quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Centauro (Conto)



“Quando vires um centauro, acredita nos teus olhos”

O cavalo parou. Os cascos sem ferraduras firmaram-se nas pedras redondas e resvaladiças que cobriam o fundo quase seco do rio. O homem afastou com as mãos, cautelosamente, os ramos espinhosos que lhe tapavam a visão para o lado da planície. Amanhecia já. Ao longe, onde as terras subiam, primeiro em suave encosta, como tinha lembrança se eram ali iguais à passagem por onde descera muito ao norte, depois abruptamente rasgadas por um espinhaço basáltico que se erguia em muralha vertical, havia umas casas àquela distância baixíssimas, rasteiras, e umas luzes que pareciam estrelas. Sobre a montanha, que barrava todo o horizonte daquele lado, via-se uma linha luminosa, como se uma pincelada subtil tivesse percorrido os cimos, e, úmida, aos poucos se derramasse pela vertente. Dali viria o sol. O homem largou os ramos com um movimento descuidado e arranhou-se: soltou um ronco inarticulado e levou o dedo à boca para chupar o sangue. O cavalo recuou batendo as patas, varreu com a cauda as ervas altas que absorviam os restos da umidade ainda conservada na margem do rio pelo abrigo que os ramos pendentes faziam, cortina àquela hora negra. O rio estava reduzido ao fio de água que corria na parte mais funda do leito, entre pedras, de longe em longe aberta em charcos onde sobreviviam e ansiavam peixes. Havia no ar uma umidade que prenunciava chuva, tempestade, decerto não nesse dia, mas no outro, ou passados três sóis, ou na próxima lua. Muito lentamente, o céu aclarava. Era tempo de procurar um esconderijo, para descansar e dormir.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Embargo (Conto)

 
 
 


Acordou com a sensação aguda de um sonho degolado e viu diante de si a chapa cinzenta e gelada da vidraça, o olho esquadrado da madrugada que entrava, lívido, cortado em cruz e escorrente de transpiração condensada. Pensou que a mulher se esquecera de correr o cortinado ao deitar-se, e aborreceu-se: se não conseguisse voltar a adormecer já, acabaria por ter o dia estragado. Faltou-lhe, porém, o ânimo para levantar-se, para tapar a janela: preferiu cobrir a cara com o lençol e virar-se para a mulher que dormia, refugiar-se no calor dela e no cheiro dos seus cabelos libertos. Esteve ainda uns minutos à espera, inquieto, a temer a espertina matinal. Mas depois lhe acudiu a ideia do casulo morno q era a cama e a presença labiríntica do corpo a que se encostava, e, quase a deslizar num círculo lento de imagens sensuais, tornou a cair no sono. O olho cinzento da vidraça foi-se azulando aos poucos, fitando fixas as duas cabeças pousadas na cama, como restos aquecidos de uma mudança para outra casa ou para outro mundo. Quando o despertador tocou, passadas duas horas, o quarto estava claro.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Sobre a Bondade (As Negociatas)

 
 


É lugar comum entre todos, desde a mais ignorante até a mais culta de todas as pessoas, que a bondade é algo advinda ou que não seria possível fora dos ditames e dos padrões religiosos. Se não for realmente uma opinião unânime (e espero que não seja), estamos bem próximos de que tal pensamento seja tido como verdade universal. Quem por aí é declaradamente ateu ou agnóstico ou simplesmente diz que não tem uma religião definida sabe muito bem do que estou falando: basta dizer “sou ateu/agnóstico” e as mães puxam os filhos de perto do indivíduo, as avós se escandalizam, os tios balançam a cabeça em desaprovação e as mães dos colegas soltam, invariavelmente, uma frase do tipo “ah, eu sabia! É por isso que o meu filho está usando drogas, fica andando com um ateu!”.
Este tipo de pensamento se assemelha muito à ideia que nossos pais e avós (pergunte para os seus) tinham dos comunistas em suas tenras infâncias: ser comunista era ser aliado do satanás, assim como ser ateu atualmente. Só para citar um exemplo, podemos puxar pela memória a célebre frase de José Luiz Datena – “isso (assassinato) é coisa de quem não tem Deus no coração” – e ver como a imagem do ateu está sendo muito mal difundida pelo nosso país (e pelo mundo afora).