É lugar comum entre todos, desde
a mais ignorante até a mais culta de todas as pessoas, que a bondade é algo
advinda ou que não seria possível fora dos ditames e dos padrões religiosos. Se
não for realmente uma opinião unânime (e espero que não seja), estamos bem
próximos de que tal pensamento seja tido como verdade universal. Quem por aí é
declaradamente ateu ou agnóstico ou simplesmente diz que não tem uma religião
definida sabe muito bem do que estou falando: basta dizer “sou ateu/agnóstico”
e as mães puxam os filhos de perto do indivíduo, as avós se escandalizam, os
tios balançam a cabeça em desaprovação e as mães dos colegas soltam,
invariavelmente, uma frase do tipo “ah, eu sabia! É por isso que o meu filho
está usando drogas, fica andando com um ateu!”.
Este tipo de pensamento se
assemelha muito à ideia que nossos pais e avós (pergunte para os seus) tinham
dos comunistas em suas tenras infâncias: ser comunista era ser aliado do
satanás, assim como ser ateu atualmente. Só para citar um exemplo, podemos puxar
pela memória a célebre frase de José Luiz Datena – “isso (assassinato) é coisa
de quem não tem Deus no coração” – e ver como a imagem do ateu está sendo muito
mal difundida pelo nosso país (e pelo mundo afora).
Isso ao mesmo tempo me entristece
e me assusta, por dois motivos. O primeiro é que pensar assim mostra o tamanho
de um preconceito mais do que ridículo em uma sociedade que deveria ser
civilizada, mas não é. Esqueçam o ódio aos católicos, evangélicos, testemunhas
de Jeová, espíritas, umbandistas, satanistas: em matéria de ódio, não há quem
tome o pódio dos ateus, que, quando não são odiados por todos, são odiados pela
maioria. O segundo motivo é ainda pior do que o primeiro e já vou dizer por
quê. Muitas vezes escuto uma frase parecida com “não é possível ser bom sem ter
Deus no coração”. Isso me leva a crer que as pessoas não são boas por serem
boas, mas sim por terem medo de um deus que elas deveriam amar como algo bom. Sem
ter deus você não pode ter bondade, logo não pode fazer coisas boas, portanto,
está condenado ao inferno. Não tem nada de errado com o raciocínio, é como
pensar em 2+2: a resposta automática será o 4 – a menos que você não tenha tido
acesso a educação de qualidade.
As pessoas não são boas pela
bondade, mas por terem medo da ira de deus; da mesma maneira como um cachorro
não vai dar a pata sem ter a certeza de que vai ganhar algo em troca: para os
cães biscoitos ou afagos, para os fiéis o céu. Que coisa horrível! Como somos
vendidos!, presos numa rede que nós mesmos tecemos sem darmo-nos por isso! Me
decepciona saber que a única razão para a bondade é agradar a deus. É terrível
saber que a bondade foi diluída numa falsa virtude, num falso moralismo
disfarçado de caridade. Os atos gratuitos estão sendo submergidos pela fé:
trata-se duma jogatina de deus – nós fazemos o que seria bom, não para o
próximo, mas para deus. “Faça pelo próximo e Deus lhe dará em dobro”, todos já
ouvimos algo do tipo: não estamos sendo bons, estamos sendo vigaristas,
tratantes, sem ao menos nos dar por isso. Portanto, a única bondade
verdadeiramente válida é a vinda do descrente, que, se ajuda, não é por um
paraíso na eternidade, mas por um sorriso de alguns segundos.
E se religião é sinônimo de
bondade, e as pessoas não conseguiriam ser boas sem Deus, pergunto-me (e sugiro
que você mesmo se pergunte): como é possível que, mesmo havendo um deus e a
esperança em um paraíso, o ser humano possa continuar sendo ruim? E se você
pratica atos de bondade somente para ficar “de boa” diante de deus, eu tenho um
recado para lhe dar: você não é bom; muito pelo contrário, não passa de um
medroso.
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