sexta-feira, 12 de julho de 2013

#Resenhando: 03 obras de Fiódor Dostoiévski

 
 
O #Resenhando de hoje traz 03 obras do escritor russo Fiódor Dostoievski: A Senhoria, O Bobók e O Crocodilo. As resenhas têm como base os livros lançados pela editora 34 e traduzidos por Paulo Bezerra, Boris Schnaiderman e Fátima Bianchi.

 
 
 
1° A Senhoria
 
 
Uma novela que “não se baseia no que é o herói e no lugar que ele ocupa na vida, mas antes no que ele não é e que, do ponto de vista de qualquer realidade já existente, não é predeterminado nem inesperado” (p.119)

 Depois da acalorada recepção do romance de estreia "Gente Pobre" e da acolhida sôfrega de "O Duplo", Dostoievski lança em 1847 esta pequena novela que, à época, seria muito mal recebida tendo em vista o considerável sucesso do autor com seu primeiro romance. Fugindo do Realismo vigente na época de seu lançamento, "A Senhoria" enquadra-se no movimento Romancista que seria muito bem trabalhado a partir da geração dostoievskiana. O personagem central desta novela, Ordínov, é um esboço do que um dia seria o "Homem do Subsolo" de Dostoievski: um jovem alheio ao mundo, apaixonado pelo saber e totalmente introspecto. Trata-se de um intelectual inicia a novela sem passado, encerrando-a sem qualquer perspectiva do que se chame "um futuro": trata-se de um sonhador, como tantos outros heróis desta época da Literatura Russa. A exemplo de tantos outros personagens do autor, Ordínov confina-se num pequeno quarto onde vive sozinho com sua paixão pelos livros e pela Literatura. É ao lado deste personagem (simplório, numa primeira visão) que o narrador se posiciona, deixando de lado a onipotência que lhe cabe, fazendo com que o leitor receba a história filtrada pela visão de mundo do próprio personagem - que por vezes confunde-se com o narrador.

O início da novela é marcado pelo despertar do próprio personagem, que pela primeira vez em meses descobre-se totalmente alheio e, por conta disso, resolve que deve sair do pequeno quarto em que vive para reintegrar-se à sociedade: esta reintegração envolve não somente um lugar para morar, mas também um lugar no mundo fora de si. Depois de muito vagar pelas ruas de Petersburgo, o jovem Ordínov depara-se com um casal nada convencional: Katierina uma jovem senhora, e seu marido, Múrin, um mujique. O encontro entre Ordínov e este casal acontece numa velha Igreja e, em decorrência deste encontro (não apenas de pessoas, mas também de mundos, visto que o casal é o extremo contraponto do jovem não apenas socialmente, mas também moral e intelectualmente; portanto, o casal representa à Ordínov o mundo que nunca lhe pertenceu) o jovem segue este casal e, após um segundo encontro, reforçado por seu aspecto desprotegido física e emocionalmente, e por sua "nudez" social, o casal aceita Ordínov como seu inquilino.

 Ao longo da narrativa (muito bem conduzida ora pelo próprio personagem, ora pelo narrador), percebemos que ao mesmo tempo em que a idealização de Katierina por Ordínov aumenta, o senso de realidade do rapaz diminui ainda mais e o que era para ser uma reaproximação com o mundo, isola-o ainda mais, estendendo seu círculo social apenas para sua senhoria. Além disso, notamos como o destemido Ordínov torna-se covarde diante de outras personagens num processo de transformação do homem pelo próprio Homem – eis o ponto básico de toda a história, o nó que ata os fios da meada dostoievskiana de uma forma muito sutil.

Os laços frágeis que unem o herói aos demais personagens vai sendo aos poucos desfeitos, e tem seu clímax quando, ao final da novela, o jovem Ordínov “desperta” do sonho que o perseguira e cai em si pela primeira vez, e percebe-se sozinho no mundo. A luta contra a solidão transfigura-se na principal tragédia do personagem logo ao meio da novela – tal embate encerra a novela de maneira abrupta, despertando o próprio leitor dos sonhos do sonhador dostoievskiano.

Os seis capítulos que compõe a obra, distribuídos por duas partes, introduzem o leitor numa atmosfera que o impossibilita separar a realidade da fantasia do próprio personagem central. Apesar de ser de estrutura relativamente fácil em comparação a outras obras de Dostoievski que fazem parte de cânone literário universal, "A Senhoria" requer uma leitura sempre atenta aos liames narrativos que ligam realidade e sonho; isso faz com que, para aqueles que se interessam por Dostoievski, este seja um livro obrigatório, tanto para os já adeptos aos interstícios da alma humana e dostoievskiana, quanto para os leitores de primeira viagem.

 


“Sou exposto perante todos e, ainda que escondido, estou em primeiro lugar. Passarei a instruir a multidão ociosa. Ensinando pela experiência, apresentarei com a minha pessoa um exemplo de grandeza e espírito conformado perante o destino! Serei, por assim dizer, uma cátedra da qual hei de instruir a humanidade. São preciosas mesmo as informações sobre o mostro por mim habitado. E, por isto, não só não maldigo o caso que me aconteceu, mas tenho até sólidas esperanças na mais brilhante das carreiras”.

(O Crocodilo)


Emerge das águas tumultuosas da Rússia dominada por Alexandre II a cabeça voraz do crocodilo dostoievskiano. O crocodilo do aristocratismo, da modernidade, do antiliberalismo e, principalmente, do Capitalismo europeu que inundava o governo Czarista no qual Dostoievski viveu e se inspirou para criar esta comédia de valores, valendo-se do simbolismo de uma linguagem tão perigosa quanto o personagem central do texto que é – o crocodilo. Eis uma crítica ao Capitalismo que se equipara ao futuro “Revolução dos Bichos” de Orwell.

A história é narrada pela voz inflamada e incisiva do altamente crítico Siemión Siemiônitch, que vai a uma luxuosa galeria peterburguense em companhia de um casal amigo (Ivan Matviéitch e sua mulher) onde está em exposição um crocodilo que pertence a um alemão sovina – que simboliza, ao que parece, a aristocracia.  Ivan – a pobre massa trabalhadora, o proletariado – é inesperada e rapidamente engolido (literalmente) pelo crocodilo alemão – o Capitalismo europeu. A partir daí ficamos sabendo das reações das demais pessoas, e da sociedade como um todo, ao insólito acontecimento; e percebemos, com espanto, que não há preocupações quanto ao proletariado, representado por Ivan, (até mesmo de sua própria parte), e sim quanto ao próprio sistema capitalista, representado pelo crocodilo – o vilão inevitável da história.

O tom fantástico, irônico e metafórico usado tanto na estrutura narrativa, quanto na construção dos próprios diálogos e personagens, lembra muito o que seria usado na Metamorfose kafkiana: tudo o que preocupa o proletariado (em Kafka é Gregor, aqui Ivan) engolido pelo capitalismo é a opinião de seus superiores num primeiro momento; com o correr do texto, porém, as preocupações do desafortunado Ivan concentram-se em sua futura fama e na possibilidade de reconhecimento social – estes sonhos impossíveis desviam sua atenção ao que verdadeiramente importa: escapar do crocodilo, driblar-se das garras do “monstro capitalista”. Este sonho é incentivado pela aristocracia, o alemão dono do crocodilo, que já visualiza as progressões financeiras geradas pelo “acidente” na galeria: com certeza a notícia se espalharia e atrairia um maior número de clientes para visitar o crocodilo.

Ao mesmo tempo em que sonha com um futuro brilhante, Ivan tenta lidar com o fato de que o próprio sistema Capitalista não o aceita facilmente: há em determinada passagem uma metáfora clara à exclusão do sistema por conta dos custos onerosos aos processos produtivos – tal exclusão ou, usando um termo mais adequado, intolerância é representada pela ausência de um estômago ao animal: “Considerando que, mesmo para o crocodilo, é difícil digerir uma pessoa como eu, ele deve sentir [...] certo peso no estômago – que ele, diga-se de passagem, não tem”.

Mais do que uma comédia de valores, impregnada de sarcasmo e senso crítico, “O Crocodilo” pode (e deve) ser visto como um texto histórico que serve como um relato político-social importante para o estudo sociológico da Rússia do século XIX. Aqui, traduz-se a marca de um povo demasiado orgulhoso para aceitar as mudanças que, gradualmente, vinham acontecendo em sua pátria. Tal aspecto seria ainda mais reforçado pelo texto que se segue a este: “Notas de Inverno Sobre Impressões de Verão”, que é uma espécie de diário de bordo onde Dostoievski registra suas impressões de vários países europeus que visitou em 1862 – uma opinião crítica, de um homem que preserva seus próprios valores e suas próprias culturas em detrimento da tão estimada cultura ocidental. Por isso e muitos outros aspectos os dois textos entrelaçam-se e tornam-se complementares, fazendo com que ambas as narrativas sejam tão atuais hoje como foram na data de seu lançamento.
 

"Não me ofendo, sou um homem tímido; e mesmo assim até de louco já me fizeram. (...) Quanto à loucura, no ano passado muita gente foi registrada como louca em nosso país. E com estilo: 'Com um talento diz que tão original... e vejam o que acabou acontecendo... aliás, há muito tempo isso devia ter sido previsto".
(O Bobók)
 
 
Em 1873 o olhar crítico, ácido e sarcástico de Dostoievski voltara-se aos críticos (em especial Bielinski) de seu livro do ano anterior, "Os Demônios" - livro que gerou várias críticas negativas ao então já consolidado escritor. Indubitavelmente o ano de 1872 não foi um dos melhores na vida literária de Dostoievski, isso graças às alusões de vários críticos de que seu livro fora escrito por uma pessoa visivelmente perturbada, desequilibrada, louca. Os ecos destas palavras são ouvidos da boca do personagem deste livro, "O Bobók" do ano seguinte: o livro nos traz um escritor falido que, segundo suas próprias palavras, fora feito até de louco no último ano. O pequeno conto publicado em sua coluna Diário de um Escritor no jornal russo Gradjanin foi o modo como Fiódor respondeu (à altura) aos críticos.
 
Cansado da rejeição e procurando um modo de se divertir, o escritor que narra a história (trata-se de uma narrativa em primeira pessoa, o que deixa o texto ainda mais pessoal) acaba vendo-se num cemitério. Há aqui algo de muito humor negro: a diversão é encontrada num lugar onde as pessoas escondem, ou tentam esconder, "muita alegria e animação sincera" (O Bóbók p.14). Logo no início da narrativa, Dostoievski nos introduz à vida de seu alter ego da maneira mais apropriada: através da própria construção de um monólogo interior totalmente insano, quase beirando o delírio, onde o personagem joga ao leitor informações aparentemente desconexas. Depois disso vemos o narrador já no cemitério onde, diz, "ajudei a com minhas próprias mãos a levar o caixão da igreja para o túmulo (...) comi uns salgadinhos e tomei um trago" - estranhamente, é no cemitério onde há alegria (fato este que fica ainda mais claro pelo que se segue).
 
Depois de vagar pelo cemitério, o narrador senta-se numa das tumbas e entra num estado de semi inconsciência que leva o leitor a questionar a sanidade do personagem. Mal se pôs a dormir (ou a divagar) o narrador ouve vozes abafadas provenientes dos túmulos ao seu redor: e a partir deste momento, passa a ouvir os mortos conversando. Longe de ser uma experiência transcendental, o relato de Bobók é carregado de sarcasmo e bom  humor; os mortos, a princípio pudicos, não percebem sua atual situação (chegando ao absurdo de preocuparem-se com o estado de saúde uns dos outros), até o momento em que um filósofo - ironicamente chamado Platão - traduz em miúdos o que está ocorrendo: por inércia, os mortos vivem. Com isso em mente, os ditos finados desprendem-se das amarras sociais e nos mostram que o além é, por vezes, muito mais animado do que o mundo dos vivos. Mortos enfim, as pessoas percebem que "Vida" é apenas um sinônimo para a grande ilusão, e que a verdadeira alegria está no fato de estarem, finalmente, mortos.
 
A medida que os próprios mortos desprendem-se de seus papeis sociais, o narrador (e o próprio leitor, no meu caso) passa a se questionar sobre o que é a sociedade e qual o seu lugar dentro dela. Esse aspecto faz do conto uma narrativa que alia humor e conscientização a um só tempo.
 
Como tudo é alegórico no mundo de Dostoievski, o leitor pode captar a mensagem por trás dos mortos: o tempo dos críticos (representados pelos mortos, sempre criticando a sociedade da qual anseiam por fazer parte) já passou, e se eles continuam ligados à sociedade, fazem-no tão somente pela inércia de não saber fazer nada além do que sempre fizeram.
 
Bóbok, a exemplo de O Crocodilo, mostra ao leitor uma faceta humorística (sem fugir da postura crítica que consagrou o autor) e de cunho altamente jornalístico dentro da obra e da estética dostoievskiana. Faceta esta pouco conhecida pelos leitores habituais - e a que deveria ser obrigatória a todos nós.
 
 
LINK PARA O VÍDEO NO YOUTUBE: http://youtu.be/nE4P8euxW2Q

Nenhum comentário:

Postar um comentário