pés do
lanoso chumaço, sem levar consigo as protectoras e benfazejas crostas que aos
poucos se vêm formando. Um pouco de sangue levado na corrente era sinal, pela
boa cor dele, de que as feridas ainda se não haviam infectado, por muito que
custe a acreditar. Jesus, na sua vagarosa caminhada para o norte, fazia pois
longos descansos, deixava-se ficar sentado na margem do rio, com os pés
suspensos dentro de água, a gozar da frescura e da medicina. Doía-lhe ter sido expulso
daquela maneira, depois de haver-se encontrado com Deus, acontecimento inaudito
no sentido pleno da palavra, pois, que ele o soubesse, não havia hoje um único homem
em todo Israel que pudesse gabar-se de ter visto Deus e sobrevivido. É certo
que, aquilo que se chama ver, ele não vira, mas se uma nuvem se nos apresenta
no deserto, com a forma de uma coluna de fumo, e diz, Eu sou o Senhor, mantendo
depois uma conversação, não apenas lógica e sensata, mas com uma expressão de
autoridade sem réplica que só divina podia ser, qualquer dúvida, pequena que
fosse, seria ofensa. Que o Senhor era o Senhor demonstrara-o a resposta que
dera quando lhe perguntara acerca de Pastor, aquelas palavras despreocupadas,
em que era patente haver um pouco de desprezo mas também de intimidade, o que
fora reforçado pela recusa de responder se anjo era, ou demônio. Mas o mais
interessante era que as palavras de Pastor, duras e aparentemente alheadas da
questão central, não faziam mais que confirmar a verdade sobrenatural do encontro,
Não te perguntei se encontraste Deus, como se estivesse a dizer, Até aí já eu
sei, como se o anúncio o não tivesse surpreendido, como se o soubesse de
antemão. Mas o que parecia ser certo era não lhe ter perdoado a morte da
ovelha, outro sentido não podiam ter aquelas palavras finais, Não aprendeste
nada, vai, e depois retirou-se ostensivamente para o outro extremo do rebanho,
mantendo-se ali, de costas voltadas, até ele ter-se ido embora. Ora, numa
destas ocasiões, quando Jesus deixava espraiar-se a imaginação em previsões do que
viria o Senhor a querer dele quando voltassem a encontrar-se, as palavras de
Pastor soaram-lhe repentinamente aos ouvidos, tão claras e distintas como se
estivesse mesmo ali ao lado, Não aprendeste nada, e nesse instante o sentimento
de ausência, de falta, de solidão, foi tão forte que o seu coração gemeu, ali
estava ele, sozinho, sentado na margem do Jordão, olhando os pés na
transparência do rio e vendo manar de um dos calcanhares um leve fio de sangue,
e lentamente mover-se entre duas águas, de súbito não lhe pertenciam o sangue
nem os pés, era seu pai que ali tinha vindo, coxeando com os seus calcanhares
furados, a gozar do fresco do Jordão, e dizia-lhe igual que Pastor, Tens de voltar
ao princípio, não aprendeste nada. Jesus, como se erguesse do chão uma pesada e
longa cadeia de ferro, recordava a sua vida, elo por elo, o anúncio misterioso
da sua concepção, a terra iluminada, o nascimento na cova, as crianças mortas
de Belém, a crucifixão do pai, a herança dos pesadelos, a fuga de casa, o
debate no Templo, a revelação de Zelomi, o aparecimento do pastor, a vida com o
rebanho, o cordeiro salvo, o deserto, a ovelha morta, Deus. E como esta última
palavra era demasiada para que o seu espírito pudesse ocupar-se dela, fixou-se
obsessivamente num pensamento, por que é que um cordeiro que tinha sido salvo
da morte veio a morrer ovelha, questão tão estúpida quanto se vê, mas que se
compreenderá melhor se for assim traduzida, Nenhuma salvação é suficiente,
qualquer condenação é definitiva. O último elo da corrente é este agora, estar
na margem do rio Jordão, ouvindo o dolente canto de uma mulher que dali não se
pode ver, escondida entre a junça, talvez lavando roupa, talvez banhando-se, e
Jesus quer perceber como isto é tudo o mesmo, o cordeiro vivo que se
transformou em ovelha morta, os seus pés sangrando do sangue de seu pai, e a
mulher que canta, nua, deitada de costas sobre a água, os peitos duros
levantados fora dela, o púbis negro soerguendo-se na ondulação da aragem, não é
verdade que Jesus alguma vez tivesse visto, até hoje, uma mulher nua, mas se um
homem, apenas partindo duma simples coluna de fumo, pode pôr-se a futurar o que
será estar com Deus em o dia chegando a um e a outro, não se compreenderia que
as minúcias de uma mulher nua, supondo que a palavra é própria, não pudessem
ser imaginadas e criadas duma música que se lhe ouve cantar, mesmo sem sabermos
se as palavras nos são dirigidas. José já não está aqui, regressou à vala comum
de Séforis, de Pastor não assoma nem a ponta do cajado, e Deus, se está em toda
a parte, como se diz, não escolheu uma coluna de fumo para mostrar-se, talvez
esteja naquela água que corre, a mesma onde se banha a mulher. O corpo de Jesus
deu um sinal, inchou no que tinha entre as pernas, como acontece a todos os
homens e a todos os animais, o sangue correu veloz a um mesmo sítio, a ponto de
se lhe secarem subitamente as feridas, Senhor, que forte é este corpo, mas
Jesus não foi dali à procura da mulher, e as suas mãos repeliram as mãos da tentação
violenta da carne, Não és ninguém se não te quiseres a ti mesmo, não chegas a Deus
se não chegares primeiro ao teu corpo. Quem disse estas palavras, não se sabe,
porém Deus não as diria, não são contas do seu rosário, de Pastor, sim,
poderiam ser, se não estivesse tão longe daqui, talvez, no fim das contas,
fossem as palavras da canção que a mulher cantava, nesse momento pensou como
podia ser agradável ir lá pedir-lhe que lhas explicasse, mas a voz já se não
ouvia, porventura a tinha levado consigo a corrente, ou a mulher, simplesmente,
saíra da água para enxugar-se e vestir-se, assim calando o seu corpo. Jesus
enfiou as pantufas ensopadas e pôs-se de pé, fazendo esparrinhar a água para os
lados, como uma esponja. Muito irá rir a mulher, se para estes lados está
vindo, ao encontrar-se com as grotescas patorras, mas pode bem ser que esse
riso de troça não dure muito, quando os olhos dela subirem pelo corpo de Jesus
acima, adivinhando as formas que a túnica esconde, e se detiverem a olhar os
olhos dele, doridos por causas antigas e agora, por uma razão nova, ansiosos.
Com poucas ou nenhumas palavras, o corpo dela tornará a despir-se, e quando
tiver acontecido o que destes casos sempre se deverá esperar, ela retirar-lhe-á
as sandálias com grande cuidado, curará as feridas pondo em cada pé um beijo e
envolvendo-os depois, como um ovo ou um casulo, nos seus próprios cabelos úmidos.
Pelo caminho não vem ninguém, Jesus olha em redor, suspira, busca um recanto escondido
e para lá se encaminha, mas de súbito pára, lembrou-se a tempo de que o Senhor tirou
a vida a Onan por derramar o seu sêmen no chão. Ora, tivesse Jesus dado outra mais
analítica volta ao episódio clássico, o que, aliás, concordaria com os seus
processos mentais, e talvez o não detivesse a impiedosa severidade do Senhor, e
isto por duas razões, sendo a primeira razão não haver ali cunhada com quem
devesse, pela lei, dar posteridade a um irmão morto, e sendo a segunda razão,
acaso mais forte que a outra, ter o Senhor, segundo lho fizera saber no deserto,
algumas firmes ainda que não reveladas ideias quanto ao seu futuro, e não ser
portanto crível nem lógico que se esquecesse das promessas feitas, deitando
tudo a perder só porque uma mão sem governo tinha ousado chegar-se aonde não devia,
sabendo o Senhor o que são as necessidades do corpo, não é só o trivial do
comer e do beber, trivial, havendo, dizemos, outros jejuns existem que não são
menos custosos de aturar. Estas e outras semelhantes reflexões, que deveriam
ajudar Jesus a levar por diante o humaníssimo movimento de procurar, para certo
fim, um refúgio longe das vistas, acabaram por ter efeito contraproducente,
distraiu-se o pensamento do que tinha em mente, achou-se envolvido nos meandros
do seu próprio pensar, o resultado foi ir-se-lhe a vontade do que queria, de
desejo nem falemos, que, sendo pecaminoso, um simples nada o faz hesitar e
esmorecer. Resignado com a sua própria virtude, Jesus pôs o alforje ao ombro,
empunhou o cajado e meteu pés ao caminho.
No primeiro dia desta viagem ao longo da margem do
Jordão, o hábito de quatro anos de isolamento levara Jesus a apartar-se dos
raros lugares povoados que por ali havia. Porém, à medida que se aproximava do
lago de Genesaré, tornou-se cada vez mais difícil, para ele, rodear as aldeias,
tanto mais que as cercavam campos cultivados, nem sempre cômodos de atravessar,
tanto pelos desvios que era obrigado a fazer como pelas desconfianças que o seu
ar de vagabundo despertava nos lavradores. Decidiu-se pois Jesus a ir ao mundo,
e a verdade é que não desgostou do que viu, só o importunava muito o ruído, de
que quase se esquecera. Na primeira destas aldeias em que entrou, um bando
estúrdio de rapazes fez-lhe uma assuada tremenda às botas, boa coisa foi,
afinal, porque Jesus tinha dinheiro suficiente para comprar umas sandálias
novas, recordemos que não toca no dinheiro que traz, desde aquele que lhe foi
dado pelo fariseu, viver quatro anos com tão pouco e não ter precisado de o
gastar, foi máxima riqueza, não há que rogar mais ao Senhor. Agora, compradas as
sandálias, ficou-lhe o tesouro reduzido a duas moedas de pouco valor, mas a
penúria não o aflige, já pouco lhe falta para chegar ao seu destino, Nazaré, a
casa, aonde é certo que vai regressar porque um dia, ao deixá-la, e parecia que
para sempre a deixava, dissera, Duma maneira ou doutra, sempre voltarei. Vem
sem pressa, bordejando as mil curvas do Jordão, também é verdade que o estado
em que tinha os pés não lhe permitiria grandes façanhas andarilhas, mas a razão
principal do vagar residia na sua própria certeza de chegar, como se pensasse,
É como se já lá estivesse, mas um outro sentimento, esse menos consciente, lhe
retardava ainda os passos, qualquer coisa que se poderia exprimir por palavras
como estas, Quanto mais depressa chegar, mais depressa torno a partir. Subia ao
longo da margem do lago, em direcção ao norte, já está à altura de Nazaré, se
quisesse chegar rapidamente a casa não teria mais que rodar os calcanhares no
sentido do sol-poente, mas as águas do lago retêm-no, azuis, largas, tranquilas.
Gosta de sentar-se na margem a olhar a manobra dos pescadores, alguma vez, em
pequeno, veio a estas paragens, acompanhando os pais, mas nunca se detivera a
olhar com atenção a faina destes homens que deixam atrás de si todos os cheiros
do peixe, como se eles próprios fossem habitantes do mar. Enquanto por aqui
andou, Jesus ganhou o sustento ajudando no que sabia, que era nada, e no que
podia, que era pouco, puxar um barco para terra ou empurrá-lo para a água, dar
uma mão a uma rede que transbordava, os pescadores viam-lhe a cara de
necessidade e davam-lhe dois ou três peixes espinhosos, chamados tilápias, como
salário. Ao princípio, tímido, Jesus ia assá-los e comê-los à parte, mas,
tendo-se demorado por ali três dias, logo ao segundo o quiseram chamar os pescadores
para que com eles arranchasse. E no último dia já Jesus foi ao mar, na barca de
dois irmãos que se chamavam Simão e André, mais velhos do que ele, nenhum dos
dois tinha menos de trinta anos. No meio das águas, Jesus, sem experiência do
ofício, ele próprio rindo da sua falta de habilidade, atreveu-se, incitado
pelos seus novos amigos, a lançar a rede, naquele largo gesto que, olhado de
longe, se parece com uma bênção ou um desafio, sem outro resultado que quase
ter caído à água de uma das vezes em que o tentou. Simão e André riram muito,
já sabiam que Jesus só percebia de cabras e ovelhas, e Simão disse, Melhor vida
seria a nossa se este outro gado se deixasse levar e trazer, e Jesus respondeu,
Pelo menos não se perdem, não se tresmalham, estão aqui todos na concha do mar,
todos os dias a fugir da rede, todos os dias a cair nela. A pesca não tinha
sido frutuosa, o fundo do barco estava pouco menos que vazio, e André disse,
Mano, vamos para casa, que este dia já deu o que tinha a dar. Simão assentiu, Tens
razão, mano, vamos lá. Enfiou os remos nos toletes e ia dar a primeira das
remadas que os levariam à margem, quando Jesus, não creiamos que por inspiração
ou pressentimento de marca maior, foi um modo, apenas, ainda que inexplicável,
de demonstrar a sua gratidão, propôs que se fizessem três últimas tentativas,
Quem sabe se o rebanho dos peixes, conduzido pelo seu pastor, terá vindo cá
para o nosso lado. Simão riu, Essa é outra vantagem que têm as ovelhas, poderem
ser vistas, e para André, Lança lá a rede, se não se ganha, também não se
perde, e André lançou a rede e a rede veio cheia. Arregalaram-se de espanto os
olhos dos dois pescadores, mas o assombro transformou-se em portento e
maravilha quando a rede, lançada mais uma vez e outra ainda, voltou cheia duas
vezes. De um mar que tão deserto de pescado antes parecera, como a água duma
infusa posta à boca da fonte límpida, saíam, com nunca vista profusão,
torrentes luzidias de guelras, dorsos e barbatanas em que a vista se confundia.
Perguntaram Simão e André como soubera ele que o peixe ali chegara de um
momento para o outro, que olhar de lince se apercebera do movimento profundo
das águas, e Jesus respondeu que não, que não sabia, fora apenas uma ideia,
experimentar a sorte uma última vez antes de regressarem. Não tinham os dois
irmãos motivos para duvidar, o acaso faz destes e outros milagres, mas Jesus,
dentro de si, estremeceu, e no silêncio da sua alma perguntou, Quem fez isto.
Disse Simão, Ajuda aqui a escolher, ora, a oportunidade é boa para explicar que
não foi neste mar de Genesaré que nasceu a ecumênica sentença, Tudo o que vem à
rede é peixe, aqui os critérios são diferentes, peixe será o que a rede trouxe,
mas a lei é claríssima neste ponto, como em todos, Eis aquilo que podereis
comer dos diversos animais aquáticos, podeis comer tudo o que, nas águas, mares
ou rios, tem barbatanas e escamas, mas tudo o que não tem barbatanas e escamas,
nos mares ou nos rios, quer o que pulula na água, quer os animais que nela
vivem, são abomináveis para vós, e abomináveis continuarão a ser, não comeis a
sua carne e considerai os seus cadáveres como abomináveis, tudo o que, nas
águas, não tem barbatanas e escamas, será para vós abominável. Os peixes
réprobos, de pele lisa, aqueles que não podem ir à mesa do povo do Senhor,
foram assim restituídos ao mar, muitos deles, mesmo, já tinham ganho o costume
e não se preocupavam quando os levava a rede, sabiam que pronto tornariam à
água, sem risco de morrerem sufocados. Em sua cabeça de peixes criam beneficiar
duma benevolência especial do Criador, senão mesmo de um amor particular, o que
os levou, ao cabo do tempo, a considerarem-se superiores aos outros peixes, os
que ficavam nas barcas, que muitas e graves faltas esses deviam ter cometido a
coberto das escuras águas para que Deus, assim, sem piedade, os deixasse
morrer.
Quando enfim chegaram à margem, com mil artes e
cuidados para não irem a pique, pois a superfície do lago lambia a borda do
barco como se o quisesse engolir, a surpresa das gentes não teve explicação.
Quiseram saber como aquilo acontecera, sabendo-se que os outros pescadores
tinham regressado com o fundo seco, mas, de tácito e comum acordo, nenhum dos
três afortunados falou das circunstâncias da pescaria prodigiosa, Simão e André
para não verem publicamente diminuídos os seus méritos de práticos, Jesus por não
querer que os outros pescadores o metessem, como um chamariz, nas respectivas
companhas, o que, dizemos nós, seria de inteira justiça, para se acabar, de
vez, com as diferenças entre filhos e enteados que tanto mal têm trazido ao
mundo. Por este pensar é que Jesus anunciou, nessa noite, que na manhã seguinte
partiria para Nazaré, onde o esperava a família, depois de quatro anos de
ausências e de andanças que podiam dizer-se do demônio, tão afadigadas foram.
Lamentaram muito Simão e André uma decisão que os privava do melhor olheiro de
gado aquático de que havia memória nos anais de Genesaré, lamentaram-na também
dois outros pescadores, Tiago e João, filhos de Zebedeu, moços um pouco
simples, a quem, por brincadeira, costumavam perguntar, Quem é o pai dos filhos
de Zebedeu, os pobres ficavam interditos, perdidos de si mesmos, e nem o facto
de saberem a resposta, como está claro que sabiam, sendo eles os filhos, nem
isto os poupava a um instante de perplexidade e de angústia. A pena que sentiam
da saída de Jesus não era só por assim se lhes escapar a oportunidade duma
famosa pescaria, mas porque, sendo novos, João era mesmo mais novo que Jesus,
teriam gostado de formar com ele uma tripulação de juvenis para disputar com a
geração mais velha. A sua simplicidade de espírito não era necedade nem retraso
mental, iam era pela vida como se sempre estivessem a pensar noutra coisa, por
isso começavam por hesitar quando se lhes perguntava como se chamava o pai dos
filhos de Zebedeu e não percebiam por que se ria a gente com tanto gosto
quando, triunfalmente, respondiam, Zebedeu. João ainda foi fazer uma tentativa,
chegou-se a Jesus e disse-lhe, Fica connosco, a nossa barca é maior que a de
Simão, apanharemos mais peixe, e Jesus, sábio e piedoso, respondeu-lhe, A medida
do Senhor não é a medida do homem, mas a da sua justiça. Embatucou João, foi-se
embora de cabeça baixa, e sem diligências doutros interessados se passou o
serão. No dia seguinte, Jesus despediu-se dos primeiros amigos que criara nos
seus dezoito anos de vida, e, de farnel aviado, virando costas a este mar de
Genesaré, onde, ou muito se enganava, ou lhe fizera Deus um sinal, orientou
enfim os passos para as montanhas, caminho de Nazaré. Quis, porém, o destino
que, passando ele pela cidade de Magdala, se lhe rebentasse ali, do pé, uma
ferida que andava renitente em sarar, e em tal jeito que parecia o sangue não
querer estancar-se. Também quis o destino que o perigoso acidente tivesse
ocorrido à saída de Magdala, mesmo em frente, por assim dizer à porta, de uma
casa que ali havia, afastada das outras, como se não quisesse aproximar-se
delas, ou elas a repelissem. Vendo que o sangue não dava mostras de querer
parar, Jesus chamou, Ó de dentro, disse, e, acto contínuo, uma mulher apareceu
à porta, como se justamente estivesse à espera de que a chamassem, embora, por
um leve ar de surpresa que começou por aparecer-lhe na cara, pudéssemos ser
levados a pensar que estaria antes habituada a que lhe entrassem pela casa
dentro, sem bater, o que, se bem considerarmos as coisas, teria menos razão de
ser que em outro qualquer caso, pois esta mulher é uma prostituta e o respeito
que deve à sua profissão manda-lhe que feche a porta de casa quando recebe um
cliente. Jesus, que estava sentado no chão, comprimindo a desatada ferida,
olhou de relance a mulher que se lhe acercava, Ajuda-me, disse, e, tendo
segurado a mão que ela lhe estendia, conseguiu pôr-se de pé e dar uns passos,
coxeando. Não estás em estado de andar, disse ela, entra, que eu trato-te dessa
ferida. Jesus não disse nem sim nem não, o odor da mulher entontecia-o, a ponto
de ter-lhe desaparecido, de um momento para o outro, a dor que lhe dera ao
abrir-se a chaga, e agora, com um braço por cima dos ombros dela e sentindo a
sua própria cintura cingida por outro que evidentemente não podia ser seu,
apercebeu-se do tumulto que lhe trespassava o corpo em todas as direcções, se
não fosse mais exacto dizer sentidos, porque neles, ou em um que tem esse nome,
mas que não é o ver nem o ouvir nem o cheirar nem o gostar nem o tocar, podendo
no entanto levar de cada um deles uma parte, aí é que ia bater tudo, salvo
seja. A mulher ajudou-o a entrar para o pátio, trancou a porta e fê-lo
sentar-se, Espera, disse. Foi dentro e voltou com uma bacia de barro e um pano
branco. Encheu de água a bacia, molhou o pano e, ajoelhando-se aos pés de
Jesus, sustendo na palma da mão esquerda o pé ferido, lavou-o cuidadosamente,
limpando-o da terra, amaciando a crosta estalada através da qual surdia, com o
sangue, uma matéria amarela, purulenta, de mau aspecto. Disse a mulher, Não vai
ser com água que te curarás, e Jesus disse, Só te peço que me ates a ferida de
modo a poder chegar a Nazaré, depois lá me trato, ia a dizer, Minha mãe
trata-me, mas emendou porque não queria parecer aos olhos desta mulher como um
rapazinho que, por dar uma topada numa pedra, vai a chorar, Mãezinha, mãezinha,
à espera do afago, um sopro suave no dedo ofendido, um toque dulcificante dos
dedos, Não é nada, meu menino, já passou. Daqui a Nazaré ainda tens muito que
andar, mas se é assim que queres, espera só que te ponha um unguento, disse a
mulher, e entrou em casa, onde iria demorar-se um pouco mais que antes. Jesus
olhou em redor o pátio, surpreendido porque em sua vida nunca vira nada tão
limpo e arrumado. Está desconfiado de que a mulher é uma prostituta, não por
particular habilidade sua em adivinhar profissões à primeira vista, ainda não
há muitos dias ele próprio poderia ter sido identificado pelo cheiro a gado
cabrum que tresandava, e agora todos
dirão, É pescador, foi-se aquele cheiro, outro veio, que não tresanda menos. A
mulher cheira a perfume, mas Jesus, apesar da sua inocência, que não é
ignorância, pois não lhe faltaram ocasiões de ver como procediam bodes e
carneiros, tem bom senso que chegue para considerar que cheirar bem do corpo
não é razão suficiente para afirmar que uma mulher é prostituta. Na verdade,
uma prostituta deveria era cheirar ao que frequenta, a homem, como o cabreiro
cheira a cabra e o pescador a peixe, mas talvez, sabe-se lá, essas mulheres se
perfumem tanto justamente por quererem esconder, disfarçar ou, mesmo, esquecer
o cheiro do homem. A mulher reapareceu com um pequeno boião e vinha a sorrir
como se alguém, dentro de casa, lhe tivesse contado uma história divertida.
Jesus via-a aproximar-se, mas, se os olhos o não estavam enganando, ela vinha
muito devagar, como acontece às vezes nos sonhos, a túnica movia-se, ondulava,
modelando ao andar o balanço rítmico das coxas, e os cabelos pretos da mulher,
soltos, dançavam-lhe sobre os ombros como o vento faz às espigas da seara. Não
havia dúvida, a túnica, mesmo para um leigo, era de prostituta, o corpo de
bailarina, o riso de mulher leviana. Jesus, em aflição, pediu à sua memória que
o socorresse com algumas apropriadas máximas do seu célebre homónimo e autor,
Jesus, filho de Sira, e a memória serviu-o bem, murmurando-lhe discretamente,
do lado de dentro do ouvido, Foge do encontro duma mulher leviana, para não
caíres nas suas ciladas, e logo, Não andes muito com uma bailarina, não suceda
que pereças por causa dos seus encantos, e finalmente, Nunca te entregues às
prostitutas, para que não te percas a ti e aos teus haveres, perder-se este
Jesus de agora bem poderá acontecer, sendo homem e tão novo, mas, quanto aos
haveres, esses já sabemos que não correm perigo porque os não tem, pelo que ele
próprio se achará salvo, em chegando a hora, quando a mulher, antes de fechar o
contrato, lhe perguntar, Quanto tens. Preparado para tudo está, portanto,
Jesus, e por isso não o apanha de surpresa a pergunta que ela lhe fez enquanto,
agora posto o pé dele sobre o joelho dela, lhe cobria de unguento a ferida,
Como te chamas, Jesus, foi o que respondeu, e não disse de Nazaré, porque já
antes o tinha declarado, como ela, por ser aqui que vivia, não disse de Magdala,
quando, ao perguntar-- lhe ele por sua vez o nome, respondeu que Maria. Com
tantos movimentos e observações, acabou Maria de Magdala de fazer o penso ao
dorido pé de Jesus, rematando-o com uma sólida e pertinente atadura, Aí tens,
disse ela, Como te devo agradecer, perguntou Jesus, e pela primeira vez os seus
olhos tocaram os olhos dela, negros, brilhantes como carvões de pedra, mas onde
perpassava, como uma água que sobre água corresse, uma espécie de voluptuosa
velatura que atingiu em cheio o corpo secreto de Jesus. A mulher não respondeu
logo, olhava-o, por sua vez, como se o avaliasse, a pessoa que era, que de dinheiros
bem se via que não estava provido o pobre moço, e por fim disse, Guarda-me na tua
lembrança, nada mais, e Jesus, Não esquecerei a tua bondade, e depois,
enchendo-se de ânimo, Nem te esquecerei a ti, Porquê, sorriu a mulher, Porque
és bela, Não me conheceste no tempo da minha beleza, Conheço-te na beleza desta
hora. O sorriso dela esmoreceu, extinguiu-se, Sabes quem sou, o que faço, de
que vivo, Sei, Não tiveste mais que olhar para mim e ficaste a saber tudo, Não
sei nada, Que sou prostituta, Isso sei, Que me deito com homens por dinheiro,
Sim, Então é o que eu digo, sabes tudo de mim, Sei só isso. A mulher sentou-se
junto dele, passou-lhe suavemente a mão pela cabeça, tocou-lhe na boca com a
ponta dos dedos, Se queres agradecer-me, fica este dia comigo, Não posso,
Porquê, Não tenho com que pagar-te, Grande novidade, Não te rias de mim, Talvez
não creias, mas olha que mais facilmente me riria de um homem com a bolsa
cheia, Não é só a questão do dinheiro, Que é, então. Jesus calou-se e voltou a
cara para o lado. Ela não o ajudou, podia ter-lhe perguntado, És virgem, mas
deixou-se ficar calada, à espera. Fez-se silêncio, tão denso e profundo que
parecia que apenas os dois corações soavam, mais forte e rápido o dele, o dela
inquieto com a sua própria agitação. Jesus disse, Os teus cabelos são como um rebanho
de cabras descendo das vertentes pelas montanhas de Galaad. A mulher sorriu e ficou
calada. Depois Jesus disse, Os teus olhos são como as fontes de Hesebon, junto
à porta de Bat-Rabim. A mulher sorriu de novo, mas não falou. Então Jesus
voltou lentamente o rosto para ela e disse, Não conheço mulher. Maria
segurou-lhe as mãos, Assim temos de começar todos, homens que não conheciam
mulher, mulheres que não conheciam homem, um dia o que sabia ensinou, o que não
sabia aprendeu, Queres tu ensinar-me, Para que tenhas de agradecer-me outra
vez, Dessa maneira, nunca acabarei de agradecer-te, E eu nunca acabarei de
ensinar-te. Maria levantou-se, foi trancar a porta do pátio, mas primeiro
dependurou qualquer coisa do lado de fora, sinal que seria de entendimento,
para os clientes que viessem por ela, de que se havia cerrado a sua fresta porque
chegara a hora de cantar, Levanta-te, vento do norte, vem tu, vento do
meio-dia, sopra no meu jardim para que se espalhem os seus aromas, entre o meu
amado no seu jardim e coma dos seus deliciosos frutos. Depois, juntos, Jesus
amparado, como fizera antes, ao ombro de Maria, esta prostituta de Magdala que
o curou e o vai receber na sua cama, entraram em casa, na penumbra propícia de
um quarto fresco e limpo. A cama não é aquela rústica esteira estendida no
chão, com um lençol pardo lançado por cima, que Jesus viu sempre em casa dos
pais enquanto lá viveu, esta é um verdadeiro leito como o outro de que alguém
disse, Adornei a minha cama com cobertas, com colchas bordadas de linho do Egipto,
perfumei o meu leito com mirra, aloés e cinamomo. Maria de Magdala conduziu Jesus
até junto do forno, onde o chão era de ladrilhos de tijolo, e ali, recusando o
auxílio dele, por suas mãos o despiu e lavou, às vezes tocando-lhe o corpo,
aqui e aqui, e aqui, com as pontas dos dedos, beijando-o de leve no peito e nas
ancas, de um lado e do outro. Estes roces delicados faziam estremecer Jesus, as
unhas da mulher arrepiavam-no quando lhe percorriam a pele, Não tenhas medo,
disse Maria de Magdala. Enxugou-o e levou-o pela mão até à cama, Deita-te, eu
volto já. Fez correr um pano numa corda, novos rumores de águas se ouviram,
depois uma pausa, o ar de repente tornou-se perfumado e Maria de Magdala
apareceu, nua. Nu estava também Jesus, como ela o deixara, o rapaz pensou que assim
é que devia estar certo, tapar o corpo que ela descobrira teria sido como uma
ofensa. Maria parou ao lado da cama, olhou-o com uma expressão que era, ao
mesmo tempo, ardente e suave, e disse, És belo, mas para seres perfeito, tens
de abrir os olhos. Hesitando, Jesus abriu-os, imediatamente os fechou,
deslumbrado, tornou a abri-los e nesse instante soube o que em verdade queriam
dizer aquelas palavras do rei Salomão, As curvas dos teus quadris são como joias,
o teu umbigo é uma taça arredondada, cheia de vinho perfumado, o teu ventre é
um monte de trigo cercado de lírios, os teus dois seios são como dois filhinhos
gêmeos de uma gazela, mas soube-o ainda melhor, e definitivamente, quando Maria
se deitou ao lado dele, e, tomando-lhe as mãos, puxando-as para si, as fez
passar, lentamente, por todo o seu corpo, os cabelos e o rosto, o pescoço, os
ombros, os seios, que docemente comprimiu, o ventre, o umbigo, o púbis, onde se
demorou, a enredar e a desenredar os dedos, o redondo das coxas macias, e,
enquanto isto fazia, ia dizendo em voz baixa, quase num sussurro, Aprende,
aprende o meu corpo. Jesus olhava as suas próprias mãos, que Maria segurava, e
desejava tê-las soltas para que pudessem ir buscar, livres, cada uma daquelas
partes, mas ela continuava, uma vez mais, outra ainda, e dizia, Aprende o meu corpo,
aprende o meu corpo.. Jesus respirava precipitadamente, mas houve um momento em
que pareceu sufocar, e isso foi quando as mãos dela, a esquerda colocada sobre
a testa, a direita sobre os tornozelos, principiaram uma lenta carícia, na
direcção uma da outra, ambas atraídas ao mesmo ponto central, onde, quando
chegadas, não se detiveram mais do que um instante, para regressarem com a
mesma lentidão ao ponto de partida, donde recomeçaram o movimento. Não
aprendeste nada, vai-te, dissera Pastor, e quiçá quisesse dizer que ele não
aprendera a defender a vida. Agora Maria de Magdala ensinara-lhe, Aprende o meu
corpo, e repetia, mas doutra maneira, mudando-lhe uma palavra, Aprende o teu
corpo, e ele aí o tinha, o seu corpo, tenso, duro, erecto, e sobre ele estava,
nua e magnífica, Maria de Magdala, que dizia, Calma, não te preocupes, não te
movas, deixa que eu trate de ti, então sentiu que uma parte do seu corpo, essa,
se sumira no corpo dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um
estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe agitando-se, e que de súbito
se escapava gritando, impossível, não pode ser, os peixes não gritam, ele, sim,
era ele quem gritava, ao mesmo tempo que Maria, gemendo, deixava descair o seu
corpo sobre o dele, indo beber-lhe da boca o grito, num sôfrego e ansioso beijo
que desencadeou no corpo de Jesus um segundo e interminável frêmito.
Durante todo o dia, ninguém veio bater à porta de
Maria de Magdala. Durante todo o dia, Maria de Magdala serviu e ensinou o rapaz
de Nazaré que, não a conhecendo nem de bem nem de mal, lhe viera pedir que o
aliviasse das dores e curasse das chagas que, mas isso não o sabia ela, tinham
nascido doutro encontro, no deserto, com Deus. Deus dissera a Jesus, A partir
de hoje pertences-me pelo sangue, o Demônio, se o era, desprezara-o, Não
aprendeste nada, vai-te, e Maria de Magdala, com os seios escorrendo suor, os
cabelos soltos que parecem deitar fumo, a boca túmida, olhos como de água
negra, Não te prenderás a mim pelo que te ensinei, mas fica comigo esta noite.
E Jesus, sobre ela, respondeu, O que me ensinas, não é prisão, é liberdade.
Dormiram juntos, mas não apenas nessa noite. Quando acordaram, já manhã alta, e
depois de uma vez mais os seus corpos se terem buscado e achado, Maria foi ver
como estava a ferida do pé de Jesus, Tem melhor ar, mas não devias ir ainda
para a tua terra, vai-te fazer mal o caminho, com esse pó, Não posso ficar, e
se tu mesma dizes que estou melhor, Ficar, podes, a questão é que tenhas a
vontade, quanto à porta do pátio, estará fechada por todo o tempo que
quisermos, A tua vida, A minha vida, nesta hora, és tu, Porquê, Respondo-te com
as palavras do rei Salomão, o meu amado meteu a mão pela abertura da porta e o
meu coração estremeceu, E como posso ser o teu amado se não me conheces, se sou
apenas alguém que te veio pedir ajuda e de quem tiveste pena, pena das minhas
dores e da minha ignorância, Por isso te amo, porque te ajudei e te ensinei,
mas tu a mim é que não poderás amar-me, pois não me ensinaste nem ajudaste, Não
tens nenhuma ferida, Encontrá-la-ás, se a procurares, Que ferida é, Essa porta
aberta por onde entravam outros e o meu amado não, Disseste que sou o teu
amado, Por isso a porta se fechou depois de entrares, Não sei nada que possa
ensinar-te, só o que de ti aprendi, Ensina-me também isso, para saber como é
aprendê-lo de ti, Não podemos viver juntos, Queres dizer que não podes viver
com uma prostituta, Sim, Por todo o tempo que estiveres comigo, não serei uma
prostituta, não sou prostituta desde que aqui entraste, está nas tuas mãos que
continue a não o ser, Pedes-me demasiado, Nada que não possas dar-me por um
dia, por dois dias, pelo tempo que o teu pé leve a sarar, para que depois se
abra outra vez a minha ferida, Levei dezoito anos para chegar aqui, Alguns dias
mais, não te farão diferença, ainda és novo, Tu também és nova, Mais velha do
que tu, mais nova do que a tua mãe, Conheces a minha mãe, Não, Então por que
disseste, Porque eu nunca poderia ter um filho que tivesse hoje a tua idade,
Que estúpido sou, Não és estúpido, apenas inocente, Já não sou inocente, Por
teres conhecido mulher, Não o era já quando me deitei contigo, Fala-me da tua
vida, mas agora não, agora só quero que a tua mão esquerda descanse sobre a
minha cabeça e a tua direita me abrace.
Jesus ficou uma semana em casa de Maria de Magdala,
o tempo necessário para que debaixo da crosta da ferida se formasse a nova
pele. A porta do pátio esteve sempre fechada. Alguns homens impacientes,
picados de cio ou de despeito, vieram bater, ignorando deliberadamente o sinal
que devia mantê-los afastados. Queriam saber quem era esse que se demorava
tanto, e algum mais gracioso atirou por cima dos muros um dichote, Ou será
porque não pode, ou será porque não sabe, abre-me a porta, Maria, que eu
explico lhe como se faz, e Maria de Magdala veio ao pátio para responder, Quem
quer que sejas, o que pudeste não voltarás a poder, o que fizeste não o farás
mais, Maldita mulher, Vai-te, que bem enganado vais, não encontrarás no mundo
mulher mais bendita do que eu sou. Fosse por este incidente ou porque assim
tinha de ser, ninguém mais veio bater-lhes à porta, em todo o caso o mais
provável foi que nenhum daqueles homens, moradores de Magdala ou passantes
informados, tivesse querido arriscar-se a ouvir a praga que os condenaria à
impotência, pois é geral convicção que as prostitutas, sobretudo as de alto
coturno, diplomadas ou de largo currículo, sabendo tudo sobre as artes de
alegrar o sexo de um homem, também são muito competentes para reduzi-lo a uma
soturnidade irremediável, cabisbaixo, sem ânimo nem apetites. Gozaram, pois,
Maria e Jesus de tranquilidade durante aqueles oito dias, durante os quais as
lições dadas e recebidas acabaram por passar a um discurso só, composto de
gestos, descobertas, surpresas, murmúrios, invenções, como um mosaico de
tésseras que não são nada uma por uma e tudo acabam por ser depois de juntas e
postas nos seus lugares. Mais de uma vez, Maria de Magdala quis voltar àquela
curiosidade de saber da vida do amado, mas Jesus mudava de conversa, respondia,
por exemplo, Entro no meu jardim, minha irmã, minha esposa, colho a minha mirra
e o meu bálsamo, como o favo com o meu mel e bebo o meu vinho com o meu leite,
e, tendo-o dito tão apaixonadamente, logo passava da recitação do versículo ao
acto poético, em verdade, em verdade te digo, querido Jesus, assim não se pode
conversar. Mas um dia Jesus resolveu falar do seu pai carpinteiro e da sua mãe
cardadora de lã, dos seus oito irmãos, e que segundo o costume, tinha começado
por aprender o ofício paterno, mas depois fora pastor durante quatro anos, que
estava ali de regresso a casa, andara uns dias com pescadores, mas não chegara
o tempo para aprender deles a arte. Quando Jesus isto contou, era um fim de
tarde, estavam no pátio a comer, e de vez em quando levantavam a cabeça para
ver o rápido voo das andorinhas que passavam soltando os seus gritos
estrídulos, pelo silêncio que se fez entre os dois pareceu que ficara tudo
dito, o homem confessara-se à mulher, porém, a mulher, como se nada fosse,
perguntou, Só isso, ele fez um sinal afirmativo, Sim, só isto. O silêncio
tornou-se completo, os círculos das andorinhas rodavam sobre outras paragens, e
Jesus disse, Meu pai foi crucificado há quatro anos em Séforis, chamava-se
José, Se não estou enganada, és o primogênito, Sim, sou o primogênito, Então
não compreendo por que não ficaste com a tua família, era o teu dever, Houve
umas diferenças entre nós, e não me perguntes mais nada, Nada que sobre a tua
família seja, mas esses anos de pastor, fala-me desse tempo, Não há nada a
dizer, é sempre o mesmo, são as cabras, são as ovelhas, são os cabritos, são os
borregos, e leite, muito leite, leite por todos os lados, Gostaste de ser
pastor, Gostei, Por que te vieste embora, Aborreci-me, tinha saudades da
família, Saudade, que é isso, Pena de estar longe, Estás a mentir, Por que
dizes que estou a mentir, Porque vi medo e remorso nos teus olhos. Jesus não
respondeu. Levantou-se, deu uma volta pelo pátio, depois parou diante de Maria,
Um dia, voltando nós a encontrar-nos, talvez te conte o resto, se então me
prometeres que não dirás a ninguém, Poupavas-nos tempo se fosse já, Direi, sim,
mas só se nos voltarmos a encontrar, Esperas que nessa altura eu já não seja
prostituta, por agora não podes ter confiança nesta, pensas que seria capaz de
vender os teus segredos por dinheiro ou dá-los a um qualquer que aí viesse, por
divertimento, em troca duma noite de amor mais gloriosa do que as que eu te dei
e tu me deste, Não é essa a razão por que prefiro calar-me, Pois eu digo-te que
Maria de Magdala estará ao pé de ti, prostituta ou não, quando precisares dela,
Quem sou eu para merecer isso, Tu não sabes quem és. Nessa noite, o antigo
pesadelo voltou, depois de ter sido, apenas, nos últimos tempos, como uma
angústia vaga que se infiltrava nos interstícios dos sonhos comuns, por fim
habitual e suportável. Mas esta noite, talvez por ser a última que Jesus dormia
naquela cama, talvez porque ele falou de Séforis e dos crucificados, o
pesadelo, como uma serpente gigantesca que estivesse a acordar da hibernação,
começou a desenrolar lentamente os anéis, a levantar a horrível cabeça, e Jesus
acordou aos gritos, coberto de suores frios, Que tens, que tens, perguntava-lhe
Maria, aflita, Um sonho, nada mais que um sonho, defendeu-se ele, Conta-mo, e
esta palavra simples foi dita com tanto amor, com tanta ternura, que Jesus não
pôde segurar as lágrimas e, depois das lágrimas, as palavras que quisera
esconder, Sonho que meu pai me vem matar, É teu pai que está morto, tu estás
aqui, vivo, Eu sou uma criança, estou em Belém da Judeia e meu pai vem
matar-me, Porquê em Belém, Foi lá que nasci, Talvez penses que teu pai não
queria que tivesses nascido, é o que o sonho está a dizer, Tu não sabes nada,
Não, não sei, Houve crianças em Belém que morreram por causa de meu pai,
Matou-as ele, Matou-as porque não as salvou, não foi a mão dele que usou o
punhal, E no teu sonho és uma dessas crianças, Tenho morrido mil mortes, Pobre
de ti, pobre Jesus, Foi por causa disto que saí de casa, Compreendo, enfim,
Julgas que compreendes, Que mais falta, O que ainda não te posso dizer, O que
me dirás se nos voltarmos a encontrar, Sim. Jesus adormeceu com a cabeça no
ombro de Maria, respirando sobre o seu seio. Ela ficou acordada em todo o resto
da noite. Doía-lhe o coração porque a manhã não tardaria a separá-los, mas a
sua alma estava serena. O homem que repousava a seu lado era, sabia-o, aquele
por quem tinha esperado toda a vida, o corpo que lhe pertencia e a quem o seu
corpo pertencia, virgem o dele, usado e sujado o dela, mas há que ver que o
mundo tinha começado, o que se chama começar, faz apenas oito dias, e só esta
noite é que se achou confirmado, oito dias é nada se os compararmos a um futuro
por assim dizer intacto, de mais sendo tão novo este Jesus que me apareceu, e
eu, Maria de Magdala, eu aqui estou, deitada com um homem, como tantas vezes,
mas agora perdida de amor e sem idade.
A manhã gastaram-na a preparar a viagem, que parecia
que ia o rapaz para o cabo do mundo, quando não chega a duzentos estádios o que
vai ter de andar, nada que um homem de normal constituição não possa fazer
entre o sol do meio-dia e o crepúsculo da tarde, mesmo levando em conta que de
Magdala a Nazaré nem tudo é caminho chão, por ali não faltam encostas
escarpadas e pedregosos descampados. E toma tu cuidado, que andam nesses sítios
bandos da guerra contra os romanos, dizia Maria, Ainda, perguntou Jesus, Tens
vivido longe, isto aqui é a Galileia, E eu sou galileu, não me farão mal,
Galileu não és, se foste nascer a Belém de Judeia, Meus pais conceberam-me em
Nazaré, e eu, verdadeiramente, nem em Belém nasci, nasci foi numa cova, no
interior da terra, e agora até me chega a parecer que voltei a nascer, aqui, em
Magdala, De uma prostituta, Para mim, não és prostituta, disse Jesus, com
violência, É o que tenho sido. Ficou um largo silêncio depois destas palavras,
Maria à espera de que Jesus falasse, Jesus dando voltas a uma inquietação que
não conseguia dominar. Por fim, perguntou, Aquilo que penduraste na porta para
que nenhum homem entrasse, vais retirá-lo. Maria de Magdala olhou-o com uma
expressão séria, logo sorriu, com malícia, Não poderia ter dentro de casa dois
homens ao mesmo tempo, Isso que quer dizer, Que tu te vais, mas que continuas
aqui. Fez uma pausa e rematou, O sinal que está dependurado na porta,
continuará lá, Pensarão que estás com um homem, Se o pensarem, pensarão bem,
porque estarei contigo, Ninguém mais aqui entrará, Tu disseste-o, esta mulher a
quem chamam Maria de Magdala deixou de ser prostituta quando aqui entraste, De
que vais viver, Só os lírios do campo crescem sem trabalhar nem fiar. Jesus
tomou-lhe as mãos e disse, Nazaré não é longe de Magdala, um destes dias virei
visitar-te, Se me procurares, aqui me encontrarás, O meu desejo será
encontrar-te sempre, Encontrar-me-ias mesmo depois de morreres, Queres dizer
que vou morrer antes de ti, Sou mais velha, de certeza morrerei primeiro, mas,
se acontecesse morreres tu antes de mim, eu continuaria a viver, só para que me
pudesses encontrar, E se fores tu a primeira a morrer, Bendito seja quem te
trouxe a este mundo quando eu ainda estava nele. Depois disto, Maria de Magdala
serviu de comer a Jesus, e ele não precisou dizer-lhe, Senta-te comigo, porque
desde o primeiro dia, na casa fechada, este homem e esta mulher tinham dividido
e multiplicado entre si os sentimentos e os gestos, os espaços e as sensações,
sem excessivos respeitos de regra, norma ou lei. Com certeza, não saberiam como
responder-nos se agora lhes perguntássemos de que modo se comportariam se não
se achassem protegidos e à solta nestas quatro paredes, entre as quais puderam,
por uns poucos dias, talhar um mundo à simples imagem e semelhança de homem e
mulher, bem mais dela do que dele, diga-se de passagem, mas, tendo sido ambos
tão peremptórios quanto aos seus futuros encontros, basta que tenhamos a
paciência de esperar o lugar e a hora em que, juntos, se enfrentarão com o mundo
de fora da porta, este dos que já se perguntam com inquietação, Que se passa
ali dentro, e não é nas conhecidas folestrias de quarto e cama que estão a
pensar. Depois de terem comido, Maria calçou as sandálias a Jesus e disse-lhe,
Tens de ir, se queres chegar a Nazaré antes da noite, Adeus, disse Jesus, e,
tomando o alforje e o cajado, saiu para o pátio. O céu estava nublado por
igual, como um forro de lã suja, ao Senhor não devia ser fácil perceber, do
alto, o que andavam a fazer as suas ovelhas. Jesus e Maria de Magdala
despediram-se com um abraço que parecia não ter fim, também se beijaram, mas
com menos demora, não admira, o costume do tempo não era tanto esse.