quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo XVII)



Como posso ir-me, se tenho os pés neste estado, pensou Jesus vendo afastar-se Pastor para o outro lado do rebanho. Deus, que tão limpamente fizera desaparecer a ovelha, não o beneficiara, de dentro da nuvem, com a graça do seu divino cuspo, para que o mortificado Jesus pudesse, com ele, untar e sarar as feridas por onde o sangue continuava a manar, brilhando sobre as pedras. Pastor não o ajudará, lançou as palavras cominatórias e retirou-se, como quem espera que a sentença seja cumprida e não tenciona estar presente nos preparativos da partida, e muito menos despedir-se. A custo, arrastando-se sobre os joelhos e as mãos, Jesus alcançou o bivaque, onde, a cada paragem, se arrumavam os utensílios do governo do rebanho, os tarros para o leite, as tábuas da espremedura, e também as peles de ovelha e de cabra que iam curtindo, e com que, por troca, adquiriam os bens de que precisavam, uma túnica, um manto, alimentos mais variados. Pensou Jesus que não poderiam culpá-lo se se pagasse do seu salário por suas próprias mãos, talhando das peles de ovelha umas formas de sandálias ou coturnos para envolver os pés, servindo depois para os atilhos umas tiras de pele de cabra, mais manejáveis por terem menos pêlo. Ao ajeitá-las, duvidou se a lã deveria ficar do lado de dentro ou do lado de fora, acabando por usá-la como forro, por dentro, visto o mísero estado em que tinha os pés. O mal vai ser colarem-se-lhe as feridas aos pêlos, mas, como já decidiu que o seu caminho será pela margem do Jordão, bastará que meta os pés calçados na água e aos poucos se lhe dissolverá a goma seca do sangue. O próprio peso das botifarras, que é o que mais parecem, metidas na água e ensopadas, ajudará suavemente a despegarem-se os pés do lanoso chumaço, sem levar consigo as protectoras e benfazejas crostas que aos poucos se vêm formando. Um pouco de sangue levado na corrente era sinal, pela boa cor dele, de que as feridas ainda se não haviam infectado, por muito que custe a acreditar. Jesus, na sua vagarosa caminhada para o norte, fazia pois longos descansos, deixava-se ficar sentado na margem do rio, com os pés suspensos dentro de água, a gozar da frescura e da medicina. Doía-lhe ter sido expulso daquela maneira, depois de haver-se encontrado com Deus, acontecimento inaudito no sentido pleno da palavra, pois, que ele o soubesse, não havia hoje um único homem em todo Israel que pudesse gabar-se de ter visto Deus e sobrevivido. É certo que, aquilo que se chama ver, ele não vira, mas se uma nuvem se nos apresenta no deserto, com a forma de uma coluna de fumo, e diz, Eu sou o Senhor, mantendo depois uma conversação, não apenas lógica e sensata, mas com uma expressão de autoridade sem réplica que só divina podia ser, qualquer dúvida, pequena que fosse, seria ofensa. Que o Senhor era o Senhor demonstrara-o a resposta que dera quando lhe perguntara acerca de Pastor, aquelas palavras despreocupadas, em que era patente haver um pouco de desprezo mas também de intimidade, o que fora reforçado pela recusa de responder se anjo era, ou demônio. Mas o mais interessante era que as palavras de Pastor, duras e aparentemente alheadas da questão central, não faziam mais que confirmar a verdade sobrenatural do encontro, Não te perguntei se encontraste Deus, como se estivesse a dizer, Até aí já eu sei, como se o anúncio o não tivesse surpreendido, como se o soubesse de antemão. Mas o que parecia ser certo era não lhe ter perdoado a morte da ovelha, outro sentido não podiam ter aquelas palavras finais, Não aprendeste nada, vai, e depois retirou-se ostensivamente para o outro extremo do rebanho, mantendo-se ali, de costas voltadas, até ele ter-se ido embora. Ora, numa destas ocasiões, quando Jesus deixava espraiar-se a imaginação em previsões do que viria o Senhor a querer dele quando voltassem a encontrar-se, as palavras de Pastor soaram-lhe repentinamente aos ouvidos, tão claras e distintas como se estivesse mesmo ali ao lado, Não aprendeste nada, e nesse instante o sentimento de ausência, de falta, de solidão, foi tão forte que o seu coração gemeu, ali estava ele, sozinho, sentado na margem do Jordão, olhando os pés na transparência do rio e vendo manar de um dos calcanhares um leve fio de sangue, e lentamente mover-se entre duas águas, de súbito não lhe pertenciam o sangue nem os pés, era seu pai que ali tinha vindo, coxeando com os seus calcanhares furados, a gozar do fresco do Jordão, e dizia-lhe igual que Pastor, Tens de voltar ao princípio, não aprendeste nada. Jesus, como se erguesse do chão uma pesada e longa cadeia de ferro, recordava a sua vida, elo por elo, o anúncio misterioso da sua concepção, a terra iluminada, o nascimento na cova, as crianças mortas de Belém, a crucifixão do pai, a herança dos pesadelos, a fuga de casa, o debate no Templo, a revelação de Zelomi, o aparecimento do pastor, a vida com o rebanho, o cordeiro salvo, o deserto, a ovelha morta, Deus. E como esta última palavra era demasiada para que o seu espírito pudesse ocupar-se dela, fixou-se obsessivamente num pensamento, por que é que um cordeiro que tinha sido salvo da morte veio a morrer ovelha, questão tão estúpida quanto se vê, mas que se compreenderá melhor se for assim traduzida, Nenhuma salvação é suficiente, qualquer condenação é definitiva. O último elo da corrente é este agora, estar na margem do rio Jordão, ouvindo o dolente canto de uma mulher que dali não se pode ver, escondida entre a junça, talvez lavando roupa, talvez banhando-se, e Jesus quer perceber como isto é tudo o mesmo, o cordeiro vivo que se transformou em ovelha morta, os seus pés sangrando do sangue de seu pai, e a mulher que canta, nua, deitada de costas sobre a água, os peitos duros levantados fora dela, o púbis negro soerguendo-se na ondulação da aragem, não é verdade que Jesus alguma vez tivesse visto, até hoje, uma mulher nua, mas se um homem, apenas partindo duma simples coluna de fumo, pode pôr-se a futurar o que será estar com Deus em o dia chegando a um e a outro, não se compreenderia que as minúcias de uma mulher nua, supondo que a palavra é própria, não pudessem ser imaginadas e criadas duma música que se lhe ouve cantar, mesmo sem sabermos se as palavras nos são dirigidas. José já não está aqui, regressou à vala comum de Séforis, de Pastor não assoma nem a ponta do cajado, e Deus, se está em toda a parte, como se diz, não escolheu uma coluna de fumo para mostrar-se, talvez esteja naquela água que corre, a mesma onde se banha a mulher. O corpo de Jesus deu um sinal, inchou no que tinha entre as pernas, como acontece a todos os homens e a todos os animais, o sangue correu veloz a um mesmo sítio, a ponto de se lhe secarem subitamente as feridas, Senhor, que forte é este corpo, mas Jesus não foi dali à procura da mulher, e as suas mãos repeliram as mãos da tentação violenta da carne, Não és ninguém se não te quiseres a ti mesmo, não chegas a Deus se não chegares primeiro ao teu corpo. Quem disse estas palavras, não se sabe, porém Deus não as diria, não são contas do seu rosário, de Pastor, sim, poderiam ser, se não estivesse tão longe daqui, talvez, no fim das contas, fossem as palavras da canção que a mulher cantava, nesse momento pensou como podia ser agradável ir lá pedir-lhe que lhas explicasse, mas a voz já se não ouvia, porventura a tinha levado consigo a corrente, ou a mulher, simplesmente, saíra da água para enxugar-se e vestir-se, assim calando o seu corpo. Jesus enfiou as pantufas ensopadas e pôs-se de pé, fazendo esparrinhar a água para os lados, como uma esponja. Muito irá rir a mulher, se para estes lados está vindo, ao encontrar-se com as grotescas patorras, mas pode bem ser que esse riso de troça não dure muito, quando os olhos dela subirem pelo corpo de Jesus acima, adivinhando as formas que a túnica esconde, e se detiverem a olhar os olhos dele, doridos por causas antigas e agora, por uma razão nova, ansiosos. Com poucas ou nenhumas palavras, o corpo dela tornará a despir-se, e quando tiver acontecido o que destes casos sempre se deverá esperar, ela retirar-lhe-á as sandálias com grande cuidado, curará as feridas pondo em cada pé um beijo e envolvendo-os depois, como um ovo ou um casulo, nos seus próprios cabelos úmidos. Pelo caminho não vem ninguém, Jesus olha em redor, suspira, busca um recanto escondido e para lá se encaminha, mas de súbito pára, lembrou-se a tempo de que o Senhor tirou a vida a Onan por derramar o seu sêmen no chão. Ora, tivesse Jesus dado outra mais analítica volta ao episódio clássico, o que, aliás, concordaria com os seus processos mentais, e talvez o não detivesse a impiedosa severidade do Senhor, e isto por duas razões, sendo a primeira razão não haver ali cunhada com quem devesse, pela lei, dar posteridade a um irmão morto, e sendo a segunda razão, acaso mais forte que a outra, ter o Senhor, segundo lho fizera saber no deserto, algumas firmes ainda que não reveladas ideias quanto ao seu futuro, e não ser portanto crível nem lógico que se esquecesse das promessas feitas, deitando tudo a perder só porque uma mão sem governo tinha ousado chegar-se aonde não devia, sabendo o Senhor o que são as necessidades do corpo, não é só o trivial do comer e do beber, trivial, havendo, dizemos, outros jejuns existem que não são menos custosos de aturar. Estas e outras semelhantes reflexões, que deveriam ajudar Jesus a levar por diante o humaníssimo movimento de procurar, para certo fim, um refúgio longe das vistas, acabaram por ter efeito contraproducente, distraiu-se o pensamento do que tinha em mente, achou-se envolvido nos meandros do seu próprio pensar, o resultado foi ir-se-lhe a vontade do que queria, de desejo nem falemos, que, sendo pecaminoso, um simples nada o faz hesitar e esmorecer. Resignado com a sua própria virtude, Jesus pôs o alforje ao ombro, empunhou o cajado e meteu pés ao caminho.
No primeiro dia desta viagem ao longo da margem do Jordão, o hábito de quatro anos de isolamento levara Jesus a apartar-se dos raros lugares povoados que por ali havia. Porém, à medida que se aproximava do lago de Genesaré, tornou-se cada vez mais difícil, para ele, rodear as aldeias, tanto mais que as cercavam campos cultivados, nem sempre cômodos de atravessar, tanto pelos desvios que era obrigado a fazer como pelas desconfianças que o seu ar de vagabundo despertava nos lavradores. Decidiu-se pois Jesus a ir ao mundo, e a verdade é que não desgostou do que viu, só o importunava muito o ruído, de que quase se esquecera. Na primeira destas aldeias em que entrou, um bando estúrdio de rapazes fez-lhe uma assuada tremenda às botas, boa coisa foi, afinal, porque Jesus tinha dinheiro suficiente para comprar umas sandálias novas, recordemos que não toca no dinheiro que traz, desde aquele que lhe foi dado pelo fariseu, viver quatro anos com tão pouco e não ter precisado de o gastar, foi máxima riqueza, não há que rogar mais ao Senhor. Agora, compradas as sandálias, ficou-lhe o tesouro reduzido a duas moedas de pouco valor, mas a penúria não o aflige, já pouco lhe falta para chegar ao seu destino, Nazaré, a casa, aonde é certo que vai regressar porque um dia, ao deixá-la, e parecia que para sempre a deixava, dissera, Duma maneira ou doutra, sempre voltarei. Vem sem pressa, bordejando as mil curvas do Jordão, também é verdade que o estado em que tinha os pés não lhe permitiria grandes façanhas andarilhas, mas a razão principal do vagar residia na sua própria certeza de chegar, como se pensasse, É como se já lá estivesse, mas um outro sentimento, esse menos consciente, lhe retardava ainda os passos, qualquer coisa que se poderia exprimir por palavras como estas, Quanto mais depressa chegar, mais depressa torno a partir. Subia ao longo da margem do lago, em direcção ao norte, já está à altura de Nazaré, se quisesse chegar rapidamente a casa não teria mais que rodar os calcanhares no sentido do sol-poente, mas as águas do lago retêm-no, azuis, largas, tranquilas. Gosta de sentar-se na margem a olhar a manobra dos pescadores, alguma vez, em pequeno, veio a estas paragens, acompanhando os pais, mas nunca se detivera a olhar com atenção a faina destes homens que deixam atrás de si todos os cheiros do peixe, como se eles próprios fossem habitantes do mar. Enquanto por aqui andou, Jesus ganhou o sustento ajudando no que sabia, que era nada, e no que podia, que era pouco, puxar um barco para terra ou empurrá-lo para a água, dar uma mão a uma rede que transbordava, os pescadores viam-lhe a cara de necessidade e davam-lhe dois ou três peixes espinhosos, chamados tilápias, como salário. Ao princípio, tímido, Jesus ia assá-los e comê-los à parte, mas, tendo-se demorado por ali três dias, logo ao segundo o quiseram chamar os pescadores para que com eles arranchasse. E no último dia já Jesus foi ao mar, na barca de dois irmãos que se chamavam Simão e André, mais velhos do que ele, nenhum dos dois tinha menos de trinta anos. No meio das águas, Jesus, sem experiência do ofício, ele próprio rindo da sua falta de habilidade, atreveu-se, incitado pelos seus novos amigos, a lançar a rede, naquele largo gesto que, olhado de longe, se parece com uma bênção ou um desafio, sem outro resultado que quase ter caído à água de uma das vezes em que o tentou. Simão e André riram muito, já sabiam que Jesus só percebia de cabras e ovelhas, e Simão disse, Melhor vida seria a nossa se este outro gado se deixasse levar e trazer, e Jesus respondeu, Pelo menos não se perdem, não se tresmalham, estão aqui todos na concha do mar, todos os dias a fugir da rede, todos os dias a cair nela. A pesca não tinha sido frutuosa, o fundo do barco estava pouco menos que vazio, e André disse, Mano, vamos para casa, que este dia já deu o que tinha a dar. Simão assentiu, Tens razão, mano, vamos lá. Enfiou os remos nos toletes e ia dar a primeira das remadas que os levariam à margem, quando Jesus, não creiamos que por inspiração ou pressentimento de marca maior, foi um modo, apenas, ainda que inexplicável, de demonstrar a sua gratidão, propôs que se fizessem três últimas tentativas, Quem sabe se o rebanho dos peixes, conduzido pelo seu pastor, terá vindo cá para o nosso lado. Simão riu, Essa é outra vantagem que têm as ovelhas, poderem ser vistas, e para André, Lança lá a rede, se não se ganha, também não se perde, e André lançou a rede e a rede veio cheia. Arregalaram-se de espanto os olhos dos dois pescadores, mas o assombro transformou-se em portento e maravilha quando a rede, lançada mais uma vez e outra ainda, voltou cheia duas vezes. De um mar que tão deserto de pescado antes parecera, como a água duma infusa posta à boca da fonte límpida, saíam, com nunca vista profusão, torrentes luzidias de guelras, dorsos e barbatanas em que a vista se confundia. Perguntaram Simão e André como soubera ele que o peixe ali chegara de um momento para o outro, que olhar de lince se apercebera do movimento profundo das águas, e Jesus respondeu que não, que não sabia, fora apenas uma ideia, experimentar a sorte uma última vez antes de regressarem. Não tinham os dois irmãos motivos para duvidar, o acaso faz destes e outros milagres, mas Jesus, dentro de si, estremeceu, e no silêncio da sua alma perguntou, Quem fez isto. Disse Simão, Ajuda aqui a escolher, ora, a oportunidade é boa para explicar que não foi neste mar de Genesaré que nasceu a ecumênica sentença, Tudo o que vem à rede é peixe, aqui os critérios são diferentes, peixe será o que a rede trouxe, mas a lei é claríssima neste ponto, como em todos, Eis aquilo que podereis comer dos diversos animais aquáticos, podeis comer tudo o que, nas águas, mares ou rios, tem barbatanas e escamas, mas tudo o que não tem barbatanas e escamas, nos mares ou nos rios, quer o que pulula na água, quer os animais que nela vivem, são abomináveis para vós, e abomináveis continuarão a ser, não comeis a sua carne e considerai os seus cadáveres como abomináveis, tudo o que, nas águas, não tem barbatanas e escamas, será para vós abominável. Os peixes réprobos, de pele lisa, aqueles que não podem ir à mesa do povo do Senhor, foram assim restituídos ao mar, muitos deles, mesmo, já tinham ganho o costume e não se preocupavam quando os levava a rede, sabiam que pronto tornariam à água, sem risco de morrerem sufocados. Em sua cabeça de peixes criam beneficiar duma benevolência especial do Criador, senão mesmo de um amor particular, o que os levou, ao cabo do tempo, a considerarem-se superiores aos outros peixes, os que ficavam nas barcas, que muitas e graves faltas esses deviam ter cometido a coberto das escuras águas para que Deus, assim, sem piedade, os deixasse morrer.
Quando enfim chegaram à margem, com mil artes e cuidados para não irem a pique, pois a superfície do lago lambia a borda do barco como se o quisesse engolir, a surpresa das gentes não teve explicação. Quiseram saber como aquilo acontecera, sabendo-se que os outros pescadores tinham regressado com o fundo seco, mas, de tácito e comum acordo, nenhum dos três afortunados falou das circunstâncias da pescaria prodigiosa, Simão e André para não verem publicamente diminuídos os seus méritos de práticos, Jesus por não querer que os outros pescadores o metessem, como um chamariz, nas respectivas companhas, o que, dizemos nós, seria de inteira justiça, para se acabar, de vez, com as diferenças entre filhos e enteados que tanto mal têm trazido ao mundo. Por este pensar é que Jesus anunciou, nessa noite, que na manhã seguinte partiria para Nazaré, onde o esperava a família, depois de quatro anos de ausências e de andanças que podiam dizer-se do demônio, tão afadigadas foram. Lamentaram muito Simão e André uma decisão que os privava do melhor olheiro de gado aquático de que havia memória nos anais de Genesaré, lamentaram-na também dois outros pescadores, Tiago e João, filhos de Zebedeu, moços um pouco simples, a quem, por brincadeira, costumavam perguntar, Quem é o pai dos filhos de Zebedeu, os pobres ficavam interditos, perdidos de si mesmos, e nem o facto de saberem a resposta, como está claro que sabiam, sendo eles os filhos, nem isto os poupava a um instante de perplexidade e de angústia. A pena que sentiam da saída de Jesus não era só por assim se lhes escapar a oportunidade duma famosa pescaria, mas porque, sendo novos, João era mesmo mais novo que Jesus, teriam gostado de formar com ele uma tripulação de juvenis para disputar com a geração mais velha. A sua simplicidade de espírito não era necedade nem retraso mental, iam era pela vida como se sempre estivessem a pensar noutra coisa, por isso começavam por hesitar quando se lhes perguntava como se chamava o pai dos filhos de Zebedeu e não percebiam por que se ria a gente com tanto gosto quando, triunfalmente, respondiam, Zebedeu. João ainda foi fazer uma tentativa, chegou-se a Jesus e disse-lhe, Fica connosco, a nossa barca é maior que a de Simão, apanharemos mais peixe, e Jesus, sábio e piedoso, respondeu-lhe, A medida do Senhor não é a medida do homem, mas a da sua justiça. Embatucou João, foi-se embora de cabeça baixa, e sem diligências doutros interessados se passou o serão. No dia seguinte, Jesus despediu-se dos primeiros amigos que criara nos seus dezoito anos de vida, e, de farnel aviado, virando costas a este mar de Genesaré, onde, ou muito se enganava, ou lhe fizera Deus um sinal, orientou enfim os passos para as montanhas, caminho de Nazaré. Quis, porém, o destino que, passando ele pela cidade de Magdala, se lhe rebentasse ali, do pé, uma ferida que andava renitente em sarar, e em tal jeito que parecia o sangue não querer estancar-se. Também quis o destino que o perigoso acidente tivesse ocorrido à saída de Magdala, mesmo em frente, por assim dizer à porta, de uma casa que ali havia, afastada das outras, como se não quisesse aproximar-se delas, ou elas a repelissem. Vendo que o sangue não dava mostras de querer parar, Jesus chamou, Ó de dentro, disse, e, acto contínuo, uma mulher apareceu à porta, como se justamente estivesse à espera de que a chamassem, embora, por um leve ar de surpresa que começou por aparecer-lhe na cara, pudéssemos ser levados a pensar que estaria antes habituada a que lhe entrassem pela casa dentro, sem bater, o que, se bem considerarmos as coisas, teria menos razão de ser que em outro qualquer caso, pois esta mulher é uma prostituta e o respeito que deve à sua profissão manda-lhe que feche a porta de casa quando recebe um cliente. Jesus, que estava sentado no chão, comprimindo a desatada ferida, olhou de relance a mulher que se lhe acercava, Ajuda-me, disse, e, tendo segurado a mão que ela lhe estendia, conseguiu pôr-se de pé e dar uns passos, coxeando. Não estás em estado de andar, disse ela, entra, que eu trato-te dessa ferida. Jesus não disse nem sim nem não, o odor da mulher entontecia-o, a ponto de ter-lhe desaparecido, de um momento para o outro, a dor que lhe dera ao abrir-se a chaga, e agora, com um braço por cima dos ombros dela e sentindo a sua própria cintura cingida por outro que evidentemente não podia ser seu, apercebeu-se do tumulto que lhe trespassava o corpo em todas as direcções, se não fosse mais exacto dizer sentidos, porque neles, ou em um que tem esse nome, mas que não é o ver nem o ouvir nem o cheirar nem o gostar nem o tocar, podendo no entanto levar de cada um deles uma parte, aí é que ia bater tudo, salvo seja. A mulher ajudou-o a entrar para o pátio, trancou a porta e fê-lo sentar-se, Espera, disse. Foi dentro e voltou com uma bacia de barro e um pano branco. Encheu de água a bacia, molhou o pano e, ajoelhando-se aos pés de Jesus, sustendo na palma da mão esquerda o pé ferido, lavou-o cuidadosamente, limpando-o da terra, amaciando a crosta estalada através da qual surdia, com o sangue, uma matéria amarela, purulenta, de mau aspecto. Disse a mulher, Não vai ser com água que te curarás, e Jesus disse, Só te peço que me ates a ferida de modo a poder chegar a Nazaré, depois lá me trato, ia a dizer, Minha mãe trata-me, mas emendou porque não queria parecer aos olhos desta mulher como um rapazinho que, por dar uma topada numa pedra, vai a chorar, Mãezinha, mãezinha, à espera do afago, um sopro suave no dedo ofendido, um toque dulcificante dos dedos, Não é nada, meu menino, já passou. Daqui a Nazaré ainda tens muito que andar, mas se é assim que queres, espera só que te ponha um unguento, disse a mulher, e entrou em casa, onde iria demorar-se um pouco mais que antes. Jesus olhou em redor o pátio, surpreendido porque em sua vida nunca vira nada tão limpo e arrumado. Está desconfiado de que a mulher é uma prostituta, não por particular habilidade sua em adivinhar profissões à primeira vista, ainda não há muitos dias ele próprio poderia ter sido identificado pelo cheiro a gado cabrum que  tresandava, e agora todos dirão, É pescador, foi-se aquele cheiro, outro veio, que não tresanda menos. A mulher cheira a perfume, mas Jesus, apesar da sua inocência, que não é ignorância, pois não lhe faltaram ocasiões de ver como procediam bodes e carneiros, tem bom senso que chegue para considerar que cheirar bem do corpo não é razão suficiente para afirmar que uma mulher é prostituta. Na verdade, uma prostituta deveria era cheirar ao que frequenta, a homem, como o cabreiro cheira a cabra e o pescador a peixe, mas talvez, sabe-se lá, essas mulheres se perfumem tanto justamente por quererem esconder, disfarçar ou, mesmo, esquecer o cheiro do homem. A mulher reapareceu com um pequeno boião e vinha a sorrir como se alguém, dentro de casa, lhe tivesse contado uma história divertida. Jesus via-a aproximar-se, mas, se os olhos o não estavam enganando, ela vinha muito devagar, como acontece às vezes nos sonhos, a túnica movia-se, ondulava, modelando ao andar o balanço rítmico das coxas, e os cabelos pretos da mulher, soltos, dançavam-lhe sobre os ombros como o vento faz às espigas da seara. Não havia dúvida, a túnica, mesmo para um leigo, era de prostituta, o corpo de bailarina, o riso de mulher leviana. Jesus, em aflição, pediu à sua memória que o socorresse com algumas apropriadas máximas do seu célebre homónimo e autor, Jesus, filho de Sira, e a memória serviu-o bem, murmurando-lhe discretamente, do lado de dentro do ouvido, Foge do encontro duma mulher leviana, para não caíres nas suas ciladas, e logo, Não andes muito com uma bailarina, não suceda que pereças por causa dos seus encantos, e finalmente, Nunca te entregues às prostitutas, para que não te percas a ti e aos teus haveres, perder-se este Jesus de agora bem poderá acontecer, sendo homem e tão novo, mas, quanto aos haveres, esses já sabemos que não correm perigo porque os não tem, pelo que ele próprio se achará salvo, em chegando a hora, quando a mulher, antes de fechar o contrato, lhe perguntar, Quanto tens. Preparado para tudo está, portanto, Jesus, e por isso não o apanha de surpresa a pergunta que ela lhe fez enquanto, agora posto o pé dele sobre o joelho dela, lhe cobria de unguento a ferida, Como te chamas, Jesus, foi o que respondeu, e não disse de Nazaré, porque já antes o tinha declarado, como ela, por ser aqui que vivia, não disse de Magdala, quando, ao perguntar-- lhe ele por sua vez o nome, respondeu que Maria. Com tantos movimentos e observações, acabou Maria de Magdala de fazer o penso ao dorido pé de Jesus, rematando-o com uma sólida e pertinente atadura, Aí tens, disse ela, Como te devo agradecer, perguntou Jesus, e pela primeira vez os seus olhos tocaram os olhos dela, negros, brilhantes como carvões de pedra, mas onde perpassava, como uma água que sobre água corresse, uma espécie de voluptuosa velatura que atingiu em cheio o corpo secreto de Jesus. A mulher não respondeu logo, olhava-o, por sua vez, como se o avaliasse, a pessoa que era, que de dinheiros bem se via que não estava provido o pobre moço, e por fim disse, Guarda-me na tua lembrança, nada mais, e Jesus, Não esquecerei a tua bondade, e depois, enchendo-se de ânimo, Nem te esquecerei a ti, Porquê, sorriu a mulher, Porque és bela, Não me conheceste no tempo da minha beleza, Conheço-te na beleza desta hora. O sorriso dela esmoreceu, extinguiu-se, Sabes quem sou, o que faço, de que vivo, Sei, Não tiveste mais que olhar para mim e ficaste a saber tudo, Não sei nada, Que sou prostituta, Isso sei, Que me deito com homens por dinheiro, Sim, Então é o que eu digo, sabes tudo de mim, Sei só isso. A mulher sentou-se junto dele, passou-lhe suavemente a mão pela cabeça, tocou-lhe na boca com a ponta dos dedos, Se queres agradecer-me, fica este dia comigo, Não posso, Porquê, Não tenho com que pagar-te, Grande novidade, Não te rias de mim, Talvez não creias, mas olha que mais facilmente me riria de um homem com a bolsa cheia, Não é só a questão do dinheiro, Que é, então. Jesus calou-se e voltou a cara para o lado. Ela não o ajudou, podia ter-lhe perguntado, És virgem, mas deixou-se ficar calada, à espera. Fez-se silêncio, tão denso e profundo que parecia que apenas os dois corações soavam, mais forte e rápido o dele, o dela inquieto com a sua própria agitação. Jesus disse, Os teus cabelos são como um rebanho de cabras descendo das vertentes pelas montanhas de Galaad. A mulher sorriu e ficou calada. Depois Jesus disse, Os teus olhos são como as fontes de Hesebon, junto à porta de Bat-Rabim. A mulher sorriu de novo, mas não falou. Então Jesus voltou lentamente o rosto para ela e disse, Não conheço mulher. Maria segurou-lhe as mãos, Assim temos de começar todos, homens que não conheciam mulher, mulheres que não conheciam homem, um dia o que sabia ensinou, o que não sabia aprendeu, Queres tu ensinar-me, Para que tenhas de agradecer-me outra vez, Dessa maneira, nunca acabarei de agradecer-te, E eu nunca acabarei de ensinar-te. Maria levantou-se, foi trancar a porta do pátio, mas primeiro dependurou qualquer coisa do lado de fora, sinal que seria de entendimento, para os clientes que viessem por ela, de que se havia cerrado a sua fresta porque chegara a hora de cantar, Levanta-te, vento do norte, vem tu, vento do meio-dia, sopra no meu jardim para que se espalhem os seus aromas, entre o meu amado no seu jardim e coma dos seus deliciosos frutos. Depois, juntos, Jesus amparado, como fizera antes, ao ombro de Maria, esta prostituta de Magdala que o curou e o vai receber na sua cama, entraram em casa, na penumbra propícia de um quarto fresco e limpo. A cama não é aquela rústica esteira estendida no chão, com um lençol pardo lançado por cima, que Jesus viu sempre em casa dos pais enquanto lá viveu, esta é um verdadeiro leito como o outro de que alguém disse, Adornei a minha cama com cobertas, com colchas bordadas de linho do Egipto, perfumei o meu leito com mirra, aloés e cinamomo. Maria de Magdala conduziu Jesus até junto do forno, onde o chão era de ladrilhos de tijolo, e ali, recusando o auxílio dele, por suas mãos o despiu e lavou, às vezes tocando-lhe o corpo, aqui e aqui, e aqui, com as pontas dos dedos, beijando-o de leve no peito e nas ancas, de um lado e do outro. Estes roces delicados faziam estremecer Jesus, as unhas da mulher arrepiavam-no quando lhe percorriam a pele, Não tenhas medo, disse Maria de Magdala. Enxugou-o e levou-o pela mão até à cama, Deita-te, eu volto já. Fez correr um pano numa corda, novos rumores de águas se ouviram, depois uma pausa, o ar de repente tornou-se perfumado e Maria de Magdala apareceu, nua. Nu estava também Jesus, como ela o deixara, o rapaz pensou que assim é que devia estar certo, tapar o corpo que ela descobrira teria sido como uma ofensa. Maria parou ao lado da cama, olhou-o com uma expressão que era, ao mesmo tempo, ardente e suave, e disse, És belo, mas para seres perfeito, tens de abrir os olhos. Hesitando, Jesus abriu-os, imediatamente os fechou, deslumbrado, tornou a abri-los e nesse instante soube o que em verdade queriam dizer aquelas palavras do rei Salomão, As curvas dos teus quadris são como joias, o teu umbigo é uma taça arredondada, cheia de vinho perfumado, o teu ventre é um monte de trigo cercado de lírios, os teus dois seios são como dois filhinhos gêmeos de uma gazela, mas soube-o ainda melhor, e definitivamente, quando Maria se deitou ao lado dele, e, tomando-lhe as mãos, puxando-as para si, as fez passar, lentamente, por todo o seu corpo, os cabelos e o rosto, o pescoço, os ombros, os seios, que docemente comprimiu, o ventre, o umbigo, o púbis, onde se demorou, a enredar e a desenredar os dedos, o redondo das coxas macias, e, enquanto isto fazia, ia dizendo em voz baixa, quase num sussurro, Aprende, aprende o meu corpo. Jesus olhava as suas próprias mãos, que Maria segurava, e desejava tê-las soltas para que pudessem ir buscar, livres, cada uma daquelas partes, mas ela continuava, uma vez mais, outra ainda, e dizia, Aprende o meu corpo, aprende o meu corpo.. Jesus respirava precipitadamente, mas houve um momento em que pareceu sufocar, e isso foi quando as mãos dela, a esquerda colocada sobre a testa, a direita sobre os tornozelos, principiaram uma lenta carícia, na direcção uma da outra, ambas atraídas ao mesmo ponto central, onde, quando chegadas, não se detiveram mais do que um instante, para regressarem com a mesma lentidão ao ponto de partida, donde recomeçaram o movimento. Não aprendeste nada, vai-te, dissera Pastor, e quiçá quisesse dizer que ele não aprendera a defender a vida. Agora Maria de Magdala ensinara-lhe, Aprende o meu corpo, e repetia, mas doutra maneira, mudando-lhe uma palavra, Aprende o teu corpo, e ele aí o tinha, o seu corpo, tenso, duro, erecto, e sobre ele estava, nua e magnífica, Maria de Magdala, que dizia, Calma, não te preocupes, não te movas, deixa que eu trate de ti, então sentiu que uma parte do seu corpo, essa, se sumira no corpo dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe agitando-se, e que de súbito se escapava gritando, impossível, não pode ser, os peixes não gritam, ele, sim, era ele quem gritava, ao mesmo tempo que Maria, gemendo, deixava descair o seu corpo sobre o dele, indo beber-lhe da boca o grito, num sôfrego e ansioso beijo que desencadeou no corpo de Jesus um segundo e interminável frêmito.
Durante todo o dia, ninguém veio bater à porta de Maria de Magdala. Durante todo o dia, Maria de Magdala serviu e ensinou o rapaz de Nazaré que, não a conhecendo nem de bem nem de mal, lhe viera pedir que o aliviasse das dores e curasse das chagas que, mas isso não o sabia ela, tinham nascido doutro encontro, no deserto, com Deus. Deus dissera a Jesus, A partir de hoje pertences-me pelo sangue, o Demônio, se o era, desprezara-o, Não aprendeste nada, vai-te, e Maria de Magdala, com os seios escorrendo suor, os cabelos soltos que parecem deitar fumo, a boca túmida, olhos como de água negra, Não te prenderás a mim pelo que te ensinei, mas fica comigo esta noite. E Jesus, sobre ela, respondeu, O que me ensinas, não é prisão, é liberdade. Dormiram juntos, mas não apenas nessa noite. Quando acordaram, já manhã alta, e depois de uma vez mais os seus corpos se terem buscado e achado, Maria foi ver como estava a ferida do pé de Jesus, Tem melhor ar, mas não devias ir ainda para a tua terra, vai-te fazer mal o caminho, com esse pó, Não posso ficar, e se tu mesma dizes que estou melhor, Ficar, podes, a questão é que tenhas a vontade, quanto à porta do pátio, estará fechada por todo o tempo que quisermos, A tua vida, A minha vida, nesta hora, és tu, Porquê, Respondo-te com as palavras do rei Salomão, o meu amado meteu a mão pela abertura da porta e o meu coração estremeceu, E como posso ser o teu amado se não me conheces, se sou apenas alguém que te veio pedir ajuda e de quem tiveste pena, pena das minhas dores e da minha ignorância, Por isso te amo, porque te ajudei e te ensinei, mas tu a mim é que não poderás amar-me, pois não me ensinaste nem ajudaste, Não tens nenhuma ferida, Encontrá-la-ás, se a procurares, Que ferida é, Essa porta aberta por onde entravam outros e o meu amado não, Disseste que sou o teu amado, Por isso a porta se fechou depois de entrares, Não sei nada que possa ensinar-te, só o que de ti aprendi, Ensina-me também isso, para saber como é aprendê-lo de ti, Não podemos viver juntos, Queres dizer que não podes viver com uma prostituta, Sim, Por todo o tempo que estiveres comigo, não serei uma prostituta, não sou prostituta desde que aqui entraste, está nas tuas mãos que continue a não o ser, Pedes-me demasiado, Nada que não possas dar-me por um dia, por dois dias, pelo tempo que o teu pé leve a sarar, para que depois se abra outra vez a minha ferida, Levei dezoito anos para chegar aqui, Alguns dias mais, não te farão diferença, ainda és novo, Tu também és nova, Mais velha do que tu, mais nova do que a tua mãe, Conheces a minha mãe, Não, Então por que disseste, Porque eu nunca poderia ter um filho que tivesse hoje a tua idade, Que estúpido sou, Não és estúpido, apenas inocente, Já não sou inocente, Por teres conhecido mulher, Não o era já quando me deitei contigo, Fala-me da tua vida, mas agora não, agora só quero que a tua mão esquerda descanse sobre a minha cabeça e a tua direita me abrace.
Jesus ficou uma semana em casa de Maria de Magdala, o tempo necessário para que debaixo da crosta da ferida se formasse a nova pele. A porta do pátio esteve sempre fechada. Alguns homens impacientes, picados de cio ou de despeito, vieram bater, ignorando deliberadamente o sinal que devia mantê-los afastados. Queriam saber quem era esse que se demorava tanto, e algum mais gracioso atirou por cima dos muros um dichote, Ou será porque não pode, ou será porque não sabe, abre-me a porta, Maria, que eu explico lhe como se faz, e Maria de Magdala veio ao pátio para responder, Quem quer que sejas, o que pudeste não voltarás a poder, o que fizeste não o farás mais, Maldita mulher, Vai-te, que bem enganado vais, não encontrarás no mundo mulher mais bendita do que eu sou. Fosse por este incidente ou porque assim tinha de ser, ninguém mais veio bater-lhes à porta, em todo o caso o mais provável foi que nenhum daqueles homens, moradores de Magdala ou passantes informados, tivesse querido arriscar-se a ouvir a praga que os condenaria à impotência, pois é geral convicção que as prostitutas, sobretudo as de alto coturno, diplomadas ou de largo currículo, sabendo tudo sobre as artes de alegrar o sexo de um homem, também são muito competentes para reduzi-lo a uma soturnidade irremediável, cabisbaixo, sem ânimo nem apetites. Gozaram, pois, Maria e Jesus de tranquilidade durante aqueles oito dias, durante os quais as lições dadas e recebidas acabaram por passar a um discurso só, composto de gestos, descobertas, surpresas, murmúrios, invenções, como um mosaico de tésseras que não são nada uma por uma e tudo acabam por ser depois de juntas e postas nos seus lugares. Mais de uma vez, Maria de Magdala quis voltar àquela curiosidade de saber da vida do amado, mas Jesus mudava de conversa, respondia, por exemplo, Entro no meu jardim, minha irmã, minha esposa, colho a minha mirra e o meu bálsamo, como o favo com o meu mel e bebo o meu vinho com o meu leite, e, tendo-o dito tão apaixonadamente, logo passava da recitação do versículo ao acto poético, em verdade, em verdade te digo, querido Jesus, assim não se pode conversar. Mas um dia Jesus resolveu falar do seu pai carpinteiro e da sua mãe cardadora de lã, dos seus oito irmãos, e que segundo o costume, tinha começado por aprender o ofício paterno, mas depois fora pastor durante quatro anos, que estava ali de regresso a casa, andara uns dias com pescadores, mas não chegara o tempo para aprender deles a arte. Quando Jesus isto contou, era um fim de tarde, estavam no pátio a comer, e de vez em quando levantavam a cabeça para ver o rápido voo das andorinhas que passavam soltando os seus gritos estrídulos, pelo silêncio que se fez entre os dois pareceu que ficara tudo dito, o homem confessara-se à mulher, porém, a mulher, como se nada fosse, perguntou, Só isso, ele fez um sinal afirmativo, Sim, só isto. O silêncio tornou-se completo, os círculos das andorinhas rodavam sobre outras paragens, e Jesus disse, Meu pai foi crucificado há quatro anos em Séforis, chamava-se José, Se não estou enganada, és o primogênito, Sim, sou o primogênito, Então não compreendo por que não ficaste com a tua família, era o teu dever, Houve umas diferenças entre nós, e não me perguntes mais nada, Nada que sobre a tua família seja, mas esses anos de pastor, fala-me desse tempo, Não há nada a dizer, é sempre o mesmo, são as cabras, são as ovelhas, são os cabritos, são os borregos, e leite, muito leite, leite por todos os lados, Gostaste de ser pastor, Gostei, Por que te vieste embora, Aborreci-me, tinha saudades da família, Saudade, que é isso, Pena de estar longe, Estás a mentir, Por que dizes que estou a mentir, Porque vi medo e remorso nos teus olhos. Jesus não respondeu. Levantou-se, deu uma volta pelo pátio, depois parou diante de Maria, Um dia, voltando nós a encontrar-nos, talvez te conte o resto, se então me prometeres que não dirás a ninguém, Poupavas-nos tempo se fosse já, Direi, sim, mas só se nos voltarmos a encontrar, Esperas que nessa altura eu já não seja prostituta, por agora não podes ter confiança nesta, pensas que seria capaz de vender os teus segredos por dinheiro ou dá-los a um qualquer que aí viesse, por divertimento, em troca duma noite de amor mais gloriosa do que as que eu te dei e tu me deste, Não é essa a razão por que prefiro calar-me, Pois eu digo-te que Maria de Magdala estará ao pé de ti, prostituta ou não, quando precisares dela, Quem sou eu para merecer isso, Tu não sabes quem és. Nessa noite, o antigo pesadelo voltou, depois de ter sido, apenas, nos últimos tempos, como uma angústia vaga que se infiltrava nos interstícios dos sonhos comuns, por fim habitual e suportável. Mas esta noite, talvez por ser a última que Jesus dormia naquela cama, talvez porque ele falou de Séforis e dos crucificados, o pesadelo, como uma serpente gigantesca que estivesse a acordar da hibernação, começou a desenrolar lentamente os anéis, a levantar a horrível cabeça, e Jesus acordou aos gritos, coberto de suores frios, Que tens, que tens, perguntava-lhe Maria, aflita, Um sonho, nada mais que um sonho, defendeu-se ele, Conta-mo, e esta palavra simples foi dita com tanto amor, com tanta ternura, que Jesus não pôde segurar as lágrimas e, depois das lágrimas, as palavras que quisera esconder, Sonho que meu pai me vem matar, É teu pai que está morto, tu estás aqui, vivo, Eu sou uma criança, estou em Belém da Judeia e meu pai vem matar-me, Porquê em Belém, Foi lá que nasci, Talvez penses que teu pai não queria que tivesses nascido, é o que o sonho está a dizer, Tu não sabes nada, Não, não sei, Houve crianças em Belém que morreram por causa de meu pai, Matou-as ele, Matou-as porque não as salvou, não foi a mão dele que usou o punhal, E no teu sonho és uma dessas crianças, Tenho morrido mil mortes, Pobre de ti, pobre Jesus, Foi por causa disto que saí de casa, Compreendo, enfim, Julgas que compreendes, Que mais falta, O que ainda não te posso dizer, O que me dirás se nos voltarmos a encontrar, Sim. Jesus adormeceu com a cabeça no ombro de Maria, respirando sobre o seu seio. Ela ficou acordada em todo o resto da noite. Doía-lhe o coração porque a manhã não tardaria a separá-los, mas a sua alma estava serena. O homem que repousava a seu lado era, sabia-o, aquele por quem tinha esperado toda a vida, o corpo que lhe pertencia e a quem o seu corpo pertencia, virgem o dele, usado e sujado o dela, mas há que ver que o mundo tinha começado, o que se chama começar, faz apenas oito dias, e só esta noite é que se achou confirmado, oito dias é nada se os compararmos a um futuro por assim dizer intacto, de mais sendo tão novo este Jesus que me apareceu, e eu, Maria de Magdala, eu aqui estou, deitada com um homem, como tantas vezes, mas agora perdida de amor e sem idade.
A manhã gastaram-na a preparar a viagem, que parecia que ia o rapaz para o cabo do mundo, quando não chega a duzentos estádios o que vai ter de andar, nada que um homem de normal constituição não possa fazer entre o sol do meio-dia e o crepúsculo da tarde, mesmo levando em conta que de Magdala a Nazaré nem tudo é caminho chão, por ali não faltam encostas escarpadas e pedregosos descampados. E toma tu cuidado, que andam nesses sítios bandos da guerra contra os romanos, dizia Maria, Ainda, perguntou Jesus, Tens vivido longe, isto aqui é a Galileia, E eu sou galileu, não me farão mal, Galileu não és, se foste nascer a Belém de Judeia, Meus pais conceberam-me em Nazaré, e eu, verdadeiramente, nem em Belém nasci, nasci foi numa cova, no interior da terra, e agora até me chega a parecer que voltei a nascer, aqui, em Magdala, De uma prostituta, Para mim, não és prostituta, disse Jesus, com violência, É o que tenho sido. Ficou um largo silêncio depois destas palavras, Maria à espera de que Jesus falasse, Jesus dando voltas a uma inquietação que não conseguia dominar. Por fim, perguntou, Aquilo que penduraste na porta para que nenhum homem entrasse, vais retirá-lo. Maria de Magdala olhou-o com uma expressão séria, logo sorriu, com malícia, Não poderia ter dentro de casa dois homens ao mesmo tempo, Isso que quer dizer, Que tu te vais, mas que continuas aqui. Fez uma pausa e rematou, O sinal que está dependurado na porta, continuará lá, Pensarão que estás com um homem, Se o pensarem, pensarão bem, porque estarei contigo, Ninguém mais aqui entrará, Tu disseste-o, esta mulher a quem chamam Maria de Magdala deixou de ser prostituta quando aqui entraste, De que vais viver, Só os lírios do campo crescem sem trabalhar nem fiar. Jesus tomou-lhe as mãos e disse, Nazaré não é longe de Magdala, um destes dias virei visitar-te, Se me procurares, aqui me encontrarás, O meu desejo será encontrar-te sempre, Encontrar-me-ias mesmo depois de morreres, Queres dizer que vou morrer antes de ti, Sou mais velha, de certeza morrerei primeiro, mas, se acontecesse morreres tu antes de mim, eu continuaria a viver, só para que me pudesses encontrar, E se fores tu a primeira a morrer, Bendito seja quem te trouxe a este mundo quando eu ainda estava nele. Depois disto, Maria de Magdala serviu de comer a Jesus, e ele não precisou dizer-lhe, Senta-te comigo, porque desde o primeiro dia, na casa fechada, este homem e esta mulher tinham dividido e multiplicado entre si os sentimentos e os gestos, os espaços e as sensações, sem excessivos respeitos de regra, norma ou lei. Com certeza, não saberiam como responder-nos se agora lhes perguntássemos de que modo se comportariam se não se achassem protegidos e à solta nestas quatro paredes, entre as quais puderam, por uns poucos dias, talhar um mundo à simples imagem e semelhança de homem e mulher, bem mais dela do que dele, diga-se de passagem, mas, tendo sido ambos tão peremptórios quanto aos seus futuros encontros, basta que tenhamos a paciência de esperar o lugar e a hora em que, juntos, se enfrentarão com o mundo de fora da porta, este dos que já se perguntam com inquietação, Que se passa ali dentro, e não é nas conhecidas folestrias de quarto e cama que estão a pensar. Depois de terem comido, Maria calçou as sandálias a Jesus e disse-lhe, Tens de ir, se queres chegar a Nazaré antes da noite, Adeus, disse Jesus, e, tomando o alforje e o cajado, saiu para o pátio. O céu estava nublado por igual, como um forro de lã suja, ao Senhor não devia ser fácil perceber, do alto, o que andavam a fazer as suas ovelhas. Jesus e Maria de Magdala despediram-se com um abraço que parecia não ter fim, também se beijaram, mas com menos demora, não admira, o costume do tempo não era tanto esse.


segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS (Capítulo XVI)





Atrás de tempo, tempo vem, é sentença conhecida e de muita aplicação, porém não tão óbvia quanto pode parecer a quem se satisfaça com o significado próximo das palavras, quer soltas, uma por uma, quer juntas e articuladas, pois tudo vai é da maneira de dizer, e esta varia com o sentimento de quem as expresse, não é o mesmo pronunciá-las alguém que, correndo-lhe mal a vida, espere dias melhores, ou atirá-las como ameaça, como prometida vingança que o futuro haverá de cumprir. O caso mais extremo seria o de uma pessoa que, sem fortes e objectivas razões de queixa quanto à sua saúde e bem-estar, suspirasse melancolicamente, Atrás de tempo, tempo vem, só por ser de natureza pessimista e atreita a prever o pior. Não seria de todo crível que Jesus, na sua idade, andasse com estas palavras na boca, qualquer que fosse o sentido em que as usasse, mas nós, sim, que, como Deus, tudo sabemos do tempo que foi, é e há-de ser, nós podemos pronunciá-las, murmurá-las ou suspirá-las enquanto o vamos vendo entregue à sua faina de pastor, por essas montanhas de Judá, ou descendo, no tempo próprio, ao vale do Jordão. E não tanto por de Jesus se tratar, mas porque todo o ser humano tem por diante, em cada momento da sua vida, coisas boas e coisas más, atrás de umas, outras, atrás de tempo, tempo. Sendo Jesus o evidente herói deste evangelho, que nunca teve o propósito desconsiderado de contrariar o que escreveram outros e portanto não ousará dizer que não aconteceu o que aconteceu, pondo no lugar de um Sim um Não, sendo Jesus esse herói e conhecidas as suas façanhas, ser-nos-ia muito fácil chegar ao pé dele e anunciar-lhe o futuro, o bom e maravilhoso que será a sua vida, milagres que darão de comer, outros que restituirão a saúde, um que vencerá a morte, mas não seria sensato fazê-lo, porque o moço, ainda que dotado para a religião e entendido em patriarcas e profetas, goza do robusto cepticismo próprio da sua idade e mandar-nos-ia passear. Mudará de ideias, claro está, quando se encontrar com Deus, mas esse decisivo acontecimento não é para amanhã, daqui até lá ainda Jesus vai ter de subir e descer muito monte, mungir muita cabra e muita ovelha, ajudar a fabricar o queijo, ir à troca de produtos às aldeias. Também matará animais doentes ou estropiados, e chorará por eles. Mas o que nunca lhe irá acontecer, sosseguem os espíritos sensíveis, é cair na horrível tentação de usar, como lhe propôs o malicioso e pervertido Pastor, uma cabra ou uma ovelha, ou as duas, para descarga e satisfação do sujo corpo com que a límpida alma tem de viver. Esqueçamo-nos, por não ser aqui lugar de análises íntimas, só possíveis em tempos futuros a este, de que, quantas e quantas vezes, para poder exibir e gabar-se de um corpo limpo, a alma a si mesma se carregou de tristeza, inveja e imundície.
Pastor e Jesus, passados aqueles enfrentamentos éticos e teológicos dos primeiros dias, contudo ainda por algum tempo recidivantes, levaram sempre, enquanto juntos, uma boa vida, o homem ensinando sem impaciências demais velho as artes da pastorícia, o rapaz aprendendo-as como se a sua vida fosse depender maximamente delas. Jesus aprendeu a lançar o cajado, rodopiando e zumbindo pelo ar até ir cair nos lombos dumas ovelhas que, por distracção ou atrevimento, se afastavam do rebanho, mas essa foi uma dorida aprendizagem, porque um dia, não estando ainda seguro da técnica, atirou o pau demasiado por baixo, com o trágico resultado de, na trajectória, apanhar em cheio o tenro pescocinho de um cabrito de poucos dias, que no mesmo instante ali morreu. Acidentes destes podem ocorrer a qualquer pessoa, até um pastor veterano e diplomado não está livre de lhe acontecer um azar, mas o pobre Jesus, que já tantas dores transporta consigo, parecia uma estátua da amargura quando levantou do chão, ainda quente, o cabritinho. Não havia nada a fazer, a própria cabra mãe, depois de farejar por um momento o filho, afastou-se e continuou a pastar, rapando a erva rasa e dura, que repuxava com secos movimentos da cabeça, aqui devemos citar o conhecido refrão, Cabra que berra, bocada que erra, que é outra maneira de dizer o mesmo, Chorar e comer não faz bom viver. Pastor veio ver o que sucedera, O mal é dele, que morreu, tu não fiques triste, Matei-o, lamentou-se Jesus, e era tão pequeno, Sim, se fosse um bode feio e fedorento não terias pena, ou não terias tanta, põe-no no chão, que eu trato dele, e tu vai-te além, está lá uma ovelha em jeito de parir, Que vais fazer, Esfolá-lo, que é que julgas, vida não posso dar-lha, não sou competente em obras milagrosas, Faço jura de não comer dessa carne, Comer o animal que matamos é a única maneira de respeitá-lo, mau é comerem uns o que outros tiveram de matar, Não o comerei, Pois não comas, mais fica para mim, Pastor tirou a faca da cinta, olhou Jesus e disse, Mais tarde ou mais cedo, também isto terás de aprender, ver como são feitos por dentro aqueles que foram criados para nos servir e alimentar. Jesus virou a cara para o lado e deu um passo para retirar-se, mas Pastor, que detivera o movimento da faca, ainda disse, Os escravos vivem para servir-nos, talvez devêssemos abri-los para sabermos se levam escravos dentro, e depois abrir um rei para ver se tem outro rei na barriga, e olha que se encontrássemos o Diabo e ele deixasse que o abríssemos, talvez tivéssemos a surpresa de ver saltar Deus lá de dentro. Falamos, antes, de recidivas dos choques de ideias e convicções entre Jesus e Pastor, e este é um exemplo. Mas Jesus, com o tempo, aprendera que a melhor resposta seria calar, não se dar por achado perante as provocações, mesmo brutais, como esta, e ainda assim vai com sorte, podia ter sido bem pior, imagine-se o escândalo se Pastor se lembrava de abrir Deus para ver se o Diabo lá estava dentro. Jesus foi à procura da ovelha que estava a parir, ao menos ali não o esperavam surpresas, apareceria um cordeiro igual a todos, verdadeiramente à imagem e semelhança da mãe, por sua vez retrato fiel das suas irmãs, há seres assim, não levam dentro de si senão isso, a certeza de uma pacífica e não interrogativa continuidade. A ovelha já parira, no chão o anho parecia feito só de pernas, e a mãe tentava ajudá-lo a erguer-se dando-lhe leves empurrões com o focinho, mas o pobre, estonteado, apenas sabia fazer movimentos bruscos com a cabeça como se procurasse o melhor ângulo de visão para entender o mundo em que nascera. Jesus ajudou-o a firmar-se nas patas, ficaram-lhe as mãos úmidas dos humores da matriz da ovelha, mas ele não se importou nada, é o que faz viver no campo com animais, cuspo e baba é tudo o mesmo, este cordeiro vem em boa altura, tão bonito, com o pêlo frisado, já a sua boca rósea e frenética buscava o leite onde o havia, naquelas tetas que ele nunca vira antes, com as quais não podia ter sonhado no útero da mãe, em verdade nenhuma criatura pode queixar-se de Deus, se logo ao nascer já vem a saber tantas coisas úteis. Lá adiante Pastor levantava a pele do cabrito esticada numa armação de paus em forma de estrela, o corpo esfolado, agora dentro do alforje, embrulhado num pano, será salgado quando o rebanho parar para passar a noite, menos a parte de que Pastor entender fazer a sua ceia, que Jesus já disse que não comerá duma carne a que, sem querer, tirou a vida. Para a religião que cultiva e os costumes a que obedece, estes escrúpulos de Jesus são subversivos, haja vista a matança desses outros inocentes todos os dias sacrificados nos altares do Senhor, maiormente em Jerusalém, onde as vítimas se contam por hecatombes. No fundo, talvez que o caso de Jesus, à primeira vista incompreensível nas circunstâncias de tempo e de lugar, seja apenas uma questão de sensibilidade, por assim dizer, em carne viva, recordemos quão próxima está ainda a trágica morte de José, quão próximas as revelações insuportáveis do que aconteceu em Belém vai fazer quinze anos, caso para admirar é que este rapaz mantenha o seu juízo inteiro, que não tenha sido tocado nas polias e roldanas do miolo, apesar daqueles sonhos que não o largam, ultimamente não temos falado deles, mas continuam. Quando o sofrimento passa a mais, indo ao ponto de transmitir-se ao próprio rebanho que acorda, noite alta, julgando que o vêm matar, Pastor acorda-o suavemente, Que é isso, que é isso, diz, e Jesus sai do pesadelo para os braços dele, como se do seu desgraçado pai se tratasse. Um dia, logo ao princípio, Jesus contou a Pastor o que sonhava, tentando, porém, disfarçar as raízes e as causas da sua nocturna e quotidiana agonia, mas Pastor disse, Deixa, não vale a pena contares-mo, sei tudo, até aquilo que estás a tentar esconder-me. Foi isto naqueles dias em que Jesus recriminava Pastor pela sua falta de fé e pelos defeitos e maldades que se deduziam e reconheciam no seu comportamento, incluindo, perdoe-se-nos que voltemos ao assunto, o sexual. Mas Jesus, vendo bem, não tinha ninguém no mundo, se exceptuarmos a família, de que se afastou e de que quase anda esquecido, salvo a mãe, que sempre é a mãe, aquela que nos deu o ser, e a quem algumas vezes na vida apeteceu dizer, Antes não tivesses dado, além da mãe, só a irmã Lísia, não se sabe porquê, a memória tem destas coisas, razões suas próprias para lembrar-se e esquecer-se. Sendo estas coisas o que são, Jesus acabou por sentir-se bem na companhia de Pastor, imaginemo-lo por nós, a consolação que será não vivermos sozinhos com a nossa culpa, ter ao lado alguém que a conhecesse e que, não tendo de fingir perdoar o que perdão não possa ter, supondo que estaria em seu poder fazê-lo, procedesse connosco com rectidão, usando de bondade e de severidade segundo a justiça de que seja merecedora aquela parte de nós que, cercada de culpas, conservou uma inocência. Isto nos ocorreu explicar agora, aproveitando o a propósito, para que com mais facilidade se pudessem entender as razões, e recebê-las por boas, por que Jesus, em tudo tão diferente e contrário ao seu rude hospedeiro, virá afinal a ficar com ele até ao anunciado encontro com Deus, de que tanto há a esperar, pois Deus não iria aparecer a um simples mortal sem ter para isso fortes razões.
Antes, porém, vão querer as circunstâncias, os acasos e as coincidências de que tanto se tem falado, que Jesus encontre sua mãe e alguns dos seus irmãos em Jerusalém, por ocasião desta primeira Páscoa que ele julgava ir viver longe da família. Que Jesus quisesse celebrar a Páscoa em Jerusalém, poderia ter sido, para o pastor, causa de estranheza e motivo de liminar recusa, estando eles no deserto e precisando o rebanho de tanta cópia de assistência e cuidados, sem contar, claro está, que não sendo Pastor judeu nem tendo outro deus para honrar, podia, que mais não fosse por antipática embirração, dizer, Pois não vai, não senhor, aqui é que é o seu lugar, patrão sou eu e não vou de férias. Ora, há que reconhecer que não foi assim, Pastor apenas perguntou, Voltas, se bem que, pelo tom de voz, parecia estar seguro de que Jesus voltaria, e foi o que o rapaz respondeu, sem hesitação, mas surpreendido, ele sim, por lhe ter saído tão pronta a palavra, Volto, Escolhe então aí um cordeiro limpo e são e leva-o para o sacrifício, já que vocês são dados a esses usos e costumes, mas isto disse-o Pastor a experimentar, queria ver se Jesus era capaz de conduzir à morte um cordeiro daquele rebanho que tanto trabalho lhes dava a guardar e defender. A Jesus ninguém o avisou, não se lhe chegou de mansinho um anjo, dos outros pequenos e quase invisíveis, a sussurrar-lhe ao ouvido, Cuidado, olha que é uma armadilha, não te fies, esse sujeito é capaz de tudo. A sua simples sensibilidade é que lhe encontrou a boa resposta, ou teria sido, quem sabe, a lembrança do cabrito morto e do anho nascido, Não quero cordeiro deste rebanho, disse, Porquê, Não levaria à morte o que ajudei a criar, A mim parece-me isso muito bem, mas já pensaste, creio, que em outro rebanho o haverás de buscar, Não posso evitá-lo, os cordeiros não descem do céu, Quando queres partir, Amanhã cedo, E voltas, Volto. Sobre este assunto não disseram mais palavra, apesar de nos ficarem dúvidas de como irá Jesus, que não é rico e trabalha pela comida, comprar o cordeiro pascal. Estando ele tão livre de tentações que custem dinheiro, é de presumir que ainda traga consigo aquelas poucas moedas que o fariseu lhe deu há quase um ano, mas esse pouco é pouco mesmo, sabido, como foi dito já, que nesta época do ano os preços do gado em geral, e especialmente dos cordeiros, disparam para alturas tão especulativas que é, verdadeiramente, um Deus nos acuda. Apesar do que de mau lhe tem sucedido, apeteceria dizer que a este rapaz uma boa estrela o cuida e defende, se não fosse suspeitosíssima debilidade, sobretudo em boca de evangelista, este ou outro qualquer, acreditar que corpos celestes tão afastados do nosso planeta possam produzir efeitos decisivos na existência de um ser humano, por muito que a esses astros tenham invocado, estudado e relacionado os solenes magos que, se é verdade o que se diz, teriam andado por estes paramos aqui há uns anos, sem mais consequência que ver o que viram e ir à vida. O que este discurso longo e trabalhoso pretende afinal dizer é que o nosso Jesus há-de encontrar, de certeza, maneira de apresentar-se dignamente no Templo com o seu borreguito, cumprindo o que se espera do bom judeu que tem provado ser, em tão difíceis condições como foram os valentes enfrentamentos que sustentou com Pastor.
Por este tempo gozava o rebanho dos abundantes pastos do vale de Ayalon, que está entre as cidades de Gezer e Emaús. Em Emaús tentou Jesus ganhar algum dinheiro com que pudesse comprar o cordeiro de que precisava, mas rapidamente chegou à conclusão de que um ano de pastor o especializara de tal maneira que o tornara inapto para outros ofícios, incluindo o de carpinteiro, em que, aliás, não chegara a progredir coisa que se visse, por falta de tempo. Meteu-se por isso ao caminho que sobe de Emaús para Jerusalém, deitando contas à sua difícil vida, comprar já sabemos que não pode, roubar já sabíamos que não quer, e mais milagre seria do que sorte achar ele um cordeiro que na estrada de Emaús se tivesse perdido. Não faltam aqui os inocentes, vão com uma corda ao pescoço atrás das famílias, ou ao colo se lhes calhou o conforto de um dono piedoso, mas, como meteram nas suas juvenis cabeças que saíram a passeio, vão excitados, nervosos, querem saber tudo, e, porque não podem fazer perguntas, usam os olhos, como se eles bastassem para entender um mundo feito de palavras. Jesus sentou-se numa pedra, à beira do caminho, a pensar na maneira de resolver o problema material que o está impedindo de cumprir um dever espiritual, vã esperança, por exemplo, seria aparecer-lhe aí outro fariseu, ou o mesmo, se de tais actos faz prática quotidiana, a perguntar, ele sim, com palavras, Precisas de um cordeiro, como antes lhe tinha perguntado, Tens fome. Da primeira vez, Jesus não precisou esmolar para que lhe fosse dado, agora, sem a certeza de que lhe darão, vai ser obrigado a pedir. Já tem a mão estendida, postura que de tão eloquente dispensa explicações, e tão forte em expressão que o mais comum é desviarmos dela os olhos como os desviamos duma chaga ou duma obscenidade. Algumas moedas foram deixadas cair por viandantes menos distraídos na concha da mão de Jesus, mas tão poucas que não vai ser por este andar que o caminho de Emaús chegará às portas de Jerusalém. Somados o dinheiro que já tinha e o que lhe deram, não dá nem para metade de um cordeiro, e é por de mais sabido que o Senhor não aceita nos seus altares nada que não esteja perfeito e completo, por isso é que rejeita o animal cego, aleijado ou mutilado, sarnento ou com verrugas, imagine-se o escândalo no Templo se nos apresentássemos ao sacrifício com os quartos traseiros de um animal, e ainda assim sob condição de que os testículos dele não estivessem pisados, esmagados, quebrantados ou cortados, caso em que a exclusão estaria igualmente certa. Ninguém se lembra de perguntar a este rapaz para que quer ele o dinheiro, isto se começou a escrever no exacto instante em que um homem de muita idade, com uma comprida barba branca, se aproximava de Jesus, deixando a sua numerosa família, que, por deferência para com o patriarca, parou no meio da estrada, à espera. Pensou Jesus que vinha ali outra moeda, mas enganou-se. O velho perguntou-lhe, Quem és tu, e o rapaz levantou-se para responder, Sou Jesus de Nazaré, Não tens família, Tenho, Por que não estás então com ela, Vim trabalhar de pastor para a Judeia, e esta foi uma maneira mentirosa de dizer a verdade ou de pôr a verdade a servir a mentira. O velho olhou-o com uma expressão de curiosidade insatisfeita e perguntou, enfim, Por que pedes tu esmola, se tens um ofício, Trabalho pela comida, e não tenho dinheiro que chegue para comprar o cordeiro da Páscoa, Por isso pedes, Sim. O velho fez sinal a um dos homens do grupo, Dá um cordeiro a este rapaz, compramos outro em chegando ao Templo. Os anhos eram seis, atados a uma mesma corda, o homem soltou o último e foi levá-lo ao velho, que disse, Aqui tens o teu cordeiro, assim não achará o Senhor falta nos sacrifícios desta Páscoa, e sem esperar pelos agradecimentos foi juntar-se à família que o recebeu sorridente e com aplauso. Jesus deu-lhes as graças quando já não podiam ouvi-las, e não se sabe como nem porquê a estrada ficou deserta nesse instante, entre uma curva e outra curva não havia mais que estes dois, o rapaz e o cordeiro, encontrados finalmente no caminho de Emaús por obra da bondade de um judeu velho. Jesus segura a ponta do baraço que prendera o anho à corda, o animal olhou o seu novo dono e baliu, fez mé-é-é-é naquele jeito tímido e trêmulo dos cordeiros que vão morrer jovens por os amarem tanto os deuses. Este som, quantas mil vezes ouvido durante a sua novel actividade de pastor, tocou o coração de Jesus em ponto de sentir que se lhe dissolviam de pena os membros, ali estava, como nunca antes desta maneira absoluta, senhor da vida e da morte de outro ser, este cordeiro branco, imaculado, sem vontade nem desejos, que levantava para ele um focinho interrogativo e confiante, via-se-lhe a língua rósea quando balia, e era róseo, por baixo da penugem, o interior das orelhas, e róseas ainda as unhas, que nunca hão-de vir a endurecer e a mudar para cascos um nome por enquanto comum aos homens. Jesus acariciou a cabeça do cordeiro, que correspondeu levantando-a e roçando-lhe a palma da mão com o nariz úmido, fazendo-o estremecer. O encantamento desfez-se como principiara, ao fundo da estrada, do lado de Emaús, apareciam já outros peregrinos num tropel esvoaçante de túnicas, alforjes e bordões, com outros cordeiros e outros louvores ao Senhor. Jesus pegou no seu anho ao colo, como uma criança, e começou a caminhar.
Não voltara a Jerusalém desde aquele distante dia em que aqui o trouxera a necessidade de saber quanto valem culpas e remorsos, e como se hão-de eles suportar na vida, se partilhados, como os bens da herança, ou por inteiro guardados, como cada um a sua própria morte. A multidão nas ruas parecia um rio de lama pardacenta que ia desaguar na grande esplanada fronteira à escadaria do Templo. Com o cordeiro nos braços, Jesus assistia ao desfilar da gente, uns que iam, outros que vinham, aqueles levando os animais ao sacrifício, estes já sem eles, de rosto alegre, gritando Aleluia, Hosana, Ámen, ou não o dizendo por não ser o próprio da ocasião, como próprio também não seria sair-se alguém a exclamar Evoé ou berrando Rip hip hurrah, ainda que, no fundo, as diferenças entre estas expressões não sejam tão grandes quanto parecem, empregamo-las como se fossem quintessências do sublime, e depois, com a continuação do tempo e do uso, ao repeti-las, perguntamo-nos, Para que serve isto, afinal, e já não sabemos responder. Por cima do Templo, a alta coluna de fumo, enovelada, contínua, mostrava a toda a terra em redor que quantos ali tinham ido a sacrificar eram directos e legítimos descendentes de Abel, aquele filho de Adão e Eva que ao Senhor, naquele tempo, oferecera primogênitos do seu rebanho e as gorduras deles, favoravelmente recebidos, enquanto seu irmão Caim, não tendo para apresentar mais do que simples frutos da terra, viu que o Senhor, sem que se soubesse até hoje porquê, deles desviou os olhos e para ele não olhou. Se esta foi a causa de matar Caim a Abel, hoje podemos viver descansados, que não se matarão estes homens uns aos outros, pois todos sacrificam, por igual, o mesmo, é ver como as gorduras crepitam, como as carnes rechinam, Deus, nas empíreas alturas, respira, comprazido, os odores da carnagem. Jesus apertou o cordeiro contra o peito, não compreende por que não aceita Deus que no seu altar se derrame uma concha de leite, sumo da existência que passa de um ser a outro ser, ou nele se espalhe, com um gesto de semeador, um punhado de trigo, matéria entre todas substantiva do pão imortal. O seu cordeiro, que ainda há pouco foi oferta admirável de um velho a um rapaz, não verá pôr-se o sol deste dia, é tempo de subir a escada do Templo, tempo de levá-lo ao cutelo e ao fogo, como se não fosse merecedor de viver ou tivesse cometido, contra o eterno guardião dos pastos e das fábulas, o crime de beber do rio da vida. Então Jesus, como se uma luz houvesse nascido dentro dele, decidiu, contra o respeito e a obediência, contra a lei da sinagoga e a palavra de Deus, que este cordeiro não morrerá, que o que lhe tinha sido dado para morrer continuará vivo, e que, tendo vindo a Jerusalém para sacrificar, de Jerusalém partirá mais pecador do que quando cá entrou, já não lhe bastavam as faltas antigas, agora caiu em mais esta, o dia chegará, porque Deus não esquece, em que terá de pagar por todas elas. Durante um momento, o temor do castigo fê-lo hesitar, mas a mente, numa rapidíssima imagem, representou-lhe a visão aterradora de um mar de sangue infinito, o sangue dos inumeráveis cordeiros e outros animais sacrificados desde a criação do homem, que para isso mesmo é que a humanidade foi posta neste mundo, para adorar e sacrificar. A tal ponto o perturbaram estas imaginações que lhe pareceu ver a escadaria do Templo alagada de vermelho, escorrendo em toalhas de degrau em degrau, e ele próprio ali, com os pés no sangue, levantando ao céu, degolado, morto, o seu cordeiro. Abstraído, Jesus era como se estivesse no interior duma bolha de silêncio, mas de repente a bolha estalou, rompeu-se em pedaços, e ele achou-se outra vez mergulhado no meio da algazarra das palavras, das bênçãos, dos apelos, dos gritos, dos cânticos, das vozes patéticas dos cordeiros, e, num instante que fez calar tudo isto, o mugido profundo, três vezes repetido, do chofar, o longo e espiralado chifre do carneiro, feito trombeta. Envolvendo o anho no alforje, como para defendê-lo duma ameaça agora iminente, Jesus correu para fora da esplanada, perdeu-se nas ruas mais estreitas, sem se preocupar com a direcção em que ia. Quando deu por si, estava no campo, saíra da cidade pela porta do norte, a de Ramalá, a mesma por onde entrara quando viera de Nazaré. Sentou-se debaixo duma oliveira, à beira da estrada, e retirou o cordeiro do alforje, ninguém se estranharia de o ver ali, pensariam, Está a descansar da caminhada, a ganhar forças para ir ao Templo levar o cordeiro, bonito é ele, não saberemos, nós, se, na ideia de quem o pensou, o bonito é o anho, ou é Jesus. Temos cá a nossa opinião, que os dois o são, mas, se tivéssemos de votar, assim à primeira vista, daríamos a maçã ao cordeiro, porém com uma condição, não crescer. Jesus está deitado de costas, segura a ponta do baraço para que o cordeiro não fuja, mas nem seria precisa a precaução, que as forças do pobrezinho estão por um fio, não é só a pouca idade, é também a agitação, esta correria, este contínuo levar e trazer, sem falar do pouco alimento que lhe foi deixado hoje pela manhã, que não convém nem é decente ir-se alguém, borrego seja ou mártir, a morrer de barriga cheia. Deitado está pois Jesus, aos poucos calmou-se-lhe a respiração, e olha o céu por entre as ramagens da oliveira que o vento move suavemente, fazendo dançar sobre os seus olhos os raios de sol que passam pelos interstícios das folhas, deve ser mais ou menos a hora sexta, a luz zenital reduz as sombras, ninguém diria que a noite virá apagar, com o seu lento sopro, este deslumbramento de agora. Jesus já descansou, agora fala ao cordeiro, Vou-te levar para o rebanho, diz, e começa a levantar-se. Na estrada passam algumas pessoas, outras vêm atrás, e quando Jesus põe os olhos nestas leva um sobressalto, o seu primeiro movimento é para fugir, mas claro que não o fará, como se atreveria, se quem ali vem é sua mãe com alguns dos seus irmãos, os mais velhos, Tiago, José e Judas, também vem Lísia, mas essa é mulher, leva menção à parte, não a que lhe caberia naturalmente se seguíssemos a ordem dos nascimentos, entre Tiago e José. Ainda não o viram. Jesus desce à estrada, tem outra vez o cordeiro ao colo, mas agora suspeita-se que o faz para ter os braços ocupados. O primeiro que dá por ele é Tiago, levanta um braço, depois fala precipitadamente para a mãe, e Maria olha, agora apressam todos o passo, por isso Jesus sente-se obrigado a fazer também a sua parte de caminho, porém, tendo o cordeiro ao colo, não pode correr, tanto tempo isto leva a explicar que parece que não queremos que estes se encontrem, mas não é isso, o amor maternal, fraternal e filial dar-lhes-ia asas, mas há reservas, certos constrangimentos, sabemos como se separaram, não sabemos que efeitos causaram tantos meses de afastamento e falta de notícias. Andando, sempre se acaba por chegar, aí estão eles, frente a frente, Jesus diz, A tua bênção, mãe, e a mãe diz, O Senhor te abençoe, meu filho. Abraçaram-se, depois foi a vez dos irmãos, Lísia veio no fim, posto o que, bem o tínhamos previsto, ninguém soube o que havia de dizer, Maria não ia perguntar ao filho, Que surpresa, por aqui, nem ele à mãe, Estava longe de te encontrar, por que vieste à cidade, o cordeiro de um e o cordeiro dos outros, que o traziam, falavam por si, é a Páscoa do Senhor, a diferença é que um vai morrer e o outro já se salvou. Nunca mais deste notícia de ti, disse Maria enfim, e neste momento soltaram-se-lhe as fontes dos olhos, era o seu primogênito que ali estava, tão alto, a cara já de homem, com uns começos de barba, e a pele escura de quem leva a vida debaixo do sol, de frente para o vento e a poeira do deserto. Não chores, mãe, tenho o meu trabalho, sou pastor, Pastor, Sim, Cuidava eu que terias seguido o ofício que teu pai te ensinou, Calhou ser pastor, é o que sou, Quando voltas para casa, Ah, isso não sei, um dia, Ao menos, vem com a tua mãe e os teus irmãos, vamos juntos ao Templo, Não vou ao Templo, mãe, Porquê, ainda tens aí o teu cordeiro, Este cordeiro não vai ao Templo, Tem defeito, Nenhum defeito, este cordeiro só morrerá quando chegar a sua hora natural, Não te compreendo, Não precisas compreender, se salvo este cordeiro é para que alguém me salve a mim, Então, não vens com a tua família, Já ia de partida, Para onde vais, Vou para onde pertenço, para o rebanho, E onde anda ele, Agora está no vale de Ayalon, Onde fica esse vale de Ayalon, Do outro lado, Do outro lado de quê, De Belém. Maria recuou um passo, tornou-se pálida, podia-se ver como envelhecera, apesar de ter apenas trinta anos, Por que falas de Belém, perguntou, Porque foi lá que encontrei o pastor que me governa, Quem é ele, e antes que o filho tivesse tempo de responder disse para os outros, Sigam, esperem por mim na porta, depois agarrou Jesus pela mão, puxou-o para a beira da estrada, Quem é ele, repetiu, Não sei, respondeu Jesus, Tem nome, Se o tem, não mo disse, chamo-lhe Pastor, nada mais, Como é, Grande, Onde estavas quando o encontraste, Na cova onde nasci, Quem te lá levou, Uma escrava chamada Zelomi que esteve no meu nascimento, E ele, Ele, quê, Que te disse, Nada que tu não saibas. Maria deixou-se cair no chão como se uma mão poderosa a tivesse empurrado, Esse homem é um demônio, Como sabes, disse-to ele, Não, a primeira vez que o vi disse-me que era um anjo, mas que o não dissesse eu a ninguém, Quando foi que o viste, No dia em que teu pai soube que eu estava grávida de ti, apareceu-nos à porta como um mendigo e disse que era um anjo, Viste-o outras vezes, Na estrada, quando fomos, teu pai e eu, a Belém, para o recenseamento, na cova onde nasceste, e na noite depois do dia em que te foste de casa, entrou no pátio, eu pensei que fosses tu, mas era ele, vi-o pela frincha da porta arrancar a árvore que estava ao lado da entrada, lembras-te, a árvore que tinha nascido no sítio onde se enterrou a tigela com a terra que brilhava, Que tigela, que terra, Nunca soubeste, foi o que o mendigo me deu antes de se ir embora, uma terra que brilhava dentro da tigela onde tinha comido o que lhe dei, Para da terra ter feito luz, seria realmente um anjo, Ao princípio acreditei que o fosse, mas o diabo também tem as suas artes. Jesus tinha-se sentado ao lado da mãe e deixara o cordeiro à vontade, Sim, já compreendi que, quando um e outro estão de acordo, não se pode distinguir um anjo do Senhor de um anjo de Satã, disse, Fica connosco, não voltes para esse homem, pede-to a tua mãe, Prometi que voltaria, cumprirei a minha palavra, Promessas ao diabo, só se for para enganá-lo, Este homem, que não é homem, bem o sei, este anjo ou este demônio acompanha-me desde que nasci e eu quero saber porquê, Jesus, meu filho, vem ao Templo com a tua mãe e com os teus irmãos, leva esse cordeiro ao altar como é teu dever e destino dele, e pede ao Senhor que te livre de possessões e maus pensamentos, Este cordeiro morrerá no seu dia, Este é o seu dia de morrer, Mãe, os cordeiros que de ti nasceram terão de morrer, mas tu não hás-de querer que morram antes do seu tempo, Cordeiros não são homens, muito menos se esses homens são filhos, Quando o Senhor mandou a Abraão que matasse seu filho Isaac, não se percebia então a diferença, Sou uma simples mulher, não te sei responder, só te peço que abandones esses maus pensamentos, Ó minha mãe, os pensamentos são o que são, sombras que passam, e não são bons nem maus em si mesmos, só as acções é que contam, Louvado seja o Senhor que me deu um filho sábio, a mim que sou uma pobre ignorante, mas sempre te digo que essa não é ciência de Deus, Também se aprende com o Diabo, E tu estás em poder dele, Se foi pelo poder dele que este cordeiro teve a sua vida salva, alguma coisa se ganhou hoje no mundo. Maria não respondeu. Vindo da porta da cidade, Tiago aproximava-se. Então Maria levantou-se, Encontrei o meu filho e tornei a perdê-lo, disse, e Jesus respondeu, Se não o tinhas perdido já, não foi agora que o perdeste. Meteu a mão no alforje, tirou o dinheiro que juntara, de esmolas todo, É quanto tenho, Tantos meses para tão pouco, Trabalho pela comida, Muito deves tu querer a esse homem que te governa, para que com tão pouco te contentes, O Senhor é o meu pastor, Não ofendas a Deus, tu que vives com um demônio, Quem sabe, minha mãe, quem sabe, pode ser que ele seja um anjo servidor doutro deus e morando noutro céu, O Senhor disse Eu sou o Senhor, não terás outro deus além de mim, Ámen, rematou Jesus. Tomou o anho nos braços e disse, Já aí vem Tiago, adeus, minha mãe, e Maria disse, Parece até que tens mais amor a esse cordeiro que à tua família, Neste momento, sim, respondeu Jesus. Sufocada de dor e indignação, Maria deixou-o e correu ao encontro do outro filho. Não se voltou nunca para trás.
Pelo lado de fora das muralhas, agora por outro caminho, atravessando os campos, Jesus começou a longa descida para o vale de Ayalon. Parou numa aldeia, comprou, com o dinheiro que a mãe não tinha querido aceitar, algum alimento, pão e figos, leite para si e para o cordeiro, era leite de ovelha, diferenças, se as havia, não se notavam, ao menos neste caso é possível aceitar que uma mãe valha a outra. A quem estranhasse vê-lo por ali àquela hora, gastando dinheiro com um cordeiro que já devia estar morto, poderíamos responder que este rapaz, antes, fora dono de dois cordeiros, que um deles foi sacrificado e está na glória do Senhor, e que a este o rejeitou o mesmo Senhor por sofrer de defeito, uma orelha rasgada, Veja, Mas a orelha está inteira, disseram, Pois se está, eu mesmo a rasgo, diria Jesus, e, pondo o cordeiro sobre os ombros, seguiu o seu caminho. Avistou o rebanho quando já a última luz da tarde declinava, mais depressa ainda porque o céu se ensombrecera de escuras nuvens baixas. Respirava-se na atmosfera a tensão que prenuncia as trovoadas, e, para confirmá-lo, o primeiro relâmpago rasgou os ares no momento preciso em que o rebanho apareceu aos olhos de Jesus. Não choveu, era uma daquelas trovoadas que denominamos secas, que assustam mais do que as outras, porque perante elas nos sentimos realmente sem defesa, sem a cortina, para lhe chamarmos assim, e que nunca imaginaríamos protectora, da chuva e do vento, em verdade esta batalha é um enfrentamento directo, entre um céu que se rasga e atroa e uma terra que estremece e se crispa, impotente para responder aos golpes. A cem passos de Jesus, uma luz deslumbrante, insuportável, fendeu de alto a baixo uma oliveira, que acto contínuo pegou fogo, ardendo com força, tal um archote de nafta. O choque e o estrondo do trovão, como se o céu se tivesse rasgado, de uma vez, entre horizonte e horizonte, atiraram Jesus ao chão, sem conhecimento. Outros dois raios caíram, um aqui, outro além, como duas decisivas palavras, e depois, aos poucos, os trovões começaram a ouvir-se mais distantes, até se perderem num murmúrio amável, uma conversa de amigos entre o céu e a terra. O cordeiro, que saíra ileso da queda, aproximou-se, passado o susto, e veio tocar com a boca a boca de Jesus, não fungou, não farejou, foi apenas um toque, e foi, quem somos nós para duvidar, o suficiente. Jesus abriu os olhos, viu o cordeiro, depois o céu escuríssimo, como uma mão negra que sufocasse o que restava do dia. A oliveira ardia ainda. Ao mover-se, Jesus sentiu dores, mas percebeu que era senhor do seu corpo, se tal se pode dizer do que, com tanta facilidade, pode ser destruído e lançado por terra. Dificilmente, conseguiu sentar-se, e, mais pelo pressentimento do tacto do que pela certificação dos olhos, comprovou que não estava queimado nem tolhido, que não tinha qualquer membro partido, e que, exceptuando uma fortíssima zoeira na cabeça, que parecia, porém, interminável, um ronco de chofar, estava vivo e são. Puxou o cordeiro para si e, indo buscar as palavras aonde não sabia que as tinha, disse, Não tenhas medo, ele só quis mostrar-te que te poderia ter morto, se quisesse, e a mim veio dizer-me que não fui eu quem te salvou a vida, mas ele. Um lento e último trovão alastrou no espaço como um suspiro, lá em baixo a mancha alvacenta do rebanho era um oásis à espera. Lutando ainda contra os membros entorpecidos, Jesus começou a descer a encosta. O cordeiro, só por cautela preso pelo baraço, trotava ao seu lado como um cãozito. Atrás deles, a oliveira ardia. E foi à luz que ela projectava, mais que à do crepúsculo que se extinguia, que Jesus viu levantar-se na sua frente, como uma aparição, a alta figura de Pastor, envolto naquele manto que parecia não ter fim, segurando o cajado com que poderia, se o levantasse, tocar as nuvens. Disse Pastor, Sabia que a trovoada estava à tua espera, E eu devia sabê-lo, disse Jesus, Que cordeiro é esse, O dinheiro que tinha não chegava para comprar o cordeiro da Páscoa, por isso pus-me à beira da estrada a pedir, mas veio um velho e deu-me este que aqui vês, Por que não o sacrificaste, Não pude, não fui capaz. Pastor sorriu, Percebo melhor agora, esperou por ti, deixou-te vir em paz até ao rebanho para mostrar, à minha vista, a sua força. Jesus não respondeu, tinha dito ao cordeiro mais ou menos o mesmo, mas não queria, ainda mal chegara, alimentar uma conversa mais sobre as razões de Deus e os seus actos. E agora, esse cordeiro, que queres fazer com ele, Nada, trouxe-o para que ficasse com o rebanho, Os cordeiros brancos são todos iguais, amanhã já não o reconhecerás no meio dos outros, Ele conhece-me, Chegará o dia em que começará a esquecer-te, além disso vai-se cansar de ser ele sempre a procurar-te, o remédio seria marcá-lo, dar-lhe um golpe numa orelha, por exemplo, Pobre bichinho, Não sei porquê, tu também estás marcado, cortaram-te o prepúcio para se saber a quem pertences, Não é o mesmo, Não devia ser, mas é. Enquanto falavam, Pastor tinha juntado alguma lenha e agora ocupava-se a acender uma fogueira, petiscando lume. Disse Jesus, Era mais fácil ir buscar ali um ramo à oliveira que está a arder, e Pastor respondeu, Ao fogo do céu há que deixá-lo consumir-se por si mesmo. O tronco da oliveira era agora uma inteira brasa, refulgindo na escuridão, o vento arrancava-lhe faúlhas, pedaços incandescentes da casca, gravetos que voavam ardendo e logo se apagavam. O céu mantinha-se pesado, insolitamente presente. Do que era seu habitual passadio fizeram Pastor e Jesus ceia, o que levou Pastor a comentar, irônico, Este ano não comes o cordeiro pascal. Jesus ouviu e calou, mas no seu íntimo não ficou contente, o seu problema, a partir de agora, iria ser a insolúvel contradição entre comer os cordeiros e não matar os cordeiros. Então, que lhe fazemos, perguntou Pastor, e continuou, O cordeiro, marca-se, ou não se marca, Não sou capaz, disse Jesus, Dá-mo cá, eu trato disso. Com um movimento rápido e firme da faca, Pastor seccionou a ponta de uma das orelhas, depois, segurando o pequeno pedaço cortado, perguntou, Que queres que lhe faça, enterro-o, deito-o fora, e Jesus, sem pensar, respondeu, Dá-mo, e deixou-o cair no fogo. Como fizeram ao teu prepúcio, disse Pastor. Da orelha do cordeiro gotejava um sangue lento, pálido, que em pouco tempo se estancaria. Das chamas, com o fumo, espalhava-se o cheiro inebriante da tenra carne queimada. Assim, ao cabo do longo dia, depois de tantas horas passadas em demonstrações pueris e presunçosas de um querer contrário, o Senhor recebia, finalmente, o que lhe era devido, quem sabe se graças àquele majestoso e atroador aviso dos trovões e coriscos, que, pela via irresistível das causalidades profundas, teria encontrado o caminho para fazer-se obedecer pelos renitentes pastores. Caiu a última gota de sangue do cordeiro, e a terra logo a bebeu, porque não estaria bem, de tão disputado sacrifício, perder-se o mais precioso.
Ora, foi este, precisamente, o animal, já transformado pelo tempo numa vulgaríssima ovelha, apenas distinta das outras em faltar-lhe a ponta duma orelha, que, passados uns três anos, veio a perder-se em umas agrestes paragens ao sul de Jericó, lindando com o deserto. Num tão grande rebanho como este, uma ovelha a mais ou a menos parece que tanto faz, mas este gado, se ainda precisamos lembrá-lo, não é como os outros, tão-pouco os pastores têm semelhanças com os que conhecemos de ver ou ouvir dizer, pelo que não se deve estranhar que Pastor, olhando de um cômoro sobranceiro, desse pela falta duma cabeça de gado sem que, para isso, tivesse tido que contá-las todas. Chamou Jesus e disse-lhe, A tua ovelha não está no rebanho, vai procurá-la, e como Jesus, em resposta, não perguntou, E como sabes tu que a ovelha é a minha, não o perguntaremos nós também. O que, sim, agora importa é vermos como, apenas entregue à sua pouca ciência dos lugares e à falível intuição de caminhos onde ninguém os tinha traçado antes, vai Jesus orientar-se neste redondo completo do horizonte. Vindo eles das bandas férteis de Jericó, onde não quiseram demorar-se por mais estimarem a tranquilidade de um contínuo vaguear do que o fácil comércio das gentes, o mais provável seria perder-se a pessoa, ou a ovelha, sobretudo se de caso pensado o tinham feito, em sítios onde a canseira de buscar alimento, por excessiva, não fosse agravante da procurada solidão. Por esta lógica, estava claro que a ovelha de Jesus, de modo dissimulado, como quem não quer a coisa, se tinha deixado ficar para trás, devendo estar agora a retouçar nos verdes da fresca margem do Jordão, à vista de Jericó, por maior segurança. Porém, a lógica não é tudo na vida, e não é raro que justamente o previsível, que o é por ser o remate mais plausível duma sequência, ou porque, simplesmente, havia sido já anunciado antes, não é raro, dizíamos, que o previsível, levado por razões que só ele conhece, acabe por escolher, para enfim revelar-se, uma conclusão por assim dizer aberrante, quer quanto ao lugar, quer quanto à circunstância. Se este é o caso, então deverá o nosso Jesus procurar a sua extraviada ovelha, não naqueles viçosos prados da retaguarda, mas na árida e requeimada secura do deserto que tem pela frente, de nada servindo aqui a fácil objecção de que a ovelha não teria decidido perder-se para ir morrer de fome e de sede, primeiro, porque ninguém sabe o que se passa realmente no cérebro duma ovelha, segundo, considerando a já referida imprevisibilidade a que o previsível recorre algumas vezes. Ao deserto irá pois Jesus, para lá se encaminha já, sem que Pastor se tenha surpreendido com a resolução, antes, calado, a aprovou, num lento e solene movimento da cabeça que, estranha ideia, podia ser também tomado como um aceno de despedida.
Este deserto de aqui não é uma daquelas largas, longas e conhecidas extensões de areia que o mesmo nome usam. Este deserto de aqui é mais um mar de secas e duras colinas arenosas, encavaladas umas nas outras, criando um labirinto inextricável de vales, no fundo dos quais mal sobrevivem umas raras plantas que parecem só feitas de espinhos e cerdas, e a que talvez pudessem atrever-se as sólidas gengivas duma cabra, mas que rasgariam, ao primeiro contacto, os beiços sensíveis duma ovelha. Este deserto de aqui é mais assustador do que os formados apenas de lisas areias ou daquelas dunas instáveis que mudam constantemente de forma e de feitio, neste deserto cada colina oculta e anuncia a ameaça que nos espera na colina seguinte, e, quando a esta chegamos, tremendo, logo sentimos que a ameaça, a mesma, passou para trás das nossas costas. Aqui, o grito que dermos não responderá, pelo eco, à voz que o atirou, o que ouviremos, sim, em resposta, é as próprias colinas gritando, ou o desconhecido, o não sabido, que nelas teima em esconder-se. Eis que, pois, munido somente do seu cajado e do alforje, Jesus entrou no deserto. Poucos passos adiante, mal acabara de cruzar o limiar do mundo, percebeu, subitamente, que as velhas sandálias que haviam sido de seu pai se lhe estavam desfazendo debaixo dos pés. Muito tinham durado, ainda assim, pela virtude remendeira das tombas nelas lançadas assiduamente, às vezes in extremis, mas agora as artes cordoeiras e sapateiras de Jesus já não podiam acudir a sandálias que tantos e tantos caminhos tinham andado e tanto suor amassado em pó. Como se estivessem obedecendo a uma ordem, esgarçavam-se os últimos fios, soltavam-se, frouxas, as tiras, partiam-se sem remédio os atilhos, em menos tempo do que o que levou a contar ficaram descalços os pés de Jesus, sobre os restos. Lembrou-se o rapaz, chamamos-lhe assim por hábito adquirido, que aos dezoito anos, sendo judeu, mais é homem feito e refeito do que mocinho adolescente, lembrou-se Jesus das suas antigas sandálias, transportadas todo este tempo no alforje como uma relíquia sentimental do passado, e, movido por uma vã esperança, tentou calçá-las. Razão tivera Pastor quando lhe disse, Pés que crescem não voltam a encolher, a Jesus custava-lhe a entender que alguma vez os seus pés tivessem podido caber nestas sandálias minúsculas. Estava descalço frente ao deserto, como Adão quando o expulsaram do paraíso, e, tal como ele, hesitou antes de dar o primeiro doloroso passo sobre o torturado chão que o chamava. Mas depois, sem ter-se perguntado por que o ia fazer, talvez só porque de Adão se lembrara, deixou cair o alforje e o cajado, e, levantando a túnica pela fímbria, fê-la sair por cima da cabeça num só gesto, ficando, como Adão, nu. Aqui, onde está, já não o vê Pastor, nenhum borrego curioso o seguiu, do ar veem-no apenas os poucos pássaros que por esta fronteira ainda se atrevem, e os bichos da terra, que são formigas, alguma escolopendra, um lacrau que, de susto, levanta o aguilhão venenoso, estes não têm memória de homem nu nestes sítios, nem sabem para que serve. Se o perguntassem a Jesus, Por que te desnudaste, talvez ele respondesse de uma maneira incompreensível para o entendimento de heminópteros, miriápodes e aracnídeos, Ao deserto só é possível ir nu. Nu, dizemos nós, apesar dos espinhos que rasgam a pele e arrepelam os pelos do púbis, nu apesar das arestas que cortam e das areias que esfolam, nu apesar do sol que queima, reverbera e deslumbra, nu, enfim, para procurar a ovelha perdida, aquela que nos pertence porque com a nossa marca a marcamos. O deserto abre-se aos passos de Jesus, para logo se fechar, como se lhe cortasse o caminho de retirada. O silêncio ressoa nos ouvidos com o som de um búzio, daqueles que vêm mortos e vazios à praia e ali se deixam ficar, a encherem-se do vasto rumor das ondas, até que alguém passa e os encontra e, levando-os devagar ao ouvido, põe-se à escuta e diz, O deserto. Os pés de Jesus sangram, o sol afasta as nuvens para feri-lo de espada nos ombros, os espinhos cortam-lhe a pele das pernas como unhas sôfregas, as cerdas chicoteiam-no, Ovelha, onde estás, grita ele, e as colinas passam palavra, Onde estás, onde estás, dissessem elas isto apenas e saberíamos, enfim, o que é o eco perfeito, mas o longo e remoto som do búzio sobrepõe-se, murmurando, Deeeeeeuuus, Deeeeeeuuus, Deeeeeeuuus. Então, como se de súbito as colinas se tivessem arredado do seu caminho, Jesus saiu do labirinto dos vales para um espaço circular liso e arenoso onde, no centro exacto, viu a ovelha. Correu para ela, tanto quanto lho permitiam os pés feridos, mas uma voz deteve-o, Espera. Uma nuvem da altura de dois homens, que era como uma coluna de fumo girando lentamente sobre si mesma, estava diante dele, e a voz viera da nuvem. Quem me fala, perguntou Jesus, arrepiado, mas adivinhando já a resposta. A voz disse, Eu sou o Senhor, e Jesus soube por que tivera de despir-se no limiar do deserto. Trouxeste-me aqui, que queres de mim, perguntou, Por enquanto nada, mas um dia hei-de querer tudo, Que é tudo, A vida, Tu és o Senhor, sempre vais levando de nós as vidas que nos dás, Não tenho outro remédio, não podia deixar atravancar-se o mundo, E a minha vida, querê-la para quê, Não é ainda tempo de o saberes, ainda tens muito que viver, mas venho anunciar-te, para que vás bem dispondo o espírito e o corpo, que é de ventura suprema o destino que estou a preparar para ti, Senhor, meu Senhor, não compreendo nem o que dizes nem o que queres de mim, Terás o poder e a glória, Que poder, que glória, Sabê-lo-ás quando chegar a hora de te chamar outra vez, Quando será, Não tenhas pressa, vive a tua vida como puderes, Senhor, eis-me aqui, se nu me trouxeste diante de ti, não demores, dá-me hoje o que tens guardado para dar-me amanhã, Quem te disse que tenciono dar-te alguma coisa, Prometeste, Uma troca, nada mais que uma troca, A minha vida por não sei que pago, O poder, E a glória, não me esqueci, mas se não me dizes que poder, e sobre quê, que glória, e perante quem, será como uma promessa que veio cedo de mais, Tornarás a encontrar-me quando estiveres preparado, mas os meus sinais acompanhar-te-ão desde agora, Senhor, diz-me, Cala-te, não perguntes mais, a hora chegará, nem antes nem depois, e então saberás o que quero de ti, Ouvir-te, meu Senhor, é obedecer, mas tenho de fazer-te ainda uma pergunta, Não me aborreças, Senhor, é preciso, Fala, Posso levar a minha ovelha, Ah, era isso, Sim, era só isso, posso, Não, Porquê, Porque ma vais sacrificar como penhor da aliança que acabo de celebrar contigo, Esta ovelha, Sim, Sacrifico-te outra, vou ali ao rebanho e volto já, Não me contraries, quero esta, Mas repara, Senhor, que tem defeito, a orelha cortada, Enganas-te, a orelha está intacta, repara, Como é possível, Eu sou o Senhor, e ao Senhor nada é impossível, Mas esta é a minha ovelha, Outra vez te enganas, o cordeiro era meu e tu tiraste-mo, agora a ovelha paga a dívida, Seja como queres, o mundo todo pertence-te e eu sou o teu servo, Sacrifica então, ou não haverá aliança, Mas vê, Senhor, que estou nu, não tenho cutelo nem faca, estas palavras disse-as Jesus cheio de esperança de poder ainda salvar a vida da ovelha, e Deus respondeu-lhe, Não seria eu o Senhor se não pudesse resolver-te essa dificuldade, aí tens. Palavras não eram ditas, apareceu aos pés de Jesus um cutelo novo, Vá, despacha-te, tenho mais que fazer, disse Deus, não posso ficar aqui eternamente. Jesus empunhou o cutelo, avançou para a ovelha que levantava a cabeça, hesitante em reconhecê-lo, pois nunca o tinha visto nu, e, como é por de mais sabido, o olfacto destes animais não vale grande coisa. Estás a chorar, perguntou Deus, Tenho os olhos sempre assim, disse Jesus. O cutelo subiu, tomou o ângulo do golpe, e caiu velozmente como o machado das execuções ou a guilhotina que ainda falta inventar. A ovelha não soltou um som, apenas se ouviu, Aaaah, era Deus suspirando de satisfação. Jesus perguntou, E agora, posso-me ir embora, Podes, e não te esqueças, a partir de hoje pertences-me, pelo sangue, Como devo ir-me de ti, Em princípio, tanto faz, para mim não há frente nem costas, mas o costume é ir recuando e fazendo vênias, Senhor, Que enfadonho és, homem, que temos mais agora, O pastor do rebanho, Que pastor, O que anda comigo, Quê, É um anjo, ou um demônio, alguém que eu conheço, Mas diz-me, é anjo, é demônio, Já to disse, para Deus não há frente nem costas, passa bem. A coluna de fumo estava e deixou de estar, a ovelha desaparecera, só o sangue ainda se percebia, e esse procurava esconder-se na terra.
Quando Jesus chegou ao campo, Pastor olhou-o fixamente e perguntou, A ovelha, e ele respondeu, Encontrei Deus, Não te perguntei se encontraste Deus, perguntei-te se achaste a ovelha, Sacrifiquei-a, Porquê, Deus estava lá, teve de ser. Com a ponta do cajado, Pastor fez um risco no chão, fundo como rego de arado, intransponível como uma vala de fogo, depois disse, Não aprendeste nada, vai.