O cenário que está por trás de
tudo é o da cidade tipicamente brasileira com todos os seus contrários. O tempo
é simplesmente o tempo, sem pararmos num ponto específico. Tudo o que sabemos
sobre a passagem das horas é que em todos os lares descai as pálpebras
primeiras do dia e lá pelas bandas do horizonte nasce o sol.
A mãe cristã acorda pela manhã e
dá pela falta do filho. Suspira – precisa ainda dalguns momentos para se
lembrar daquilo que jamais vai esquecer: o filho havia sido morto há tempos. Então
a mãe cristã ora ao senhor deus para que ele, em sua grandessíssima
omnipotência, mude a vida do rapaz que matara o filho. Depois vai à vida e prepara
o almoço dos outros filhos, todos filhos dum mesmo deus, frutos dum mesmo
ventre germinado.
A mãe umbandista acorda pela manhã
e dá pela falta do filho. Suspira – precisa ainda dalguns momentos para se
lembrar daquilo que jamais vai esquecer: o filho havia desencarnado há tempos,
mas não duma maneira ao natural; quis o destino que o filho fosse morto por um
rapaz de mesma idade e mesma condição social. Então a mãe umbandista reza ao pai oxalá para
que ele, em sua limitada omnipotência, mude a vida do rapaz que matara o filho.
Depois vai à vida e prepara o almoço dos outros filhos, lídia filha de iansã, roberto
filho de oxóssi, rosa filha de nanã, e pedro filho de oxum. Todos frutos dum
mesmo ventre germinado. Todos filhos do mundo inteiro, filhos dos raios, das
matas, dos lamaçais e dos rios.
A mãe ateia acorda pela manhã e
dá pela falta do filho. Suspira – precisa ainda dalguns momentos para se
lembrar daquilo que jamais vai esquecer: o filho havia sido morto há tempos. Então
a mãe ateia vai à vida, que não há deus a quem pedir auxílio – e se há um deus,
está dormindo no eterno sono da morte. Prepara a própria vida e a vida dos
filhos, todos ateus, todos filhos dum mesmo ventre germinado.
A mãe muçulmana acorda pela manhã
e dá pela falta do filho. Suspira com vagar para que o marido não acorde e a
repreenda – precisa ainda dalguns momentos para se lembrar daquilo que jamais
vai esquecer: o filho havia sido morto há tempos. Então a mãe muçulmana faz a
primeira das orações do dia e pranteia seu eterno lamento em ser mulher e à margem
da vida e das graças de alá. Depois disso a mãe muçulmana não ora por mais
nada, orar é coisa destinada apenas aos homens, se for do parecer do marido ele
mesmo orará depois pelo assassino do filho, é direito apenas dele ter tão
íntima relação com alá. Só então vai à vida, coloca a burca para que não se-lhe
chegue às vistas do mundo as próprias vistas cansadas. Prepara a vida dos
filhos, todos homens, com a graça de alá que não passarão pela tristeza que é
ser mulher e mãe. Todos os seus filhos são filhos de seu ventre imundo e
feminino.
A mãe cristã acorda pela manhã e
dá pela falta do filho. Suspira – precisa ainda dalguns momentos para se
lembrar daquilo que com sorte chegará um dia a esquecer: o filho matara outro
rapaz há tempos. Então a mãe cristã ora ao senhor deus para que ele, em sua
infinita bondade, possa perdoar o filho tanto quanto havia-o perdoado aquela
primeira mãe cristã que, com o cristão amor, perdoara e orara pelo filho desta
segunda mãe cristã. Depois vai à vida e cuida para que os outros filhos não
saiam pelo caminho da tentação como aconteceu ao primeiro.
A mãe umbandista recebe os filhos
no breu da noite. Veste-os, cuida-os. Todos indo aos seus cultos, uns de verde
vão fazer vênias a oxóssi, outros vão de roxo a nanã, outros de amarelo ou
vermelho a oxum e iansã. Ela própria veste já suas guias de conta e segue em
seu cambaleante andar subindo o morro rumo ao terreiro. Em cada encruza uma
vela que se acende, uma reverência que é feita. Já lá em cima ouve dos filhos
os sinais do amor daqueles filhos duma primeira mãe cristã, todos os cristãos
são cheios do amor de deus. Chamaram-te de feiticeiro de novo, pergunta a mãe
umbandista ao filho, que responde um sim sem palavras, que para algumas coisas
ainda nos faltam palavras para descrever, como é o caso deste sentimento que
inunda o menino, misto de raiva, tristeza e vergonha. É certo que quando
chegarem estas pessoas ao seu batuque vão rezar à mãe iemanjá para que ela, nas
dobras de suas ondas, leve ao fundo do mar de cada um toda a imperfeição dos
sentimentos.
A mãe ateia recebe os filhos no
breu da noite. Veste-os, cuida-os. Todos indo à mesa comer, discorrer sobre
todas as maravilhas do dia que já morre para além das janelas fechadas. A mãe
ateia não crê em deus, e em deus não creem seus filhos. Se um dia vão crê-lo,
não sabemos nós e não sabem estas pessoas. Tudo o que sabemos são uns quantos
murmúrios que um dos filhos diz à mãe ateia. E disseram que vai ao inferno
quando morrer por não crer em deus, pergunta a mãe, e o filho, tão confuso
quanto aquele macumbeiro que deixamos naquele alto de morro, murmura o mesmo sim;
é pena não haver por aqui qualquer iemanjá que possa carregar ao mar tanta
tormenta. A mãe ateia abraça os filhos e ama-os, pois há amor mesmo quando não
há deus.
A mãe muçulmana espera que os
filhos cruzem as portas para poder pedir licença a eles para ir à cozinha e
comer sua parte ao fim do jantar. Depois disso ouve do mais novo, que ainda não
sabe que com as mulheres não se deve falar demasiado, que não há na escola quem
o queira por amigo. É por causa dos teus hábitos, pergunta a mãe. O mesmo
murmúrio, é sorte ter esta gente qualquer alá que lhes valha. A mãe muçulmana
embala o filho no meio da noite. É sua única amiga nesta vida. Por sorte que o
deus cristão é tão cheio de amor que faz com que seus filhos sobejem amor a
todos.
Todas essas mães deitam-se em
suas camas. Para além do fato de serem cristãs ou ateias ou umbandistas ou
muçulmanas, são todas mães. Todas repletas da benção do amor e do perdão –
todas perdoam-se umas às outras. Umas perdoam sem que haja para isso qualquer
deus vigiando cada passo do céu, outras amam porque a repressão as ensinou que
a melhor maneira de aproximar é não afastando e que somente o amor não afasta
nada. E outras ainda amam porque é tudo o que lhes resta. Resta ao mundo chegar
a própria conclusão: de todos os amores, qual será o maior e o mais puro? Amar e
perdoar não deve ser obrigação, deve ser exercício diário e cotidiano: amar e
perdoar não apenas o igual, saber que o amor é a soma de duas laranjas e três
maçãs. Amar também é a dor do mundo.
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